30.1.04

As reprovações éticas do Vaticano: mais um tiro no pé

Um padre italiano, falando em nome do Papa, levantou a sua voz conta a imoralidade patrocinada pela indústria farmacêutica devido aos lucros astronómicos auferidos com os medicamentos que atenuam o sofrimento dos doentes de Sida. O padre D’Agostino lançou um apelo para que as empresas do ramo prescindam de parte dos seus lucros para colocarem os medicamentos a um preço mais acessível. Será, pois, um serviço que a indústria presta à humanidade.

Li a notícia e não fiquei surpreendido. São por demais conhecidas as incoerências em que a igreja vive mergulhada. Esta notícia testemunha dois tipos de incongruência eclesiástica: o lucro, esse mal terrífico; e os comportamentos humanos que devem ser pautados pela sexualidade castradora defendida pela hierarquia católica.

Como pode alguém, em nome da igreja, acusar uma indústria de se banquetear de lucros à custa do sofrimento humano? Será que a igreja não tem um passado repleto de opulência, com um abundante património? Seria bom que os religiosos não esquecessem que a missão das empresas não é a mesma missão filantrópica que eles prosseguem. Para o mal ou para o bem, as empresas existem para alcançarem o lucro. Goste-se ou não da imagem tenebrosa que anda de mão dada com o lucro, a verdade é que sem lucro não haveria empresas, nem emprego, nem distribuição do rendimento, nem produtos que satisfazem o nosso bem-estar.

Pior incoerência emerge da teimosia em invadir a esfera íntima de cada pessoa, através dos palpites que a igreja dá acerca dos comportamentos sexuais. Já estou mesmo a imaginar os fervorosos adeptos da moral cristã a opinarem que o problema da Sida se resolve com abstinência sexual, não com os pecaminosos preservativos. Mas há algo que o poder da metafísica não consegue contrariar – a natureza humana. Como humanos que somos, temos que respirar, temos que nos alimentar, e temos que ter a nossa sexualidade. Porque não abdica a igreja da hipocrisia de esconder a sexualidade de padres e freiras, eles também homens e mulheres como todos nós, simples pecadores?

Enquanto a igreja teimar em não admitir o preservativo, coloca-se inevitavelmente do lado da morte que tem na Sida o seu testa de ferro. A menos que a igreja recue no tempo e resvale outra vez para a retórica maniqueísta. Aí sempre poderá alegar que estas mortes ocorrem porque as ovelhas tresmalhadas insistiram nas práticas libidinosas que não são aconselhadas pelos livros da religião católica. Aí a igreja não terá pejo em concluir que é o preço que as vítimas da Sida pagam por não terem dado ouvidos à moral “saudável” e humanista da igreja. Mas que humanismo é este quando, não aceitando o preservativo, se aplana o terreno para a disseminação da doença? Ser-se humanista é contemplar a morte do ser humano?

Um pensamento final. Entre sectores conotados com o Bloco de Esquerda, houve quem aplaudisse com entusiasmo as declarações do padre D’Agostino. O que não é de estranhar. Afinal é o “cancro do capitalismo” que está a ser questionado. O representante do Papa contribuiu para o peditório desta esquerda alternativa que escolheu o capitalismo como seu inimigo.

Curiosa aliança esta. Uma aliança conveniente, quando vista no prisma da esquerda alternativa. Olhando para o outro lado, também é interessante verificar como certos sectores da igreja estão numa deriva anti-capitalista. Será a confirmação do que foi anunciado por alguém, em tempos, de que Jesus Cristo foi o primeiro marxista?

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