25.2.04

Um Carnaval lusitano

Que estranho país. Um país que é, em si mesmo, um paradoxo. Quando anda meio mundo a avisar a concordância da outra metade para um estado depressivo sem precedentes, eis que chega o Carnaval e desata toda a gente a festejar. Bem vistas as coisas, faz todo o sentido que a população se anestesie em festejos colectivos. De outro modo, como suportar os restantes 362 dias de modorra? Se não se aproveita o Carnaval, quando “ninguém leva a mal”, para zurzir no que está mal, para apedrejar com folia os actores que são incapazes de nos colocar nos trilhos da prosperidade, quando fazê-lo?

Por aqui o Carnaval veio em antecipação. Com a fanfarra das presidenciais extemporâneas, a peixeirada veio para a praça pública. Com toques de requinte, pois os actores são pessoas de pergaminhos, figuras eméritas do pretenso jet set nacional e do meio académico, fazedores de opinião com méritos incontestados. Temos as habituais diatribes de um narcísico Santana Lopes. Adicionamos mais um tabu de Cavaco Silva (que parece alimentar o imaginário nacional com uma versão revista e requentada de um sebastianismo militante de que a nação sempre gostou de nutrir). Observamos um Marcelo Rebello de Sousa que dispara farpas venenosas na sua homilia dominical na TVI, sem negar peremptoriamente que ainda anseia ser a figura de proa do PSD nas presidenciais. O resultado deste cocktail explosivo é um outro Carnaval feito de acusações trocadas, bem ao jeito das comadres que outrora se enchiam de salamaleques e agora estão de candeias às avessas.

O Carnaval não fica por aqui. Na semana passada o primeiro-ministro anunciou, triunfante, que em 2003 o défice orçamental foi de 2,8%. De seguida as esquerdas, numa coçadeira incomodativa, acusaram Durão Barroso de ser um mentiroso incorrigível, de enganar o país. Durão estará para as esquerdas nacionais como Liedson está para Mourinho – um enganador.

Ferro Rodrigues apontou o dedo às manobras de imaginação contabilística (para ele artificiais) que terão permitido colocar o défice abaixo dos 3%. Sem as receitas extraordinárias, o défice teria atingido 5%. Pena é que Ferro não refresque a memória reconhecendo que o aperto orçamental tem muito a ver com a factura a pagar pela irresponsável postura dos governos de que ele fez parte. Pena é que Ferro não avive a memória dos portugueses dizendo que o último governo do PS apresentou uma estimativa de 1,1% para o défice de 2001 e que, no encerramento das contas, o resultado quase quadruplicou essa previsão (4,1%).

Com estas manobras de baixa política, que enganam os cidadãos com pouca memória ou desconhecimento da matéria, quem é o enganador é o líder do PS. A decência obrigaria os socialistas a maior decoro nesta matéria. Na sua ausência, eles são os bobos da corte de um corso carnavalesco onde as desgraças nacionais são comicamente carpidas.

Abúlico é o adjectivo que melhor enquadra a cidadania que exercemos. Criticamos sem dó nem piedade, mas depois contribuímos com o nosso voto para a perpetuação dos males. Afinal somos partes intervenientes no Carnaval que o país vive 365 dias por ano. Quando julgamos que somos os encenadores da peça teatral dos corsos carnavalescos, que sem piedade batem na classe política, afinal somos agentes activos desse desfile. Com uma passividade acrítica, mantemos as elites que se eternizam. Só não sei se o fazemos conscientemente – para, depois, envergarmos a roupagem de encenadores que aproveitam o Carnaval para apontar o dedo inquisidor aos políticos que persistem na incompetência.

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