7.10.04

A quadratura do círculo: um político pede para não confiarem nos políticos

Durante a minha estadia em Inglaterra decorreu o congresso do partido conservador. Os noticiários abriam invariavelmente com notícias sobre o acontecimento. Não foi tanto um partido conservador anquilosado que chamou a atenção. Não foi tanto o facto de nas imagens percorridas entre a assistência abundarem congressistas de idade avançada, representações do velho conservadorismo britânico que ainda vive agarrado às miragens do pós-segunda guerra mundial. O auge foi o discurso do líder Michael Howard, em especial quando sacou da algibeira o dramatismo convidando os súbditos britânicos a “não confiarem em políticos”.

Gostei de ouvir. Embrulhado no cepticismo em relação ao fenómeno político contemporâneo, teimoso em descrer nos agentes políticos por considerar que são, em larga maioria, conduzidos por motivações pessoais quase sempre em contra-ciclo com os interesses do país, esta foi uma frase bombástica que recolheu a minha simpatia. Mas a política é abundante na arte da retórica. A semântica tem truques que iludem os mais incautos, os distraídos. É nessa arte que repousa a estratégia de comunicação dos políticos do nosso tempo. Já tinha ouvido e lido muitos disparates saídos da boca de políticos. Mas o expoente máximo do exagero, como esta afirmação de Howard, nem as folclóricas diatribes dos bloquistas de esquerda para consumo nacional!

Howard pede, em desespero de causa, a descrença nos políticos. Se estas palavras forem lidas no contexto do fenómeno político britânico, alcança-se o conteúdo da mensagem. Os conservadores estão cansados da cura de oposição que já leva quase oito anos, o tempo de governação dos trabalhistas de Blair. Ao que consta, Blair é useiro e vezeiro em colocar promessas em cima da mesa para as deixar cair no esquecimento. Políticos a incumprirem promessas também não é novidade. O que varia é o hiato entre as promessas e as realizações concretas.

Neste contexto, Howard terá pedido aos britânicos para não confiarem nos políticos – mas com um destinatário bem identificado: os políticos do partido trabalhista no poder que não têm sabido cumprir as suas promessas. Onde se lê “não confiem nos políticos” deve-se ler “não confiem nos políticos do partido trabalhista”.

Os especialistas de comunicação política saberão porque aconselharam Howard a omitir as últimas três palavras. Lá terão as suas razões. Para um leigo, que é ao mesmo tempo tão céptico em relação ao fenómeno político, fica a sensação da pior estratégia possível para convencer o eleitorado a depositar a sua confiança nos conservadores. Porque a maioria das pessoas pode-se agarrar ao sentido literal das palavras e dar razão a Howard: não confiar nos políticos, classe da qual ele é um dos máximos representantes. Com uma consequência lógica: não será nele que os votos serão depositados. É intrigante esta linha de conduta se volta contra os seus próprios objectivos. Como pode um político que aspira a cativar as simpatias do eleitorado pedir, em tom melodramático, uma retirada de confiança nele próprio?

Para adensar a confusão a que os conservadores se amarraram, escuto excertos do mesmo discurso em que Howard começa por ser renitente em relação a promessas concretas caso se dê a improvável circunstância de chegar ao poder. Começa apenas por prometer que demitirá ministros do seu gabinete caso eles sejam incapazes de satisfazer as linhas de acção com que se comprometeram. Para culminar com a seguinte promessa: que gostaria de prometer uma redução dos impostos, mas que só o fará quando tiver a certeza que o pode prometer. O que acaba, por portas travessas, por ser uma promessa. Ainda que encapotada por uma sinuosa semântica, mas a verdade é que acaba por vincar o compromisso de diminuir os impostos assim que chegue ao poder.

No fundo, apetece glosar o mesmo Howard: não confiem nos políticos. Em todos eles. E sobretudo naqueles que, sendo políticos, têm o descaramento de apelar à desconfiança em relação à classe política. É o que merecem, mais do que os outros, aqueles que não percebem como estão de arma apontada para a sua própria cabeça, com o dedo preparado para premir o gatilho.

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