23.2.05

Treinador de bancada

É nesta pele que me coloco. Tarefa difícil – há que convir. Como diz o adágio, de médico, de poeta e de louco todos temos um pouco. Talvez seja a assunção da última vocação que faz com que hoje, pela febre inusitada com que o futebol é encarado, cada um de nós tenha apetite para ser treinador de bancada. Ou então devemos estender o adágio, moldá-lo às exigências modernas: e acrescentar o treinador de bancada à tríade.

Hoje apetece-me exercitar o treinador de bancada que há em mim para opinar sobre o futebol caseiro. Andam os especialistas excitados com a enorme disputa pelo primeiro lugar, coisa nunca dantes vista. Os catedráticos da bola puxam lustro aos registos estatísticos a asseveram que a competitividade do campeonato lusitano nunca conheceu melhores dias. São cinco equipas que teimam, semana após semana, em ombrear no topo da tabela, separadas por escassos pontos. O entusiasmo é singular.

Este é o campeonato dos disparates, da mediocridade. O campeonato em que o vencedor vai ficar nos anais como o menos mau. É por isso que me confesso: se há ano em que não desejo que o meu Sporting seja campeão, este é o ano. Não quero ver o meu clube sair vencedor da contenda apenas porque foi o menos medíocre. Não é vitória exemplar. Não é vitória que mereça ser recordada. O campeão chegará ao final do torneio com quase tantas asneiras como os rivais. A diferença estará em ter asneirado um pouco menos, o que lhe trará a palma.

Com a sucessão de disparates em que as jornadas são férteis, este é o ano ideal para o Benfica ser campeão. Para matar as saudades de não-sei-quantos-anos-sem-ganhar-um-campeonato. A sede de vitória é tanta que os incontáveis milhões de adeptos do clube vermelho não olharão a meios para degustar o sabor já esquecido do triunfo. Até porque, num campeonato onde a mediocridade campeia, nada melhor do que a equipa mais medíocre, a que joga futebol mais fraco, a que não chega sequer a ter equipa na verdadeira acepção da palavra, para emergir com o título na mão. Para contentamento dos não-sei-quantos-milhoes de adeptos (as últimas contagens do inefável Vieira apontam para seis milhões; um dia destes ainda descobrimos que há mais adeptos do que cidadãos nacionais. Os falecidos e os nascituros devem entrar nesta contabilidade…).

Outro sério pretendente é o clube do Porto que veste uma camisola bizarra, com quadradinhos pretos e brancos. É um rival digno para o clube de vermelho vestido. Aliás, fico na dúvida: a quem assenta melhor o título? Diria que a emoção me inclina para o clube lá de baixo, o tal que tem mais adeptos do que almas vivas. É o apelo da comiseração pelos desgraçados. Guiado pela razão, os pratos da balança inclinam-se para o clube de bairro daqui de cima. Esta equipa é um equívoco: ainda não percebeu que se enganou na modalidade – em vez do futebol, devia ter escolhido o rugby. Parece uma agremiação de presidiários soltados ao fim-de-semana, desancando a ira do encarceramento nas pernas dos adversários. São um hino à antítese do futebol. Se os inventores britânicos da modalidade vissem os maus-tratos que esta equipa inflige à bola, decerto se arrependiam de terem sido os inventores do futebol.

Para mal dos males, a equipa mafiosa está atarantada com a necessária travessia do deserto, depois da glória por engano do ano passado. Mesmo assim, ainda aspira ao título. Apesar de já levar três treinadores, apesar do esoterismo do presidente-papa, que aposta em Zés como se eles fossem a panaceia, apesar do presidente-papa estar finalmente a contas com a justiça, naquilo que parece ser o início de um ajuste de contas com as manobras ilícitas que foi semeando em mais de vinte e cinco anos à frente da agremiação de azul e branco. É o canto do cisne. Depois do acaso do ano anterior, com tantos e gloriosos triunfos, este é o primeiro dos anos do ocaso. Depois da glória do ano anterior, era de esperar que fosse sempre a descer, até ao lugar que merece ocupar.

Diante deste panorama, parece que o meu Sporting é o menos mau. Mantenho, todavia, a ideia: não quero que seja o campeão. Porque, mesmo sendo o melhor, a irregularidade coloca-o a par com os medíocres, fazendo dele mais um medíocre. E se há coisa que não queria era ver o meu clube vencer um campeonato de medíocres.

PS (sem segundas intenções): o presidente-papa decidiu furar o blackout. Abriu a boca para o seu desporto favorito: o disparate, a apetência para cair no ridículo. Como se fosse esmerado comentador político, descobriu que a derrota do PSD foi o castigo da população portuguesa a Rui Rio. A cegueira tem destes efeitos. A cegueira, ou a burrice, nem sei bem. A visão paroquial da personagem não lhe permite alcançar mais longe. Afinal, há que redefinir o adágio: de médico, de poeta, de treinador de bancada, de comentador político e de louco, todos temos um pouco!

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