24.3.05

Amor em tons de laranja

Mais um capítulo para a saga da intrusão dos partidos nas coisas mundanas da vida, como se estivessem autorizados a opinar, interferir, condicionar todos os aspectos que fazem parte das coisas corriqueiras que só dizem respeito a cada indivíduo. Depois da sapiência totalitária de Joaninha Amaral Dias e do “sexo bom só à esquerda”, hoje a doce história de um jovem laranjinha que pediu a namorada em casamento do alto da tribuna do congresso da organização.

A imaginação é das coisas mais admiráveis do ser humano. Sobretudo quando é usada para nobres fins. No fim-de-semana passado, em pleno congresso da JSD, eis que chegou a hora de um devotado e anónimo militante subir ao púlpito para discursar durante os escassos minutos que lhe foram atribuídos. Para surpresa dos congressistas que, adivinho, já iam bocejando com a sucessão de discursos sem pitada de sal, num contínuo chover no molhado que os fazia suspirar pela chegada da diversão nocturna (bem mais apetecível), eis que aparece o companheiro que decidiu inovar. Em vez de perorar sobre política nacional, ou sobre o estado vegetativo em que o seu partido se encontra depois da débâcle santanista, tirou da cartola um pedido de casamento! A namorada, também delegada ao congresso, terá ruborizado com a ousadia, atrapalhada com a surpresa preparada pelo enternecedor namorado.

O congresso aplaudiu em uníssono. Estou a imaginar algumas meninas, mais dadas a estas coisas do romantismo, a deixar escapar uma lágrima furtiva pelo canto do olho. Imersas nos olhos marejados, perdidas numa salutar inveja da companheira bafejada pela maior sorte que se pode cobiçar. Em cada cabecinha feminina das jovens laranjas, a representação da felizarda que teve a sorte de ser a destinatária do mais insólito pedido de casamento. Usando um adágio popular, “sopa no mel”: para dedicados militantes da JSD, nada melhor do que aliar o útil ao agradável. Será um casamento politizado ao mais alto nível. Daqui vai a sugestão: que o próximo líder do PSD se ofereça como padrinho da boda.

Mas há o lado do pragmatismo. Esse lado cinzento da vida, que despreza as coisas enternecedoras que os mais dados aos afagos da emoção se apostam em mostrar. Esses corações empedernidos terão abanado a cabeça em sinal de desaprovação. São os incuráveis do desamor, ou apenas os que se recusam a misturar aspectos pessoais, a intimidade, com o exercício da vida partidária. E não terão razão? Por maior que seja a dedicação à causa partidária, por maior que seja o empenho na vida interna da organização, por maior que seja a aposta de futuro como garantia de um tacho recompensador que evite a exigência das qualificações, será que tudo isto justifica a mistura de planos – o pessoal e íntimo, com o dogmatismo das lides partidárias? É a banalização do amor.

Há manifestações públicas de amor eivadas de ridículo. Não o são os poemas, por mais lacrimejantes que sejam. Não o são as flores que se oferecem por nada a não ser um apelo vindo de dentro. Não o são as manifestações que raiam a loucura, detonadas por um gesto espontâneo, e que são o percurso necessário para agrilhoar a pessoa amada. Sê-lo-ão estes arroubos de imaginação que misturam as águas. Por mais que me esforce, não vejo cenário menos idílico para a exteriorização do amor do que um congresso partidário. Só um funeral seria capaz de rivalizar no absurdo do tempo, do lugar e do modo escolhidos para a proposta casamenteira.

Os mais emocionados com o momento encantador dirão: o amor não tem tempo nem lugar, pode ser afirmado a todo o tempo, em qualquer lugar, por qualquer forma que a imaginação humana descubra. Poderão dizer que os dois laranjinhas terão começado a namorar por se terem conhecido dentro da organização juvenil a que pertencem. E que fará sentido que o que deu início a uma frutuosa relação seja o lugar ideal para o passo que se segue.

Por este andar, sugere-se que a boda seja realizada já no próximo congresso do partido, em Pombal, dentro de semanas. Paga pelo partido, com a bênção dos barões que lá forem, e com o exclusivo da TVI. Que não poupará esforços para abrilhantar mais um momento que há-de puxar lustro às emoções resguardadas dentro de cada cidadão embrulhado no estertor de uma vida mundana, longe das emoções fabricadas em directo pela televisão do povo. Com o ámen à falta de qualidade que, grotesca, caminha a passos largos.

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