17.9.04

Requiem pelo serviço militar obrigatório

Sinal dos tempos: de agora em diante os jovens mancebos já não precisam de perder meses da sua vida a cumprir o serviço militar obrigatório (SMO). Os jovens deixarão de ser mancebos.


Os tempos mudam, as necessidades também, e o exército teve que se adaptar aos novos rumos que o mundo tomou. Agora que as “ameaças à soberania nacional” aparecem mitigadas, o exército foi levado a reequacionar as suas funções. Como as guerras já não batem à porta com a frequência do passado, eis que deixa de fazer sentido preparar os homens do país para as vicissitudes de um conflito bélico. A modernidade trouxe a carta de alforria para os jovens.

Para os meios castrenses esta será uma notícia pouco agradável. É verdade que não terão multidões contrariadas a bater com os costados nos exercícios físicos e cívicos que por ali se ensaiam. Com a extinção do SMO só terão voluntários ao serviço: só lá irão parar aqueles que sintam uma vocação digna de um Rambo dos novos tempos. Mas não acredito que aos militares profissionais interessasse saber se os mancebos estavam ou não mobilizados para os meses de treino militar. A disposição pessoal era um pormenor de somenos importância quando comparada com o imperativo cívico, o desígnio nacional, de terem que cumprir o SMO. A obrigação acima do lazer. Para os militares de gema, tão habituados ao exercício da autoridade que escapa ao respeito por mínimos de dignidade humana, talvez fosse mais representativo saber que exerciam poder sobre levas de recrutas contrariados.

Com o funeral do SMO enterra-se o mito dos homens de barba rija – melhor, da barba que só enrijecia quando iam parar aos quartéis. Do imaginário popular consta a ideia de que os homens só se fazem homens depois de passarem pelo crivo da tropa. É aí que deparam com situações delicadas que os põem à prova. Entre as quatro paredes dos aquartelamentos, ao sabor de um regime marcial, travavam conhecimento com as agruras da vida. Aos que já não fossem estranhas as dificuldades de uma vida de sacrifício, a tropa apenas servia para confirmar que a vida de uma pessoa é sofrer e abster desde a nascença até ao morrer. Aos tenrinhos, aos dentinhos de leite que sempre andaram protegidos pela asa de mães galinhas, a tropa era uma experiência enriquecedora que os amadurecia para a vida. Só então estariam preparados para a selva que é o mundo.

Com o funeral do SMO também se desprendem boas novas. Muita gente não se perde em vícios conquistados durante o tempo da tropa. Muitos dos que são obrigados a cumprir serviço militar em idade mais avançada (nos vinte e poucos anos, já licenciados e preparados para a vida profissional) não têm que desperdiçar meses preciosos, adiando ou suspendendo a participação em algo de útil – a sua inserção na vida activa. Precoces pais de famílias não são obrigados a separar-se da sua família.

Muitos jovens não serão jamais forçados a viver na angústia do dia em que vão consultar os editais onde está afixado o veredicto – colocação longe de casa, ou a sorte grande de ingressarem nessa coisa abominável chamada “reserva territorial”. (Abominável porque sobre os que têm a sorte de serem dispensados de cumprir o SMO fica sempre a pesar a ameaça de um chamamento, se a qualquer momento for necessário convocar os “reservistas”. Como se estes fossem um capital sempre disponível para engrossar as fileiras do exército, quando uma vicissitude exija a reconstituição de um exército feito de homens sem preparação alguma. Os reservistas serão carne para canhão. E depois há quem censure outras civilizações por não respeitarem o valor da vida humana…)

Pela parte que me toca, são muitas as lágrimas que verto pela saudade dos tempos da tropa. Foram tempos bem vividos, que a espaços me colocam na senda de uma nostalgia incomparável. O meu SMO foi exemplar por ter me permitido fazer homem e me sentir útil. Porque fui dos felizardos a quem calhou a reserva territorial. É por isso que guardo uma respeitosa saudade do meu SMO – da tropa que tive a felicidade de não cumprir, por capricho do destino. O meu contacto com o SMO resume-se a dois dias de sensações contraditórias. O dia da inspecção militar, talvez o dia mais estúpido da minha vida (e sem dúvida o pior “restaurante” que alguma vez frequentei…); e o dia em que fui consultar os editais, anunciando a colocação na reserva territorial, numa prenda antecipada de Natal. Pelo meio, o orgulho da minha epiderme nunca ter tomado contacto físico com uma arma de fogo é a melhor herança pessoal do SMO. Assim pude respeitar uma das melhores lições da educação dos meus pais (a rejeição de armas).

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