1.7.04

Touradas

Estando por uns dias em Espanha, era inevitável que acabasse por reflectir sobre um dos traços mais típicos do povo espanhol – a aficción pelas touradas, património genético dos espanhóis. Ao fim de alguns dias em Espanha é impossível não dar de caras com sinais de touradas. Seja pelos cartazes que abundam, anunciando touradas na praça de touros local, que se multiplicam no Verão como traço identificativo das férias que clamam pela descompressão do veraneante; seja para “turista ver”, nos painéis mais discretos que a cada esquina dobrada conduzem o turista às bilheteiras das grandes praças madrilenas onde os touros são objecto da faena; seja quando o espectador desprevenido vai passeando pelos canais de televisão espanhóis e tem o azar de coincidir com a transmissão televisiva de uma tourada no preciso momento em que o bicho se debate com os últimos suspiros da sua vida, depois de lhe ter sido cravejada até ao coração a espada do artista.

As touradas não são um exclusivo de Espanha. Em Portugal também existe uma tradição enraizada do espectáculo taurino. Tradição – essa palavra que esconde a explicação mais fácil para sacrificar o touro com rituais de malvadez, para gáudio dos aficionados que não desdenham aplaudir as façanhas dos toureiros numa lide desigual. Portugal também é tributário da “tradição” taurina, mas os espanhóis levam-nos a palma. A “tradição” está mais arreigada, mas também espalhada. Não se concentra numa certa faixa do território, como em Portugal. E depois vem a maior diferença: em Espanha a faena termina com o espectáculo da morte do touro; em Portugal, há impedimentos legais a este resultado abjecto (apesar das excepções locais que vão pontuando aqui e ali, em nome de uma “tradição” inconsequente).

Nunca consegui compreender a “beleza” do espectáculo taurino. Os fervorosos adeptos das touradas tentam explicar o espectáculo pela sua beleza. Eu não consigo ver nenhuma beleza num acto que corporiza uma luta desigual entre homem e touro. Luta desigual pela preparação prévia do touro, que antes de chegar à arena sofre um tratamento que lhe desgasta as energias, para chegar enfraquecido ao local onde vai defrontar, com armas desiguais, o seu carrasco. Para mais, o touro (em Portugal, já não em Espanha) sai para a arena com protecções nos cornos. Para diminuir mais ainda a sua capacidade de reacção e aumentar o fosso nas armas que estão à disposição de quem se digladia na praça de touros.

A luta é tão desigual quanto a desproporção de forças. Num espectáculo desportivo os assistentes dividem-se, ainda que em proporções diferentes, no apoio aos intervenientes. Na tourada todos estão do lado do toureiro e “contra” o touro. O animal tem que combater o homem que lhe aparece pela frente. E tem que enfrentar a animosidade de toda uma plateia que foi mobilizada pelo instinto animalesco de ver o touro sofrer, definhar até à morte depois de ter sido penetrado pela espada lancinante do toureiro.

É um espectáculo macabro. Um espectáculo desonesto, porque se faz passar o tempo numa luta cansativa para o touro, que vai ficando exangue até ao momento em que é mais fácil espetar-lhe a espada da morte. Um espectáculo degradante, que expõe a feição primitiva, animalesca, de um ser humano que se diverte com a humilhação aplicada ao touro, com o sofrimento de um animal que se despede da vida perante o testemunho entusiasmado da horda de espectadores.

É triste ver os instintos primitivos de quem desfralda lenços brancos quando o touro se esvai em dor, num sofrimento final que o leva a ajoelhar-se perante o seu carrasco. As pessoas vibram com aqueles momentos em que o touro se debate num penar aziago, dizendo adeus à vida com os lenços brancos que testemunham a alegria de um bando que exulta quando o animal tomba. A decência está ausente, pois estas pessoas precisam do espectáculo do sangue, da morte, como se ainda fosse necessário relembrar que a “superioridade humana” é o património histórico em que se alicerça o desenvolvimento da raça humana.

A tourada representa o ser humano na sua pior faceta. O ser humano fautor de um espectáculo sanguinário, como se as pessoas fossem dráculas de si mesmas pelo sangue que necessitam de tragar ao verem o touro consumir-se até à morte.

(Em Sanxenxo)

1 comentário:

Anónimo disse...

ESQUECESTE-TE DA FRANÇA, AFRICA E AMERICA E MACAU