9.11.04

O homem do realejo

Vindo do nada, um som enche um mar de recordações. Na quietude ruidosa das obras de um prédio que começa a nascer, o burburinho das máquinas que escalavram a terra deixa perceber, ao longe, um silvo conhecido. É o homem que se faz anunciar tocando um realejo, o cartão de visita para as pessoas saberem que ele está ali, preparado para reparar os guarda-chuvas que carecem de conserto.

Este som familiar, que já não escutava há largos anos, fez-me lembrar a avó materna a assegurar que “vem lá chuva” de cada vez que o homem andava pelas redondezas. Aprendi a associar este som com um chamamento de chuva. Talvez porque a função do homem é consertar os guarda-chuvas avariados, preparando-os para a função que lhes está destinada. A reparação do homem que conserta guarda-chuvas era, no imaginário popular, o prenúncio de que as chuvas já podiam chegar depois da ronda do homem. Ele era o guardião do nosso bem-estar, o salvador contra as gripes fermentadas em tormentas que nos apanhavam sem o guarda-chuva entretanto inoperacional.

Cresci, Outono após Outono, habituado a ouvir lá fora o assobio do homem do realejo. Era o anúncio da estação das chuvas que se aproximava. Todos os anos, a minha avó fazia o seu diagnóstico: o homem assobiava os ventos que, dias mais tarde, iriam trazer a desagradável chuva. Para ela, este homem era fautor do tempo tenebroso, da chuva inclemente que varria os descampados nas cercanias. Ao contrário dos índios que cultivam o hábito da dança da chuva para a chamar em tempos de estio prolongado, aqui o homem do realejo era o aviso de que a estação negra estava prestes a assentar arraiais. Por isso a minha avó dizia, com o ar de enfado, que o homem do realejo carregava consigo o insuportável fardo da chuva que o horizonte marítimo em breve deixaria transparecer, com as nuvens escurecidas batidas pelos ventos agrestes e húmidos com o perfume da brisa atlântica.

Estive anos a fio sem ouvir a cantilena do homem do realejo. Eis senão quando, de surpresa, voltei a escutar a melodia repetitiva. Mesmo sabendo que os avanços da tecnologia ajuízam o anacronismo da função. Os guarda-chuvas podem ser mais frágeis que no passado, mas são feitos de materiais tão baratos que é mais cómodo substitui-los quando se estragam.

Descompassado com a realidade, o homem do realejo prossegue a sua sina, andando pelas ruas à caça de clientes, perfumado com nostalgia do passado. Na esperança de encontrar alguém com saudades do passado que tenha, por milagre, um guarda-chuva danificado que não teve a desdita de ir parar ao lixo. Procura prender nos seus lábios os sons que imortalizam as imagens de um passado de que só restam memórias. O homem do realejo é um museu andante, um cadinho do tempo que ficou enterrado nas memórias.

Mergulhado nos afazeres da vida moderna, só pude deliciar o sentido auditivo com o silvo feito pelo homem do realejo. Ao início ainda senti um estranho apelo para sair de casa, perseguir as pistas deixadas pelo som do realejo. Para saciar a curiosidade e ver se o homem do realejo era um velho que se arrastava com lentidão pelas ruas, empurrando a sua traquitana onde compõe os guarda-chuvas que lhe trazem. Queria confirmar se era velho, se ele também estava ali a matar as saudades de um tempo que se ausentou nas brumas do passado.

Tive que resistir. As tarefas do presente, o afã da vida que nos empurra para a voragem do tempo que se consome num instante, mergulharam-me no presente. As exigências da vida destemperada que levamos são o suicídio do travo doce das recordações do passado transportadas desde um canto escondido do subconsciente. Para elas não há lugar senão nuns escassos momentos, porque a pressa de viver é inimiga da nostalgia piedosa.

1 comentário:

Anónimo disse...

Coincidência o meu comentário à hora do almoço... Desconhecia o teor do teu post. Sò agora li... As "nossas" memórias... Mana