27.10.04

O caso Buttiglione: paga o justo pelo pecador?

Com a teimosia de José Barroso em manter o comissário italiano na pasta dos assuntos internos e justiça, existe o risco de vinte e quatro pessoas (os designados pelos governos dos Estados membros para cargos na Comissão) caírem no cadafalso por pecadilhos alheios. Porque o italiano Buttiglione cometeu a imprudência de fazer afirmações que raiam o politicamente incorrecto. As regras da União Europeia exigem que a Comissão só possa ser empossada depois de passar pelo voto afirmativo do Parlamento Europeu. Como esta instituição só pode aprovar ou rejeitar em bloco o colégio de comissários, a manter-se a teimosia de Barroso pode acontecer que os restantes comissários nunca o cheguem a ser. Por isso faz sentido a interrogação: será um caso em que os justos (os vinte e quatro) pagam pelo pecador (Buttiglione)?

Este político italiano faz parte da velha guarda católica. Consta que tem um passado de fundamentalismo católico, hoje verberado por ser um anacronismo. Buttiglione sempre esteve ao lado das causas mais conservadoras, conotadas com o catolicismo arcaico. Por isso há quem sugira, com laivos imaginativos, que Buttiglione não é o representante da Itália na Comissão, antes o representante de um Estado que não faz parte da União Europeia – o Vaticano.

Mais do que o passado de Buttiglione, foram as suas declarações recentes que contribuíram para a espiral de acontecimentos que abeira a União de uma crise sem precedentes. Em pleno Parlamento Europeu, Buttiglione defendeu a ideia de que a homossexualidade é um pecado, que as mães solteiras não têm a mesma capacidade para educar os filhos, que o lugar das mulheres não é no mercado de trabalho mas antes em casa, ocupadas nas lides domésticas. São ideias aberrantes. Chocam por serem ultrapassadas, por ilustrarem uma forma de pensamento desenquadrada dos tempos em que vivemos.

Estas declarações foram o detonador de uma tempestade que visa ceifar Buttiglione – ou toda a Comissão, se persistir a teimosia de Barroso. As esquerdas sentiram-se ofendidas na sua dignidade e saltaram com toda a ferocidade, querendo a crucificação do ignóbil Buttiglione. Mesmo os deputados do grupo liberal e reformista estão com dúvidas em dar o consentimento a esta Comissão que abriga no seu seio personagem tão “retrógrada”. A menos que haja uma viragem de última hora, daqueles compromissos negociais em que a União Europeia é pródiga, a nau de Barroso está prestes a ir ao fundo mesmo antes de zarpar.

Concordo com as razões dos que se sentiram chocados com as ideias de Buttiglione. Mas não será mais importante: a) constatar que um dos valores fundamentais da sociedade europeia é a tolerância e, como tal, Buttiglione tem direito a exprimir as ideias que cultiva, por mais absurdas que pareçam? b) Não terão estas virgens ofendidas esquecido que Buttiglione não tem poderes para impor uma política na sua área de actuação sem o consentimento dos outros comissários?

A meu ver estes dois aspectos são decisivos. Primeiro pela intolerância demonstrada pelos críticos de Buttiglione. Admito que sejam muitos os anti-corpos contra o catolicismo radical que este senhor representa. O meu ateísmo simpatiza com esta oposição. Outra coisa é querer calar as ideias de alguém, mesmo quando essas ideias furam o véu do que é hoje politicamente consentido. Por este andar, estamos cada vez mais a fixar as coordenadas de um “pensamento único” que obedece às linhas motrizes de um “politicamente correcto” soprado dos lados das esquerdas. Tudo o que fuja a essas coordenadas é atacado sem dó nem piedade. Não será um totalitarismo encapotado?

O segundo aspecto também é importante. Buttiglione foi designado para um pelouro que toca questões delicadas onde o seu pensamento levanta sérias reservas (liberdades fundamentais, por exemplo). Mas as regras de funcionamento da Comissão exigem decisões tomadas colegialmente. Haverá quem acredite que Buttiglione conseguisse impor as suas ideias bizantinas aos restantes vinte e quatro comissários? Só por falta de honestidade intelectual pode alguém a responder com a afirmativa.

Não sei o que me inquieta mais: se a possibilidade de um sorumbático católico empedernido tomar posse na Comissão Europeia, se a intolerância das esquerdas que vomitam todo o seu fel contra quem tenha a ousadia de proferir afirmações que saem doa cânones do politicamente incorrecto. E pergunto-me se os segundos não são os modernos inquisidores, tal como no passado outros inquisidores levaram à fogueira quem se desalinhava em relação às ideias oficiais.

Descontando as fogueiras, o resultado não será diferente: um linchamento, suave nesta versão hodierna, por estes detentores do monopólio da boa consciência social.

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