14.12.04

Que lugar à nostalgia?

Cruzo-me com um amigo. A conversa trivial consumiu os primeiros minutos. De passagem pela política, tema que me causa urticária por estes dias, fiz menção de mudarmos de assunto. Pergunto-lhe como estão os filhos. Contrariando respostas passadas, o optimismo começou a irromper nas palavras proferidas. Já não como antes, em que à pergunta respondia com a extenuação que lhe corroía por dentro, porque os dois filhos vieram quase seguidos e o primeiro não o deixava ter noites descansadas.

Desta vez, não me deixou conselhos de amigo que têm um travo de presente envenenado. Não me alertou que a vida passava a ser diferente, que ia deixar de ter tempo para as minhas coisas, para mim mesmo, que agora tudo gira em redor da criança acabada de nascer. Quando ouvia a ladainha, interrogava-me se era mesmo verdade que a vida de pai se transforma de tal maneira que o filho passa a ser o centro do universo. Como se apenas existisse o filho e nada mais importasse; como se o filho levasse ao desprendimento do pai, doravante destituído de existência própria. Descontava os exageros de retórica que lhe invadiam o discurso: não deve ser tarefa fácil ter dois filhos intervalados por um ano, para mais quando o primeiro não deixava lugar ao descanso nocturno dos pais.

Não é isto que me leva ao texto de hoje. A conversa entretanto desviou-se para outro assunto, que tocava lateralmente o tema dos filhos e da alteração da vida a que estávamos habituados. Sem saber como, a conversa confluiu nas memórias do passado. Quando as namoradas ainda não existiam, quando nos reuníamos todas as noites na Maiorca para tomar café e pôr a conversa em dia. Disse-me que tem saudades desse tempo, em que as conversas oscilavam entre assuntos banais e outros mais interessantes. Sentia falta das noitadas em casa dele, à volta de uma mesa, de um baralho de cartas e de copos regados de forma frugal. Sentenciou, com pesar: “agora é tudo diferente. Quase não tenho tempo para mim”.

Com isto tinha chegado a hora de iniciarmos as nossas aulas. Fomos subindo as escadas em passo lento, trocando as últimas palavras que convocavam a nostalgia mais funda. Duas horas depois, no final de mais uma jornada de trabalho, encaminhava-me para o carro quando me lembrei de algumas passagens da conversa. Interroguei-me se estes assomos de nostalgia (em doses variáveis consoante as pessoas) são sinal de perplexidade ou apenas a memória a deitar cá para fora as boas recordações que restam do passado. Quando se faz a retrospectiva dos momentos que preenchem o álbum das boas recordações, será sinal de descontentamento com o que temos hoje?

Já sentado no carro, fiquei imóvel por momentos a pensar na dúvida que me assaltava. A resposta não tardou. Por mais compensadores que sejam os momentos de nostalgia, por mais que se eleve o bem-estar quando as recordações emergem à superfície, à nostalgia fica reservado um papel menor. Não é sonegar o passado – seja o que de bom ficou para trás, sejam as más recordações, ou as más experiências de vida que serviram para amadurecer. É apenas sentir que o passado está feito e não volta a acontecer. Destapar o baú das recordações poderá ser gratificante para quem vive atormentado com o tempo presente. A asfixia deste tempo traz a sede pelo tempo que se ausentou, perdido nas folhas rasgadas do calendário. A poeira levantada ao abrir o baú do passado pode toldar o discernimento.

Por via de dúvidas, lancei outra vez a interrogação: e tu, Paulo, tens saudades desses tempos? Fazem parte do património das boas recordações do passado. Seguro de que tudo na vida tem o seu tempo, senti que a minha vida marcou encontro com esses momentos algures no passado, algures num momento certo. Não digo que tenha saudades como se o regresso a esse tempo fosse vital para a felicidade. Até porque de seguida surgiu outra interrogação no horizonte: e se o destino quisesse que as voltas da vida tivessem sido diferentes? E se estivesse sozinho, mais disponível para continuar a frequentar tertúlias nocturnas, não sentiria falta do que sabia não ter e que agora tenho?

É a irreprimível tendência do ser humano: não estar satisfeito com o que tem, ambicionar regressar ao que já teve, para logo de seguida carpir o arrependimento pela decisão tomada. Temos uma essência de eternos insatisfeitos!

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