30.1.04

As reprovações éticas do Vaticano: mais um tiro no pé

Um padre italiano, falando em nome do Papa, levantou a sua voz conta a imoralidade patrocinada pela indústria farmacêutica devido aos lucros astronómicos auferidos com os medicamentos que atenuam o sofrimento dos doentes de Sida. O padre D’Agostino lançou um apelo para que as empresas do ramo prescindam de parte dos seus lucros para colocarem os medicamentos a um preço mais acessível. Será, pois, um serviço que a indústria presta à humanidade.

Li a notícia e não fiquei surpreendido. São por demais conhecidas as incoerências em que a igreja vive mergulhada. Esta notícia testemunha dois tipos de incongruência eclesiástica: o lucro, esse mal terrífico; e os comportamentos humanos que devem ser pautados pela sexualidade castradora defendida pela hierarquia católica.

Como pode alguém, em nome da igreja, acusar uma indústria de se banquetear de lucros à custa do sofrimento humano? Será que a igreja não tem um passado repleto de opulência, com um abundante património? Seria bom que os religiosos não esquecessem que a missão das empresas não é a mesma missão filantrópica que eles prosseguem. Para o mal ou para o bem, as empresas existem para alcançarem o lucro. Goste-se ou não da imagem tenebrosa que anda de mão dada com o lucro, a verdade é que sem lucro não haveria empresas, nem emprego, nem distribuição do rendimento, nem produtos que satisfazem o nosso bem-estar.

Pior incoerência emerge da teimosia em invadir a esfera íntima de cada pessoa, através dos palpites que a igreja dá acerca dos comportamentos sexuais. Já estou mesmo a imaginar os fervorosos adeptos da moral cristã a opinarem que o problema da Sida se resolve com abstinência sexual, não com os pecaminosos preservativos. Mas há algo que o poder da metafísica não consegue contrariar – a natureza humana. Como humanos que somos, temos que respirar, temos que nos alimentar, e temos que ter a nossa sexualidade. Porque não abdica a igreja da hipocrisia de esconder a sexualidade de padres e freiras, eles também homens e mulheres como todos nós, simples pecadores?

Enquanto a igreja teimar em não admitir o preservativo, coloca-se inevitavelmente do lado da morte que tem na Sida o seu testa de ferro. A menos que a igreja recue no tempo e resvale outra vez para a retórica maniqueísta. Aí sempre poderá alegar que estas mortes ocorrem porque as ovelhas tresmalhadas insistiram nas práticas libidinosas que não são aconselhadas pelos livros da religião católica. Aí a igreja não terá pejo em concluir que é o preço que as vítimas da Sida pagam por não terem dado ouvidos à moral “saudável” e humanista da igreja. Mas que humanismo é este quando, não aceitando o preservativo, se aplana o terreno para a disseminação da doença? Ser-se humanista é contemplar a morte do ser humano?

Um pensamento final. Entre sectores conotados com o Bloco de Esquerda, houve quem aplaudisse com entusiasmo as declarações do padre D’Agostino. O que não é de estranhar. Afinal é o “cancro do capitalismo” que está a ser questionado. O representante do Papa contribuiu para o peditório desta esquerda alternativa que escolheu o capitalismo como seu inimigo.

Curiosa aliança esta. Uma aliança conveniente, quando vista no prisma da esquerda alternativa. Olhando para o outro lado, também é interessante verificar como certos sectores da igreja estão numa deriva anti-capitalista. Será a confirmação do que foi anunciado por alguém, em tempos, de que Jesus Cristo foi o primeiro marxista?

29.1.04

Pessoas, lucro e ganância

Em resposta ao meu comentário, Paulo Pereira publicou um post no Blogo Social Português. Retenho o mais significativo:

A mim o que me irrita é a desonestidade, a falsidade e aquelas pessoas que mentem com todos os dentes para sacar mais uns cobres e ainda aquelas empresas e países que consideram as pessoas sempre menos importantes que a sua sede de poder ou a sua fome de lucro”.

O problema está na natureza humana. Somos, como espécie, tendencialmente maus. Não nascemos como maus selvagens que a sociedade tende a domesticar. Somos alterados pelos comportamentos com que nos deparamos nas relações sociais. O colectivo (a sociedade) sobrepõe-se ao indivíduo e dá-se um fenómeno de arrastamento, em que os menos escrupulosos não hesitam em deixar-se atascar no lodaçal em que vivemos.

É da génese do Homem. Aí estou de acordo com Paulo Pereira: “para além da esquerda e da direita estão as pessoas”. Não há maus de um lado e bons do outro. Há dos dois tipos de ambos os lados. Mas o poder das ideias está por cima das pessoas. Pode haver muitos gananciosos que subvertem as regras do capitalismo. O que não será suficiente para liquidar os princípios saudáveis que radicam na livre iniciativa e no lucro. Sei que estas referências poderão não ser do agrado do Blogo Social Português, mas cá vão: Lüdwig von Mises, Friedrich Hayek, Murray N. Rothbard, Hans-Hermann Hoppe.

A incontinência verbal de Cadilhe

Cadilhe, o presidente da Associação Portuguesa de Investimento (API), achou que era o momento de mostrar que é um enfant terrible. Que não tem a decência de mostrar lealdade para com quem o nomeou numa base de confiança política. Não hesitando em enviar sinais de uma ambição política desmedida, pois só assim se poderá compreender este grito de emancipação ao afastar-se da política económica do governo que nele confiou a API.

Primeira observação: ao comentar o rumo errado da política económica, Cadilhe exorbitou as suas competências. Ainda que lhe custe muito, ele não se consegue desligar do rótulo de presidente da API. Ora este organismo estatal não está incumbido de analisar a política económica. Ao perorar sobre a política económica, Cadilhe pisou terreno alheio e passou um atestado de incompetência às pessoas que o nomearam.

Segundo comentário: Cadilhe deve ter parado no tempo ao defender ideias económicas que foram ultrapassadas com um virar de página em meados da década de setenta. É o que se observa de tiradas como “um bom défice público deve ser para financiar o esforço de modernização do país ou para resolver uma situação de recessão, com o reforço dos estabilizadores orçamentais” e com “o pleno emprego legitima alguma inflação”.

Se até aqui a sua preferência por uma certa escola do pensamento económico parece implícita, Cadilhe não demorou em fazer uma profissão de fé pública ao alertar que a “filosofia social-democrata da economia, de inspiração keynesiana, está em risco porque não consegue responder a questões como a relação entre défice e equilíbrio das contas públicas ou a inflação e política de emprego”. Cadilhe é keynesiano, quando hoje em dia já ninguém o é. Quando muito temos neo-keynesianos, que se afastaram desta dogmática que perpassa das palavras de Cadilhe.

A derradeira frase de Cadilhe labora em erros sucessivos: primeiro, o PSD é genuinamente social-democrata? Cadilhe, economista a quem escapam os detalhes abstractos e distantes da filosofia política, está mergulhado num profundo equívoco? Segundo, a social-democracia ainda está agarrada ao tal keynesianismo? Cadilhe devia estar a dormir quando Mitterand, Jospin ou Blair (que até estão à sua esquerda) passaram pelo poder, renegando esta escola do pensamento económico e adoptando uma postura mais pragmática.

Tudo serviu para Cadilhe criticar a política económica: as obras públicas sumptuosas são um erro grosseiro (Expo 98 e do Euro 2004 – e aqui tem razão); o aperto orçamental é um obstáculo ao progresso do país; o Pacto de Estabilidade e Crescimento e os malditos “eurocratas” são outros culpados da desdita que vivemos. E, pasme-se, “a Grécia não quis entrar na antecâmara do euro. Nós entrámos e cavámos uma regressão profundíssima”. O que é um delicioso acerto de contas com o passado e com quem o nomeou para ministro das finanças há mais de quinze anos – Cavaco Silva, o responsável por colocar Portugal na rota da União Económica e Monetária.

Já que ninguém no governo parece ter despertado de um sono profundo para interpretar as palavras de Cadilhe; já que não há quem no governo seja capaz de retirar as ilações deste caricato episódio, abrindo a porta da saída a Cadilhe; porque razão não é o próprio Cadilhe que, num acesso de dignidade, coloca o seu lugar à disposição? Apego ao poder (não será a resposta?).

28.1.04

Os “amigos da lampreia”, esses defensores da espécie

Nada tenho contra nem a favor de lampreias. Não faz parte da minha dieta alimentar. Como também não é um animal que desperte a minha sensibilidade. Porque a sua forma se assemelha às cobras e, como tenho alergia aos répteis, a comparação não abona em favor da minha simpatia perante a espécie.

Contudo não pude ficar indiferente a uma patacoada cometida por um jornalista, mais conhecido por vangloriar em livro as façanhas desportivas do FC Porto, mas que foi entrevistado como líder de uma agremiação de degustadores de lampreia. A pessoa em causa dissertou sobre os malefícios das barragens para a preservação da espécie, porque impedem a desova que as lampreias estavam habituadas a fazer na sua subida do rio. Na sequência desta acusação, não hesitou em concluir que a sua agremiação gastronómica era a melhor defensora da preservação da espécie!

Cada vez menos me pasmo com estas manifestações de caricata imbecilidade. Num mundo em que se ensina nos bancos da escola e no remanso do lar, em plena educação das crianças, que os fins justificam todos os meios, escutar esta ideia absurda não chega a ser surpreendente.

Os receptores da mensagem do ilustre presidente da agremiação gastronómica decerto estão em condições de perceber o súbito apelo ecológico que emitiu na entrevista. Esta gente gostaria de proteger a lampreia para assim ela existir com mais abundância nos rios e chegar aos seus pratos a um preço mais compatível com carteiras menos endinheiradas. Ninguém pode duvidar que esta gente é mesmo amiga da lampreia. Mas de preferência num prato de sarrabulho fumegante, mesmo à frente dos seus olhos esbugalhados que espumam ansiosamente por espetar o grafo na iguaria. No rio elas são um desperdício para as pupilas gustativas.

Ir por este caminho é o mesmo que aceitar a ideia peregrina de certos defensores das touradas. Consideram que é a existência de touradas que impede a extinção do touro bravo. Como o argumento que era antes mais usado tem perdido consistência – a tourada tem que existir porque é uma “tradição” –, tentam entrar num domínio que é grato às pessoas que são mais sensíveis aos direitos dos animais. Para sua infelicidade, falham o alvo. Só um mentecapto consegue reconhecer que um espectáculo degradante, que inflige sevícias num bicho indefeso, para grande deleite de aficionados que exibem a sua grotesca animalidade, serve de protecção desse animal.

Por esta lógica, um dia destes temos os folclóricos defensores do asqueroso espectáculo da matança do porco a sustentar a ideia de que isto é necessário para a preservação do animal!

27.1.04

Em resposta a Paulo Pereira (Blogo Social Português)

Recebi um mail de Paulo Pereira, remetendo-me para um post por ele publicado no Blogo Social Português acerca do artigo de Eduardo Prado Coelho no Público, por mim comentado na passada sexta-feira.

Em relação ao essencial que ambos comentámos: estou de acordo quando afirma que “EPC até simpatiza com o FSM (Fórum Social Mundial) mas ainda não percebeu o que é que é o FSM”. É por isso que é errado falar “na esquerda”, como o intelectual teima em fazer. É por isso que fazer menção “às esquerdas” tem maior exactidão – porque são diversas as sensibilidades e todas elas encerram propostas destoantes sobre o modelo de organização sócio-económico em que assenta o mundo.

Não posso deixar de sublinhar, com surpresa, que Guterres tenha estado presente no FSM. Sendo o presidente da Internacional Socialista (IS), decerto os participantes no FSM terão tido oportunidade para lhe perguntar (desconheço se o fizeram) como se concilia o socialismo de que ele é expoente com as propostas de alter-mundialização do FSM. Não se deve perder de vista que os socialistas que se acobertam na IS professam o credo capitalista que é tão deplorado pelos mentores do FSM.

Já agora: não estando situado à esquerda, sou capaz de detectar a existência de diversas esquerdas. Bom seria que os paladinos das esquerdas exercessem o mesmo rigor intelectual e admitissem a existência de diversas direitas. Sem resvalar para a tentação de chamar extrema-direita a partidos que em Portugal têm representação parlamentar e que se distinguem claramente de partidos que, esses sim, não hesitam em ser extremistas.

E confesso que não admiro, nem um pouco, o CDS-PP!

Morte maldita

Tenho uma convivência muito difícil com a morte. Por ser agnóstico, a dogmática cristã de que há vida depois da morte não me diz absolutamente nada. Não consigo encontrar o conforto, que acompanha os crentes, de que extinta a chama da vida terrena a alma perdura a sua existência numa outra dimensão. Não. Para mim a morte é o fim de tudo. Nada mais há para além da morte. Com ela deixo o mundo e passo a ser matéria inerte, um cadáver feito coisa. Por isso é muito difícil encarar a morte de frente. Assumo a covardia de fugir de tudo o que possa ter a ver com a morte. Fujo de funerais, de cemitérios, do dia dos fiéis defuntos. Porque teimo em recusar admitir que um dia será a minha vez de deixar o mundo dos vivos. Por isso é que costumo dizer, em tom de brincadeira (que é, ao mesmo tempo, uma ténue manifestação de esperança), que vou viver até aos 96 anos com plena vitalidade.

É quando a morte passa mesmo ao lado que dou conta como a vida é frágil, tão frágil. E ao mesmo tempo enalteço todos os dias que vivi até hoje, mesmo aqueles que sejam o repositório de tristeza, de infelicidade. Porque são dias de vida. Porque a tristeza, a amargura, a infelicidade, são más notícias que a morte converte em boas novas – as boas novas de alguém que tem a felicidade de estar vivo.

Quando vejo como reagimos, como colectivo, à morte, como nos deixamos afundar por uma dor insuportável que testemunha a tristeza pela pessoa perdida, questiono-me se esta nossa tendência para a dor colectiva não é a pior reacção à morte. Não vou dizer que a morte deva ser festejada. Afinal, há uma pessoa querida que deixa de estar no nosso convívio. Mas porque não viver a dor encerrados no nosso íntimo? Porque não, em grupo, tentar desfazer a carga negativa que a dor da morte tem para cada um de nós? Porque não, como última homenagem à pessoa que deixou de estar entre nós, recordar os momentos bons que essa pessoa nos proporcionou? Numa comunhão que desfaça a carga negativa de velórios e funerais, que afunda num manto de tristeza e de angústia as pessoas que, ficando entre os vivos, se condoem com a perda do morto.

Recordo-me da cena final do filme Philadelphia. Tom Hanks, no papel de um advogado que viu a sua vida ceifada pela SIDA, era alvo da última homenagem de seus familiares e amigos. Todos estavam reunidos na sua casa. Um vídeo era reproduzido, lembrando os momentos felizes da vida da personagem. Não havia choros, nem rostos sorumbáticos a destilar o pesar pela perda do ente querido. As pessoas conviviam umas com as outras, relatando as melhores recordações do seu contacto com quem tinha acabado de morrer. Pergunto-me se esta não é a melhor homenagem que se pode prestar a alguém que faleceu. Pergunto-me se não é a melhor forma de contornar a veia demoníaca que a morte transporta consigo. Para todos os que ficamos no mundo dos vivos, é a melhor solução para não sermos invadidos pelo fantasma da morte. Para diminuirmos o impacto da morte, que um dia há-de bater à nossa porta. Bem sei que os costumes sociais instituídos são uma poderosa barreira a esta inversão de mentalidades. Mas no mundo tudo muda com o tempo.

26.1.04

Ibéria, ainda

Do fim-de-semana vem mais um episódio que alimenta um fantasma de grande parte dos portugueses: uma união ibérica, em que Portugal perderia a sua independência ao ser engolido pelo gigante espanhol.

O mote foi dado pelo Expresso (entrevista a Jorge de Mello e editorial de José António Saraiva). De tempos em tempos convém alimentar o fantasma, para cimentar a unidade nacional. À falta de causas que sedimentem o orgulho de sermos o povo que somos, a tarefa cumpre-se recordando o cenário fantasmagórico da anexação pelos espanhóis. Este movimento especulativo vem na linha da crise de identidade que nos afecta. Não sabemos bem o que somos, nem muito menos queremos indagar acerca do nosso devir.

O fantasma da iberização é um disparate total. É como fazer recuar o tempo para uma era em que os países levavam a sério a possibilidade de anexações pacíficas ou violentas. É como ignorar que a soberania – esse bem que, nos dias que correm, tem tanto de valioso como de insignificante – já não tem o sentido que no antigamente levava os países a guerrearem-se com frequência. Quando se fala em globalização, quando se reconhece a emancipação dos interesses económicos em relação à política, imaginar a iberização é um delírio próprio de quem anda deslocado do tempo.

Como estúpido é argumentar que a crescente presença de interesses económicos espanhóis pode significar um atentado à nossa “soberania”. Estúpido, porque essas mesmas pessoas não erguem o seu descontentamento contra a presença de empresas de outros países. O que confirma a lógica oficial que vem dos bancos da escola, onde somos doutrinados a identificar o espanhol como o inimigo histórico. Esta doutrinação tem consequências bem nítidas na consolidação de um espírito anti-espanhol no subconsciente do cidadão médio. O espanhol está para nós como o cão está para o gato no imaginário popular.

Num certo sentido, é singular que a repulsa anti-espanhola venha sobretudo de sectores mais à direita. São estes sectores que defendem a economia de mercado (contra o intervencionismo arbitrário que as esquerdas não se cansam em elogiar), mas que a negam sob o pretexto dos espanhóis poderem, através da implantação empresarial, liquidar a soberania nacional. A imbecilidade do argumento é demonstrada pela resposta a esta pergunta: quem conhece um país que tenha sido politicamente anexado no cúmulo de um processo de “anexação económica”?

Uma nota final sobre este tema despropositado: alguém parou para se interrogar se a “Ibéria” interessa aos espanhóis? Não desminto que o espanhol é, por natureza, chauvinista e não esconde um comportamento expansionista, com exibição externa do orgulho pátrio. Mas a Espanha está a braços com graves problemas para manter a sua unidade nacional, fruto dos nacionalismos basco, catalão e galego que gritam as suas ambições independentistas. Neste contexto, como acreditar com seriedade num cenário de iberização? Como acreditar que os espanhóis, já afogueados com as suas dissidências regionais, olhassem com agrado para a hipótese da Ibéria – e assim ficassem à perna com mais um problema regional a somar-se aos que já existem?


23.1.04

Prado Coelho, neoliberalismo e igualdade

Eduardo Prado Coelho disserta hoje, no Público, sobre a “alter-mundialização”. Termina o artigo com uma tirada deliciosa:

A esquerda tem de manter a causa da liberdade (perante a liberdade estritamente económica e muitas vezes antiliberal do neoliberalismo), mas não pode abandonar os princípios de igualdade, que são a sua última e mais profunda razão de ser”.

Se ainda estivesse desorientado quanto aos azimutes ideológicos, tiradas destas vêm provar que não é para “a esquerda” que as minhas simpatias se inclinam. Aquela frase explica-o com nitidez:

1. “A esquerda” não hesita em sacrificar as liberdades individuais em nome de uma coisa bela que nunca há-de conseguir alcançar – a igualdade. É por persistir na ambição da igualdade que tantos atropelos às liberdades têm sido cometidos pela “esquerda”. Em boa verdade, interrogo-me se não será a sede de uma ilusória igualdade que constitui o pretexto para uma “esquerda” que necessita de passar por cima das liberdades como quem necessita de oxigénio para respirar.

2. Comentário final sobre o parêntesis de Prado Coelho (“perante a liberdade estritamente económica e muitas vezes antiliberal do neoliberalismo”): o que é a liberdade antiliberal do neoliberalismo? O intelectual sugere que o neoliberalismo se encerra numa contradição insanável, de ser antiliberal porque se filia apenas em liberdades económicas. Mas creio que quem perde o fio à meada ao seu raciocínio é o próprio Prado Coelho, ao deixar-se envolver numa daquelas construções elaboradas que se diluem em nada.

A urgência em catalogar o neoliberalismo como antiliberal constitui a prova. Em que ficamos: é neoliberalismo, mas anti-liberal? Ou se é anti-liberal (e presume-se que ele, Prado Coelho, afinal é um liberal – o que seria uma revelação extraordinária!), como se pode chamar neo-liberalismo?

Sobre a greve: uma opinião nada “politicamente correcta”

Sempre me intriguei como se pode ser tão condescendente perante greves, sobretudo quando elas são como a de hoje, greves gerais. Sei que esta ideia é, para os cânones do “politicamente correcto”, altamente censurável. Imagino que quem defenda a ilegitimidade das greves seja logo apelidado de “fascista”. É uma acusação fácil, que dá frutos nos dias que correm.

Não me importo com os que os outros possam pensar. Nem sequer vou gastar tempo indagando se esta é uma greve justa ou não. Parto do princípio de que não há semelhante coisa – “greves justas”. Elas representam uma coacção e não apenas sobre quem visam directamente atingir (empresas, Estado enquanto empregador). Grotesco é aceitar que as greves façam as suas vítimas colaterais, os cidadãos inocentes que nada têm a ver com as motivações do conflito laboral entre grevistas e o Estado.

O próprio elemento da coacção já era fosse suficiente para me insurgir contra a existência de greves. O facto dos sindicatos impunemente endossarem as culpas para o governo é ainda mais revoltante. Assistimos, com total passividade, à mensagem dos sindicatos: é por culpa do governo que existe a greve. Como quem sugere que se o governo fizesse a vontade aos sindicatos, não havia greve e a população não ficaria prejudicada. Curiosa esta visão da responsabilidade pelos próprios actos. No caso, de perfeita desresponsabilização. Como se pode confiar em que é perfeitamente irresponsável pelos seus actos? O direito trata tais pessoas como inimputáveis, com as consequências bem conhecidas.

O pior das greves é eles encerrarem um conflito de direitos: direito do trabalhador de recorrer a uma paralisação em nome das suas aspirações não atendidas pelo empregador; e direito dos cidadãos em geral, afectados que são pela paralisação dos serviços públicos. Sem contar com as consequências que vêm sempre atreladas a estas greves: a dificuldade em chegar ao trabalho; a impossibilidade de ter aquela consulta médica esperada há meses; o adiamento do julgamento, protelando uma justiça já de si ausente; o não saber qual a previsão meteorológica para hoje, etc. Em suma, o direito que assiste a cada cidadão de levar a sua vida corriqueira, rotineira, organizada. O direito à subsistência e ao bem-estar dos cidadãos ficam vedados pela excentricidade destes sindicatos que teimam em manter regalias irracionais para uma casta de privilegiados. Não hesitando em atropelar os direitos dos cidadãos que só querem chegar a tempo ao trabalho e fazer aquilo que os funcionários público pouco fazem – trabalhar, justamente.

Entretanto, anestesiados, resignamo-nos perante o direito à greve. Vamos aceitando, com pacatez, que os nossos direitos individuais possam ser pisados em nome de um direito mais “nobre” que é furiosamente gritado nos megafones por uma entidade representativa de uma minoria. Eis a democracia no seu resplendor: uma escassa minoria e atentar contra as garantias e os direitos de uma imensa, mas silenciosa, maioria. É pena que não apareça uma entidade (mas nunca um sindicato) que defenda os interesses das vítimas das greves!

Um comentário final. Esta greve tem qualquer coisa de paradoxal. Os sindicatos queixam-se contra a perda de poder de compra dos funcionários públicos, sentida ao longo dos últimos anos. Presume-se que muitos funcionários públicos estão a passar imensas dificuldades. Mas, na prática, parece que isso não sucede. De outro modo, como compreender então que os funcionários públicos se possam dar ao luxo de abdicar do salário correspondente ao dia de greve que fazem?

22.1.04

Imoral é discutir em público o aborto

Depois do referendo de 1998, eis que o tema volta à praça pública. As fracturas na sociedade portuguesa emergem de novo, perante a possibilidade de se legislar um regime mais favorável para o aborto ou de realizar um novo referendo. Os políticos andam num frenesim, ansiosos por conquistar mais atenção dos cidadãos. Quando, na verdade, é lamentável que este assunto seja trazido para o teatro da política. Porque se trata de um tema que interfere com o mais íntimo de cada um. Porque – mais importante ainda – invade um direito individual sobre o qual não deviam existir intrusões. Eis porque os políticos deviam ficar fora do assunto, em vez de tentarem obter proveitos oportunistas e perversos, como se fossem o abutre sempre à espreita de debicar uma carcaça fétida.

Este tema não devia gastar as energias da sociedade. Porque não deveria, sequer, chegar a ser um problema. Pura e simplesmente, o aborto deveria ser um direito concedido às mulheres que não desejam levar uma gravidez até ao final. Independentemente das motivações (o que poderá ser chocante, admito – pelo menos face às convenções dominantes). Sem descambar no folclore habitual dos movimentos que dizem defender os direitos das mulheres, e das esquerdas que se agarram com oportunismo a esta causa, a verdade é que cada mulher tem o direito de dispor livremente do seu corpo. Diria mais, para ser rigoroso e não descambar para um ultrapassado discurso sexista: cada ser humano tem o direito de dispor livremente do seu corpo.

Os que convocam razões éticas na luta contra o aborto agarram-se ao direito à vida do feto. Nem sequer vale a pena discutir a partir de quantas semanas deve o feto ser considerado um ser humano, para logo se concluir que o aborto equivale a um assassinato. Este exercício é uma falácia. Porque os nascituros, enquanto permanecem no ventre da mulher, não podem manifestar uma vontade própria. A sua existência depende de um outro ser humano. Sem a mãe que os transporta, estes nascituros nada são (em termos de direitos).

É aqui que a direita conservadora, presa aos preconceitos da religião, falha nos argumentos que utiliza. Uma direita que, nestas ocasiões, não hesita em ceder aos clamores totalitaristas da religião que a levam a esquecer o que de mais fundamental existe na condição humana – a liberdade individual. Aliás, é exactamente pelas conhecidas entorses às liberdades individuais que as esquerdas não podem reivindicar uma superioridade moral neste tema.

Mais lamentável ainda é a opinião dos que são favoráveis à despenalização do aborto. Esta opinião encerra-se num equívoco. Traz consigo um cheiro a hipocrisia. Despenalizar é manter a aura negativa de um crime para o qual a sociedade, com a sua benevolência, decide não aplicar as penas que estavam antes em prática. O ónus social mantém-se. As mulheres cometeriam na mesma um crime, que passaria sem sanção. Mas o crime ficaria a pesar na “consciência social”. Esta solução é daquele tipo de coisas a que estamos tão habituados num Portugal de brandos costumes e de meias tintas: nem carne, nem peixe.

Enquanto nos mantivermos presos a preconceitos religiosos, filosóficos ou políticos, e teimarmos em espezinhar as liberdades individuais em nome de pretensas garantias que autorizam essas excepções, continuaremos a passar ao lado das questões importantes. Continuaremos a insistir no acessório, desviando a atenção do essencial. E a manter o mau hábito de acharmos que temos que opinar sobre comportamentos alheios que apenas dizem respeito a outrem.

21.1.04

Mercado ibérico de electricidade com protagonistas errados: os sindicatos

A propósito da assinatura do acordo que criou um mercado ibérico de electricidade, registo um episódio que ilustra o país distorcido em que vivemos. Seguia no automóvel, ouvindo o noticiário da TSF. Notícia de abertura: a criação do mercado ibérico de electricidade. Um minuto, um minuto apenas, para noticiar que o acordo tinha sido assinado pelos primeiros-ministros de Portugal e de Espanha. Seis minutos para dar eco aos protestos dos sindicatos do sector que, no exterior, levantavam a sua voz contra este acordo.

A TSF deu expressão a esta desproporção gritante que, afinal, converteu os sindicatos nos verdadeiros protagonistas do acontecimento. Deixando que estes passem a sua mensagem eivada de erros grosseiros que apenas convêm aos respectivos interesses. O sindicalista entrevistado afirmou, impunemente, que os preços da energia vão aumentar, que vamos perder um sector estratégico para os interesses nacionais. Sem haver a preocupação de contrastar o outro lado da barricada com as acusações endereçadas pelas forças sindicais.

Entende-se que os sindicatos surjam mobilizados contra o acordo. Eles sabem que a EDP só consegue sobreviver se passar por uma fase de reestruturação que, certamente, levará ao despedimento de muitos trabalhadores que andam a mais na empresa. São ainda os resquícios dos “tempos saudosos” em que as empresas públicas eram cabides de trabalho. Nelas acumulavam-se pessoas que, por colocações políticas ou conivências de outro género, tinham que ser encostadas a um canto qualquer da empresa. Nem que fosse para fazer pouco mais do que nada. Não importando o que isso custava ao erário público. Porque, bem vistas as coisas, o erário público é o dinheiro de todos nós, mais fácil de gastar e terreno de eleição para decisões irresponsáveis.

Também se regista uma inovação: estes sectores, bem demarcados à esquerda (porque os sindicatos que ontem faziam ouvir a sua voz se filiavam na tendência comunista), são agora os paladinos dos “interesses nacionais”. Só assim se pode compreender a sua opinião de que a abertura do mercado ibérico vai expor um sector estratégico aos interesses de outro país. Regista-se a cambalhota retórica destes comunistas desorientados: quando antes eram os sectores mais à direita que estavam agarrados a fervores nacionalistas, agora são as esquerdas empedernidas que não hesitam em convocar o sentimento nacionalista da população em favor das respectivas causas. As voltas que o mundo dá!

Seria importante que a população sentisse que os interesses destes sindicatos não são os interesses da sociedade portuguesa. O despedimento de trabalhadores da EDP terá os seus custos sociais. Mas será legítimo continuar a sacrificar milhões de pessoas e de empresas, obrigando-as a pagar electricidade mais cara, apenas porque os trabalhadores da EDP estão à beira de perder as suas regalias? Parece claro que os interesses da sociedade portuguesa divergem dos interesses destes sindicatos.

Será que temos que dar ouvidos aos arautos da desgraça, quando eles desconfiam das virtudes do mercado ibérico de electricidade? Será mesmo crível que com a abertura do mercado à energia espanhola, mais barata, os preços não vão descer? Porque motivo estas aves agoirentas, que convivem mal com a concorrência e que olham de soslaio para o que vem do outro lado da fronteira, se recusam a aceitar o óbvio? A resposta é simples: embrulhados em preconceitos que vêm do passado, e nos quais a realidade não se revê, só eles se podem libertar desses tabus.

20.1.04

O véu da intolerância cai sobre o Estado laico

A anunciada intenção do governo francês de banir de locais públicos todos os sinais exteriores religiosos não pode passar sem uma reflexão. Escudado na ideia de que a França é um Estado laico, o governo pretende impedir que as pessoas usem trajes ou símbolos indicativos de uma certa religião em escolas, hospitais e outros locais públicos. Acredito que o objectivo é o de afirmar a igualdade de todas as confissões religiosas (sem excepção), para diluir a possibilidade de ofensas recíprocas em casos de intolerância religiosa bem evidente.

Estou à vontade na matéria perante o meu ateísmo. Se a intenção do Estado francês é dar mostras de imparcialidade religiosa, nivelando por baixo os direitos de personalidade das pessoas que tributam a sua fé, este laicismo é tenebroso. Como digo, sou ateu. O que não me impede de respeitar por igual todos os credos. Por um imperativo básico civilizacional. Porque sem o respeito pelas convicções do outro não posso ambicionar que as minhas sejam respeitadas.

Ainda que muitos venham esgrimir a bandeira da intolerância religiosa fomentada pelos fundamentalismos religiosos, não sou da opinião que esses radicalismos tenham que ser combatidos com excessos que se situam no pólo oposto. Não se pode neutralizar os fundamentalismos religiosos com atitudes que pretendem equilibrar os desmandos que deles resultam. Com esta opção, envereda-se por um caminho minado. Os fervores religiosos sentem-se mais acirrados com aquilo que sem esforço vêm como uma manobra persecutória. Em vez de se criarem as condições para uma convivência pacífica entre as várias confissões religiosas, acende-se o rastilho de um barril de pólvora.

A decisão do governo francês é, no mínimo, insensata. Se o país é multicultural, com a coabitação de diversos credos, aniquilar a liberdade de expressão que se exterioriza nos símbolos de identificação com uma religião é atentatória de um princípio em que se alicerçou a revolução francesa – a liberdade. Talvez por querer alcançar a todo o custo outro dos princípios que foi um bastião daquela revolução – a igualdade. Mas uma igualdade que é uma miragem, por ser contrária à natureza humana. E uma igualdade aplicada com base no mínimo denominador comum. Uma igualdade de mínimos que estorva a liberdade individual, que amputa um acto tão intimista como é a fé de cada um.

Eis um exemplo de como em nome de uma pretensa igualdade o Estado pode ter tentações totalitaristas, asfixiando a liberdade.

19.1.04

A fuga aos impostos - esse cancro social...

Do fim-de-semana, mais uma curiosa manifestação de cumplicidade em favor da luta contra a evasão fiscal. No mesmo fim-de-semana em que o governador do Banco de Portugal deu uma entrevista enunciando as medidas necessárias para tirar a economia da crise. E nenhuma delas preconizava uma luta mais intensa contra os que fogem do pagamento de impostos.

Ontem Durão Barroso exprimia a sua angústia pela premência do problema. Curiosamente, logo depois das recentes declarações da inefável Maria José Morgado, este Robin Hood de saias, versão moderna, que não se cansa de prosseguir a sua cruzada contra a criminalidade económica organizada, denunciando um Adamastor chamado “crime do colarinho branco” que anda de mão dada com uma corrupção crescente. Como se o aparelho do Estado passasse incólume no teste da corrupção, como se apenas os malfadados empresários que teimam em sorver os recursos do país em seu benefício (em vez de criarem e repartirem riqueza) fossem as únicas fontes deste mal.

As consciências agitadas que repousam sobre os esqueletos do Maio de 68 vivem enquistadas em delírios anacrónicos. Não conseguem superar o que resta da ortodoxia ideológica, por entre os esforços de moderação do que vêm de um passado de radicalização. Esta senhora tem um insólito acolhimento entre os órgãos da comunicação social – porque convém fazer a vénia a quem surge no papel de justiceira popular. Ela continua a engrossar o imaginário daqueles deserdados que não deixam olhar para os “malditos capitalistas” como alguém que existe para fugir aos impostos, para distorcer em seu favor as regras, como gente que não tem escrúpulos sociais e que, assim que pode, enriquece empobrecendo os desfavorecidos.

Já chega desta retórica bafienta. Já chega de apontar todas as culpas dos males que temos ao capitalismo. Já chega de obscurecer as alternativas, como se elas fossem mais justas ou proporcionassem mais bem-estar geral. Já é tempo de abandonar o dualismo sectário que vê nos empresários os maus da fita e nos trabalhadores os que são genuinamente bons, os explorados, aqueles que se não fossem os insondáveis mistérios do capitalismo estariam decerto numa situação melhor. E quem lhes dava emprego e o sustento?

16.1.04

Comércio livre ou comércio justo?

Nos últimos dias tem andado no ar uma polémica devido à livre importação de têxteis chineses. Argumenta-se que esta abertura às trocas com a China é imoral. Algumas das opiniões mais reservadas vêm de certos sectores da direita. Para eles, o comércio justo deve-se sobrepor ao comércio livre. Alguns sectores deste quadrante ideológico são, por natureza, partidários do comércio livre. Desde que daí não resultem distorções à concorrência, provocadas por inadmissíveis entorses a regalias sociais do trabalhador, ou desde que o comércio feito em condições favoráveis provenha de países onde vigoram ditaduras execráveis.

No fundo, o que está em causa é saber se os cânones do livre comércio devem comportar excepções. Estes desvios justificam-se com o pretexto de alicerçar um comércio livre, mas justo, entre todos os países. Para evitar que alguns consigam tirar partido de condições que outros já baniram da prática e das leis há muitas décadas. Trata-se de países que conseguem beneficiar de trabalho mais barato, apenas porque espezinham direitos sociais dos trabalhadores. Algo terá que ser feito para impedir os batoteiros de se aproveitarem da concorrência desleal, prejudicando aqueles países que jogam as regras do jogo.

Não tenho dúvidas em repudiar esta linha de raciocínio. Porque inscrever o “comércio justo” na agenda internacional traz consigo uma dimensão de incerteza que, mais cedo ou mais tarde, leva à aniquilação do comércio livre. Se existe conflito entre comércio justo e comércio livre, prefiro que vingue o último. Possibilitar a liberalização das trocas comerciais é sinónimo de progresso para os países que abrem as suas fronteiras. É sinal de mais bem-estar para as respectivas populações, que têm acesso a mais bens, de melhor qualidade, e mais baratos. Autoriza um aproveitamento dos recursos produtivos mais eficaz, porque não permite que através de barreiras ao comércio internacional prosperem os países que são menos capazes, ocupando o lugar dos que exibem maior competitividade.

O comércio justo é perigoso porque depende de medidas arbitrárias e de uma elevada dose de subjectividade. Um país pode ser acusado do pecado do comércio injusto, quando outro país, fazendo exactamente o mesmo, passa incólume na avaliação. A desigualdade de tratamento que fica exposta é suficiente para negar as pretensões dos defensores do comércio justo. Até porque, na maior parte das vezes, quem exibe a bandeira do comércio justo está a ajuizar em causa própria. São aqueles casos em que as importações vêm ocupar uma fatia do mercado que antes era reservada à nossa produção. À falta de melhor, manda-se para o ar o pretexto do comércio injusto para introduzir restrições às trocas internacionais. Para assim manter privilégios usufruídos por empresas nacionais, prejudicando os interesses dos consumidores.

Os benefícios do comércio livre superam os eventuais prejuízos que, pontualmente, certas indústrias nacionais possam sofrer em virtude da abertura ao comércio internacional. Era bom que os políticos fossem honestos ao ponto de admitir que as vantagens das barreiras ao comércio se concentram em poucos privilegiados (as indústrias protegidas) a expensas da larga e silenciosa maioria dos consumidores.

Era bom que as esquerdas parassem de erguer a sua voz contra o comércio livre, porque estão a dar um tiro no pé. Sim, se são as esquerdas que reservam o monopólio da preocupação pelos “interesses sociais”, deveriam ser perspicazes ao ponto de concluir que as barreiras ao comércio só interessam a uma reduzida casta que beneficia dos obstáculos às trocas comerciais. Estes são mais abonados do que os consumidores empobrecidos que se deparam com um travão a padrões de bem-estar mais elevados, porque são obrigados a “consumir nacional”…e mais caro. Aqui, o “nacional é caro”! É este o objectivo de certas esquerdas: travar o bem-estar dos mais carenciados?

A China é uma ditadura. Das piores excrescências que o comunismo ainda regurgita. Mas é de uma ingenuidade atroz imaginar que o comércio justo deve imperar para forçar as ditaduras a uma abertura política. Pelo contrário, é o comércio livre que pode proporcionar esta abertura. Não o ostracismo a que ficam votados os países onde vegetam ditaduras, quando se decide erguer barreiras motivadas pelo abjecto “comércio justo”. Não é através do comércio justo que as ditaduras vão cair. É bom que não se confunda o comércio internacional com o domínio mais vasto da política.

15.1.04

Santana Lopes, candidato à presidência da república: um espelho do país que temos

Perfila-se cada vez mais esta possibilidade, para gáudio de largos sectores da nossa comunicação social que esfregam as mãos com a ascensão de figuras mediáticas. Daquelas que auxiliam as vendas, por serem alvos privilegiados de atenção da populaça. Por conseguirem prender a atenção do cidadão médio não pelo seu valor intrínseco, mais pelo embrulho de celofane em que aparecem embrulhados. Pessoas que trazem consigo a luz cintilante do néon. Que fazem suspirar as tias solteironas, e que preenchem o imaginário de donzelas comprometidas que se recusam a assumir as suas fantasias. Pessoas que são mestres na arte da ilusão. Pessoas que já fizeram mil e uma coisas para estarem sempre na ribalta, sob a luz deslumbrante dos holofotes. Pessoas que se julgam imprescindíveis para elevar a moral e o bem-estar dos portugueses. Mesmo que tenham mentindo descaradamente ao longo de toda a sua vida política, sobretudo depois das derrotas que a vida interna do seu partido as tem brindado.

Santana Lopes corresponde ao perfil traçado. Para esta insólita personagem, o milagre das urnas transformou-o num vencedor, quando anteriores combates partidários o tinham colocado pela enésima vez às portas do abandono da vida política. Promessas de abandonar a vida política foram repetidas à exaustão, com dramatismo. Como quem lança um apelo à espera que a audiência, agoniada, clame para que o “Pedro” fique. Promessas todas incumpridas, aliás a preceito do perfil que encaixa no político típico dos dias que correm.

Santana Lopes é isto e muito mais. Sobretudo é o paradigma do que mais execrável existe no terreno minado da política. A aura que dispõe, muito alimentada por uma comunicação social a quem o glamour interessa, serve para apagar a mediocridade intelectual. Os “feitos” na Figueira da Foz e no que leva de mandato à frente da câmara de Lisboa são o capital de confiança que o levam a aspirar ao cargo de presidente da república. Para quem tem o céu como limite na sua ambição política, nada de surpreendente. Como aliás não há surpresa se se antecipar que Santana Lopes pode vencer as eleições e ser presidente de um país também ele medíocre. Estão bem um para o outro – Santana, possível presidente, e o país. Pela característica que os une.

Confesso que o cenário me agrada. Para quem tem uma certa admiração pela teoria do caos, que pode levar o país a erguer-se dos cacos para algo de alternativo que não poderá ser pior, imaginar Santana Lopes no cadeirão da presidência dá um certo gozo. Daqui a um novo passo que se precipita em direcção do caos, espelho da baixeza que campeia entre a população, do mundo cor-de-rosa e faz-de-conta em que vivemos absortos.

Se este é o país que temos, há alguma estranheza que Santana Lopes possa ser o seu presidente?

14.1.04

O Pacto de Estabilidade ainda não está morto!

Quase dois meses depois da desavergonhada decisão de não aplicar multas à França e à Alemanha pela violação do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), a Comissão cumpriu a sua obrigação. A esta instituição compete velar pela legalidade na União, como consta do Tratado da União Europeia. Depois de muito ponderar, certamente pela elevada sensibilidade política do assunto, a Comissão avançou com uma queixa contra o Conselho de Ministros por desrespeito do PEC.

Para quem acredita que deve existir disciplina orçamental a constranger a actividade frenética do Estado, esta é uma excelente notícia. Ela prova, ao mesmo tempo, que estão enganados os arautos da desgraça que já tinham decretado a sentença de morte para o pacto. Na verdade, cabe agora ao Tribunal de Justiça da União apreciar a decisão do Conselho que foi tão condescendente para com os repetidos défices orçamentais excessivos dos franceses e dos alemães.

Sem querer entrar no terreno da adivinhação, há alguns indícios poderosos que apontam para a culpabilização do Conselho de Ministros. O Tribunal tem-se destacado pela sua imparcialidade, apenas analisando as questões técnicas que cabem dentro das suas competências, sendo insensível a factores de ordem política que possam perturbar a sua actividade jurisdicional. Como o Tribunal também tem estado na vanguarda, alimentando avanços inesperados no processo de integração europeia, não é difícil prognosticar que a decisão do Conselho que espetou um punhal nas costas do PEC venha a ser declarada ilegal.

Se isto acontecer, os défices excessivos da Alemanha e da França vão ter que ser reapreciados. E não vejo que os políticos nacionais tenham o descaramento para fazer tábua rasa da decisão do Tribunal de Justiça e insistir na desculpabilização dos países infractores. Eis porque sou levado a acreditar que a queixa apresentada pela Comissão pode ser o balão de oxigénio que permite ao PEC escapar da extrema-unção que lhe estava a ser ministrada.

No meio da tormenta, já começam a surgir as vozes do costume a exibir a sua oposição à atitude da Comissão. Uns desfraldam a bandeira do fantasma do federalismo, considerando que por aqui pode passar um perigoso revigoramento dos poderes da Comissão em sacrifício dos governos nacionais. Logo, alvitra-se, existe perigo para a soberania nacional. Outros acham inconcebível que a Comissão tenha a ousadia de enfrentar os governos nacionais. Como se as regras comunitárias, que existem há quase cinquenta anos, fossem de repente votadas ao esquecimento. Como se fosse conveniente ignorar que é obrigação da Comissão funcionar como a guardiã da legalidade comunitária. E que para tal seja obrigada a impugnar as decisões do Conselho sempre que elas forem contrárias às regras que fazem parte do direito da União Europeia.

Se isto ilustra mais ou menos federalismo, pouco me interessa. Os detractores deviam reconhecer que é imoral caucionar o flagrante desrespeito de regras de boa convivência orçamental apenas porque os dois Estados membros mais poderosos não as conseguiram cumprir. Sem esquecer que foram eles os grandes inspiradores do PEC. Tudo isto concorre para o reconhecimento da ilegalidade da decisão que não aplicou as multas àqueles Estados membros. Como também se estende a passadeira para a imoralidade de tal decisão, que prejudica todos aqueles países que se esforçaram por cumprir as metas de disciplina orçamental. Países que agora são penalizados por serem “bons alunos”, enquanto os “maus alunos” recebem uma inusitada recompensa.

Esta notícia foi conhecida no dia de ontem. Hoje, o presidente da república deste país decidiu enviar uma mensagem ao parlamento versando sobre as finanças públicas. Uma mensagem repleta de recados para o governo, como se a política orçamental fosse uma competência do presidente da república. Não se compreende esta intrusão de Sampaio em competências alheias, o que é revelador de uma reprovável falta de solidariedade institucional (nem nos tempos de Eanes ou de Soares tal se viu…).

Também se deve registar a falta de oportunidade da mensagem. Uma das ideias difundidas foi a de que o PEC foi posto em causa, que até está às portas da morte. Como tal, assevera Sampaio, é tempo do governo mandar às urtigas a disciplina orçamental que tem sido perseguida. Parece que Sampaio esteve desatento às notícias de ontem. Um dia depois da queixa formulada pela Comissão (que pode ressuscitar o PEC), como pode Sampaio escolher este momento para insistir na falência do pacto como lenitivo para um novo rumo da política orçamental do país?

A resposta está mesmo diante dos olhos. Pressupondo que as finanças públicas dizem pouco mais que nada a Sampaio, temos aqui, uma vez mais, o dedo dos seus assessores para a área da economia. Alguns dos quais não se cansam em fazer uma travessia no deserto enfatizando a irracionalidade do PEC. Só assim se compreende que o presidente da república tenha aparecido a remar contra a maré, logo no dia seguinte à impugnação da decisão do Conselho que quis pôr o PEC em banho-maria.

Já estou mesmo a ver a comunicação social a aplaudir de pé a mensagem presidencial. Este será mais um acto para a cegueira colectiva que parece inebriar a comunicação social portuguesa, incapaz de compreender que o senhor presidente da república não é um deus com pés de barro.

13.1.04

O novo ícone da esquerda órfã do comunismo: Rosa do Luxemburgo

No último fim-de-semana reuniram-se em Berlim onze partidos de “esquerda”. O objectivo era a constituição de uma família política que constitua uma alternativa às famílias europeias dominantes – os democratas-cristãos e os socialistas.

A primeira perplexidade vem da qualificação “partidos de esquerda”. Tratando-se de partidos que resultaram da refundação de partidos comunistas, assim como de partidos de inspiração trotskista, como é possível distingui-los dos partidos socialistas? Ou será que estes últimos não são de esquerda? E, se todos afinal são de esquerda, como pode a comunicação social teimar na condescendência de evitar o qualificativo “extrema-esquerda” para os partidos que se situam bem mais à esquerda que os socialistas?

Segunda observação: confirma-se que o tempo deixa as suas marcas indeléveis. Estes partidos eram, não há muito tempo, adversários persistentes da integração europeia. Hoje pretendem-se alistar no movimento que vê na criação de partidos políticos de cariz supranacional a força motriz para uma maior democratização da União Europeia. Ou seja, estes partidos de extrema-esquerda deixam de estar fora do sistema e passam a ser peças da engrenagem. O que representa um notável esforço de domesticação da sua natureza anti-sistema que vem do passado. Ainda que seja patente a sua oposição ao modelo de integração que impera na União Europeia, pelo menos já deixaram para trás a repugnância ao processo de integração europeia.

Em terceiro lugar, registam-se alterações na iconografia. Numa romagem efectuada pelas ruas de Berlim, com o folclore que é apanágio destes movimentos, os cartazes empunhados testemunhavam uma homenagem a Rosa do Luxemburgo. Nem sinais de Marx, nem tão pouco de Lenine ou de Estaline. Também aqui os sinais do tempo deixam uma marca indisfarçável. Sinal de que o comunismo está definitivamente enterrado, apesar dos arroubos nostálgicos de certos quadrantes ancilosados (claro, o PCP).

É compreensível a mudança de ícones. É preferível, por ser mais cómodo, agarrar-se à imagem de Rosa do Luxemburgo do que teimar nas figuras estafadas de Marx, Lenine ou Estaline. É mais revigorante construir o futuro deste quadrante político com um ícone que foi perseguido. Melhor do que continuar agarrado a figuras que, ao invés, perseguiram, martirizaram e cometeram tantos atropelos às liberdades e à vida humana. Só assim é possível arregimentar novas fidelidades entre as gerações mais jovens que não se revejam no mainstream político.

A minha dúvida persiste: será esta mudança suficiente para que a comunicação social trate estes movimentos de forma tão generosa, apelidando-os de “esquerda”? Continuo a pensar que há uma diferença de grau e de acção que posiciona esta gente mais na extrema-esquerda – ou, se quisermos ser mais simpáticos, na “esquerda radical”. Não será com operações de cosmética na sua iconoclastia que se livram deste rótulo.

12.1.04

As “boas tardes”!

Quando uma pessoa entra num local e, por educação, decide cumprimentar os presentes, o “boas tardes” é a expressão mais escutada. Interrogo-me se a intenção é endereçar para cada uma daquelas pessoas uma “boa tarde” individualizada. À falta de melhor, porque não é cómodo entregar o cumprimento a cada uma das pessoas, a solução mais fácil é a de dirigir um cumprimento colectivo.

Será um capricho sublinhar a minha aversão a esta expressão. Como a outras expressões idiomáticas que têm conquistado terreno na linguagem, sedimentando-se nos usos e costumes sociais. Ainda que não sejam gramaticalmente correctas. Mas a tanto custo, sendo repetidas até à exaustão, penetrando no subconsciente de cada vez mais gente, tais expressões hão-de figurar no dicionário corrente.

Assim sucede com o “boas tardes” e como o enigmático “continuação”. Esta última é uma manifestação de outro vício que vai abundando entre os portugueses – a economia de palavras reflectida nas expressões de convivência social. Sim, porque o famoso “continuação” é uma abreviatura de “continuação de um bom dia”. Quem sabe se no futuro iremos desejar apenas “ano novo”?

Causa-me espécie porque se transforma o plural de um cumprimento corriqueiro só porque a audiência é composta por mais do que uma pessoa. Como fosse um atropelo às regras da gramática desejar um singelo “boa tarde” tendo como destinatário uma pluralidade de pessoas. Deseja-se uma boa tarde a todos os presentes, estilo "cumprimento à francesa"? Não parece de bom tom. Alguém, entre os presentes, pode sentir-se discriminado por apenas escutar “boa tarde”. Podendo pensar que ele está a ser posto de parte deste cumprimento, tal situação pode gerar inúmeros conflitos. O “boas tardes” é uma solução pacificadora, que traz a sã convivência para as relações sociais.

Ou será que estamos a desejar tantas boas tardes a tantas as pessoas que sejam agraciadas com a nossa cortesia? Ou, levando ainda mais longe a incógnita, será que o remetente dos votos é tão magnânimo que chega ao ponto de estender o seu desejo não só para aquela tarde, mas para a de amanhã, a de depois de amanhã, e assim sucessivamente?

Se a moda pega, um dia destes estamos a desejar “bons Natais”, “bons Carnavais”, “boas Páscoas” e por aí fora. Tudo porque quando dirigimos estes votos estamos perante uma plateia. Como tal, o imperativo de abandonar o singular e usar o plural. Os políticos, quando se dirigem na televisão aos portugueses (no Natal por exemplo), deverão dar o exemplo e mudar as fórmulas que habitualmente utilizam. Assim passaremos a ter, no encerramento da mensagem do presidente da república, um “aos portugueses, desejo os votos de bons Natais”. E em pouco tempo não me admiro se os apresentadores de noticiários abram os telejornais com o engenhoso “boas noites”…

9.1.04

O “fantasma da direita”

Há dias (6 de Janeiro) Medeiros Ferreira alertou no Diário de Notícias que a “direita avança”. Qual marcha onde soam os trompetes da inquietação, trazendo para a superfície uma retórica que deixa supor que o “fascismo” está aí mesmo ao dobrar da esquina, o deputado socialista jorra a sua preocupação contra a “deriva direitista” da actual coligação governamental.

Este é um peditório que começa a cansar. As esquerdas podiam vasculhar no baú da imaginação e encontrar estratégicas que as consigam trazer de novo para a ribalta. Não é com estes truques de esperteza saloia que conseguem mobilizar as atenções. Sobretudo das pessoas mais informadas, que sem esforço chegam à conclusão que quem se está a deixar enlear por um discurso de radicalização são elas mesmas, esquerdas, e não “o Portas”.

No seu artigo, Medeiros Ferreira investe contra a intenção do CDS-PP de alterar a Constituição: “(é) no projecto de revisão constitucional que melhor se cristaliza, neste momento, a deriva direitista da coligação e a influência decisiva de Paulo Portas”. O deputado insurge-se contra o anunciado objectivo de expurgar a Constituição das referências ideológicas anacrónicas, ainda presas à matriz marxista. Entre largos sectores da comunicação social a indignação é também partilhada. Diz-se que estas referências como que embelezam a Constituição, são uma datação necessária para que se compreenda o contexto histórico em que ela surgiu. Curiosa visão: não sabia que a Constituição era lugar de eleição para os antropólogos!

Em rigor, esta ideia do CDS-PP foi lançada num momento desajustado. Portas devia saber que não há condições políticas para aprovar tal revisão constitucional. Na verdade, o PS, empenhado da sua “deriva esquerdista”, com tantas afinidades com o Bloco de Esquerda, não sanciona esta vontade de mudança. Só por si este elemento bastaria para adiar a ideia. Sob pena de se andar a pregar no deserto e a criar anti-corpos contra uma futura revisão da Constituição que a torne ideologicamente neutral.

Mais estranho é ouvir e ler as opiniões de certos militantes das esquerdas e sentir quão ofendidos se sentem se a Constituição perder estes referenciais ideológicos. Parece que são eles os guardiães da verdade. Parece que tais referências devem estar presentes para todo o sempre, ainda que assim o país vá contra a maré da globalização que impõe uma prática bem diferente, nada tributária de socialismos e coisas afins. Esta gente parece não ter aprendido a lição da saudosa “irreversibilidade das nacionalizações”. Tão irreversíveis eram que em 1982 deixaram de o ser, desaparecendo do texto da Constituição. As esquerdas deviam aprender que tudo na vida é efémero. A única coisa que fica parada no tempo é a morte. O resto evolui – e quem não evolui pára no tempo.

Já começa a cheirar a bafio o argumento estafado que “esta direita” se está a inclinar perigosamente para um extremismo que não se sabe bem onde nos pode conduzir. É o que se infere das palavras de Medeiros Ferreira, quando avisa que “(a) pretexto de «neutralizar as referências ideológicas» da Constituição, o projecto da união PP-PSD pretende assinalar que quer mudar de regime”.

Qual o objectivo desta profecia? Alertar a população para o regresso ao fascismo? Como entender a expressão “mudança de regime” senão desta forma?

8.1.04

Liberdade de imprensa ou direito ao bom nome dos políticos?

Continuam os estilhaços do processo Casa Pia na sociedade portuguesa. Agora as atenções dirigem-se para os efeitos das cartas anónimas que foram juntas ao processo, onde importantes personalidades da vida política nacional são implicadas na pedofilia. A reacção não se fez esperar: como nunca a classe política, aqui e ali acolitada por alguns órgãos da comunicação social, apareceu em uníssono troando em voz alta contra os “excessos da liberdade de imprensa”. Invocando o direito ao bom nome, os políticos começam, sem pudor, a equacionar a possibilidade de apertar as malhas à lei de liberdade de imprensa.
Argumenta-se que a liberdade de imprensa está a ser encaminhada para excessos que levam a espezinhar a honra das pessoas cujos nomes aparecem enlameados na praça pública. Tal sucede porque as fugas vindas de dentro do sistema judicial não param de suceder. Que existe uma conivência entre tribunais e comunicação social, ninguém parece duvidar. De outro modo o desprezo pelo vetusto segredo de justiça não seria possível. Todavia, quem será mais culpado: o jornalista sequioso de sangue jorrado dos autos que deviam permanecer em segredo de justiça, ou o funcionário judicial que se presta a fornecer informações sigilosas?
O nível da comunicação social anda pelas ruas da amargura. Os costumeiros arautos da desgraça, aqueles que convivem mal com o saudável fenómeno da concorrência, não hesitam em levantar o dedo acusatório à concorrência selvática na comunicação social. Também era bom que olhassem noutra direcção. Que vissem que é a sociedade portuguesa que, tendo caído no engodo do espectáculo degradante, procura cada vez mais este tipo de manifestações de gosto duvidoso. Seja como for, é a lei da concorrência a funcionar. E se vivemos em democracia, deve-se corresponder aos anseios da população. Afinal a democracia não é o governo em nome do povo?
A resposta a esta pergunta é recorrentemente ignorada pelos membros da classe política. Uma deputada do PSD (Assunção Esteves) não hesitou em valorizar mais a dignidade pessoal do que a liberdade de imprensa, reclamando alterações na lei da liberdade de imprensa. Reflexo da mesma postura foi a atitude do inevitável Manuel Alegre, resistente combatente que surge na linha da frente sempre que urge levantar a voz denunciando os atropelos “fascizantes” contra a democracia. Sugeriu o deputado-poeta a convocação de um Conselho de Estado para debater o que deve o Estado (leia-se, a classe política) fazer para inverter este sórdido ataque que, nas suas palavras, está a ser feito contra a “república e a democracia”. A patetice do costume.
Como se pode aceitar que a liberdade de imprensa seja sacrificada, justamente no momento em que, mal ou bem, estão ser desnudados os podres de certos membros destacados da classe política? Toca-se numa ferida pestilenta que estava escondida numa redoma e logo surgem os anticorpos corporativos que irmanam os políticos numa cruzada.
A intenção é a de preservar as regalias e imunidades, alimentar o pedestal onde se colocam à distância do cidadão comum. O instrumento passa pela limitação de uma liberdade essencial numa sociedade modernizada que se quer informada – a limitação da liberdade de imprensa. Mais fundamental ainda porque contribui para a disseminação de um direito individual – o de estar informado – de milhões de cidadãos.
O custo desta restrição à liberdade de imprensa é muito elevado para o benefício que ele pode acarretar. Não merece sacrificar a liberdade de imprensa, e por aí votar os cidadãos à escuridão informativa, só para preservar os privilégios dos políticos. Arrepiar caminho nesta direcção é colocar o país à beira de um precipício feito de falta de transparência da acção política.

7.1.04

A União Europeia é anti-semita?

Organizações que representam os interesses judaicos estão em pé de guerra com a UE. Acusam a Comissão Europeia de anti-semitismo. Ao longo dos últimos dois anos a UE tem exibido maior imparcialidade no sangrento conflito entre israelitas e palestinianos. Afastando-se da posição de apoio descomprometido dos EUA, a UE tem sabido ajuizar com justeza a culpa nos sucessivos episódios de violência que, num rastilho a que não se vê o fim, Israel e integristas palestinianos teimam em incendiar.
O epílogo deste esfriamento de relações entre a UE e a causa judaica deu-se mais recentemente, com um episódio caricato. De acordo com os resultados de um inquérito de opinião conduzido pelo Eurostat, a maioria os cidadãos europeus consideram que Israel é a principal ameaça à segurança mundial – mais ainda do que os execráveis fundamentalistas islâmicos. Esta foi a gota que fez transbordar a paciência das organizações que pelo mundo fora defendem os interesses judaicos. Daí até se acusar a UE é anti-semita foi um passo muito curto.
E será? Que se saiba, entre os políticos europeus que ocupam lugares de destaque não há afirmações de ódio expresso contra os judeus. Nem tão pouco se descobrem iniciativas da Comissão Europeia para regressar aos dantescos campos de concentração, ou às câmaras de gás. Nem sequer estou ao corrente que haja alistamento de facínoras dispostos a infligir as sevícias nos judeus que se encontrem nos países europeus. Também não há notícia de que tropas europeias estejam a auxiliar os palestinianos no seu cego combate aos israelitas.
Por todas estas razões, as organizações que representam interesses judaicos devem estar a laborar numa confusão das grandes. Uma confusão com as palavras que se empregam quando acusam, de dedo em riste, a UE de ser anti-semita. Afinal, nos dias que correm esta confusão retórica está tão vulgarizada que nem sequer chega a ser surpreendente. A UE é anti-semita? Sim, tanto quanto os Estados Unidos andam de braço dado com Bin Laden…
Seria bom que os judeus espalhados pelos quatro cantos do mundo reconhecessem o direito da UE exercer a sua autonomia e ter um direito de opinião não condicionado pelos interesses judaicos. Porque, de outro modo, Israel e a causa judaica perdem pontos na sua afirmação internacional. Até porque esta teimosia de auto-comiseração, que serviu para alicerçar o seu notável poderio em termos internacionais, continua a ser a choradeira que convoca as sensibilidades feridas com o tenebroso passado histórico. Se hoje a UE é anti-semita, o que terá sido Hitler?

6.1.04

Aviões à prova de piratas, ou bombas aéreas em movimento?

A fobia de segurança dos EUA tem destas coisas que já nem são surpreendentes. A última novidade prende-se com a obrigação de todos os aviões que sobrevoam o espaço aéreo norte-americano serem obrigados a transportar polícias armados. Acredita-se que este é o factor de dissuasão que faltava para garantir a segurança aérea. Para que o terrorismo não venha outra vez dos céus, como no fatídico 11 de Setembro.
As perguntas que surgem no ar são muitas: como podem os EUA obrigar as companhias aéreas de outros países a respeitar esta imposição? Ou forçam a aplicação desta medida, ingerindo um pouco mais nos assuntos internos de outros países; ou recusam-se a receber aviões dos outros países – com o caos que se adivinha, pela paralisação do tráfego aéreo e pelos tremendos obstáculos à liberdade de circulação de pessoas que isso representa. Para um país que se afirma tributário das liberdades, este não é um exemplo de que se possam gabar.
Outra interrogação assalta o meu espírito: a presença de um polícia armado será suficiente para garantir a impossibilidade de sequestros de aviões? Partindo do pressuposto que os terroristas atacam em grupo, não lhes será fácil dominar o agente da autoridade? Como tal, não ficarão os terroristas na posse de algo – uma arma – que não podem transportar para dentro de aviões?
E quem pode garantir que os agentes de autoridade que transportam as armas são capazes de perceber os elementos essenciais de funcionamento de um avião? Mais ainda, pode-se assegurar que, numa eventual refrega, não haja balas perdidas que furam a fuselagem do avião, condenando-o a uma queda sem retorno?
São incógnitas a mais para se concluir que esta medida representa um passo adiante na segurança aérea. Pelo contrário, vejo nesta medida o lenitivo que os fundamentalistas islâmicos necessitam para retomar o terrorismo aéreo.
Sem surpresas. Afinal, em matéria de segurança – assim como em matéria de política externa – os EUA comportam-se como um elefante numa loja de porcelanas. Desajeitados e incoerentes. A cada passo que dão, um abalo telúrico que apenas tem o condão de acentuar a insegurança que grassa no mundo.
E, afinal, não será isso mesmo que os neo-conservadores norte-americanos ambicionam? Sem isso, como podem eles manter a política de visível autoridade dos EUA em redor do planeta?

Manifesto

O primeiro acto.
Dirão uns: mais um que escolhe a blogosfera para vincar um espaço alternativo às esquerdas que dominam o espaço político nacional. Nada disso. Este é um blogue para destilar o fel. Para afiar as garras e espaventar as consciências que dormem ao relento. Sem estar, nem um pouco, preocupado com as reacções dos outros. Um felino enobrece-se pela independência de espírito.
Um assomo de individualismo. Uma denúncia dos atropelos que deixamos que o Estado cometa. Supostamente em nosso nome. Como se nos deixássemos inebriar por uma anestesia injectada pelo Estado e contemporizássemos com os atentados sucessivos às liberdades individuais.
Vincar o direito de iniciativa privada, sem interferências do Estado. Sublinhar a essência individualista do ser humano. Valorizar o mercado como lugar de eleição para as trocas voluntárias entre cidadãos, sem a insuportável interferência paternalista do Estado.
Comentar. O que nos rodeia, no país e no mundo. Com acutilância, sem compromissos. Desde o acontecimento que não escapa à observação do mais desatento, até ao facto mais trivial.
Denunciar. Criticar. Pensar. Olhar para alternativas.
Criar - pelo menos, tentar. Com miados rebeldes.