31.3.05

A morte do Pacto de Estabilidade e Crescimento: um caso de polícia?

Havia umas regras. Elas foram acordadas pelos governos dos países que formam um clube. As regras impediam que os governos gastassem demais. O défice orçamental não podia ultrapassar 3% da riqueza gerada anualmente em cada sócio do clube. A ideia pertenceu ao sócio mais poderoso – a Alemanha – por suspeitar que outros sócios, conhecidos por terem uma tradição desregrada, se aproveitassem da pertença ao clube para regressarem ao regabofe. Os alemães receavam que os países do “clube Med” (os do sul da Europa) retornassem aos défices exagerados, apresentando a factura aos sócios bem comportados, convocados a suportar a factura. Assim nasceu o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Previa multas pesadas para os países que descarrilassem para além do limiar de gastos considerável aceitável.

Mas a vida tem descaminhos que só o futuro revela. Foi a Alemanha (em parelha com o outro todo-poderoso, a França) que pecou pela primeira vez. E voltou a pecar, uma e outra vez, sem que as regras se aplicassem. Multas, nem vê-las. Expedientes, muitos. Argumentação sinuosa, negociações obscuras para protelar a aplicação das regras que levariam às multas, manobras debaixo da mesa para congelar o PEC. Foram os próprios jogadores (os governos dos países) que decidiram alterar as regras.

Esta novela é um caso de polícia. A começar: quando tanto se invoca os direitos dos consumidores como algo de sagrado, o episódio ilustra o defraudamento de uma categoria muito importante de consumidores – que coincide numa dupla faceta, de eleitores e de contribuintes. Como eleitores sancionamos, com o voto, a política de gastos e de impostos necessários para dar cobertura às despesas. Como contribuintes, através dos impostos que somos forçados a pagar, somos a chancela da política despesista.

Ora o PEC tinha uma virtude: limitava a irresponsabilidade dos governos quando usam o dinheiro dos impostos, esse dinheiro ingrato que é de todos nós e, por isso mesmo, nada custa a gastar de forma leviana. Ao fixar limites para a superação das despesas em relação às receitas, o PEC era uma garantia para quem paga impostos. E representava uma tentativa de gestão mais racional, menos politizada, dos dinheiros públicos. Com outra vantagem adicional: défices orçamentais sucessivos exigem o endividamento do Estado. Como a dívida pública é de longo prazo, a factura da leviandade política de hoje é endossada às gerações futuras, sem que elas se possam pronunciar – porque ainda nem nasceram! Mas já o inspirador dos coveiros do PEC (Keynes) sancionava: isso não é importante, porque no longo prazo estamos todos mortos…

Segunda razão para o caso de polícia: a perda de moralidade dos governos nacionais. Quem tem a autoridade para fazer e impor regras deve dar o exemplo. As regras do PEC foram profundamente alteradas porque os sócios eram incapazes de as respeitar. A imagem que passa é a de um jogador que se arroga ao papel de árbitro e muda as regras do jogo, porque com elas não conseguia vencer. Eis o belo exemplo para os destinatários das regras – de todas as regras – que nascem com a chancela do Estado: é o Estado o primeiro a furá-las quando elas não são convenientes. Dando motivos para os cidadãos seguirem o exemplo. Daí ao desrespeito das regras definidas pelos governos, um passo curto. Boas notícias para um anarquista…

Europa à deriva, com líderes frouxos, demagogos, com excesso de socialistas (e de outros oportunistas) a quem interessa o ambiente de laxismo orçamental como instrumento para políticas falsamente sociais que lhes permitem viver agarrados ao poder. É nesta Europa à deriva que os consumidores da arena política são alegremente enganados por quem governa. Há quem ensine que um dos maiores poderes de quem coloca o voto nas urnas é “votar com os pés”, impedindo a continuidade em funções de quem tenha governado mal. O truque que ilude o consumidor-eleitor-contribuinte é simples e recompensador para políticos vendedores de banha da cobra: passar a imagem que temos que permitir a capacidade de gastar para além das possibilidades, como se fosse a receita mágica para retirar países das crises ou para a sobrevivência do estafado “modelo social europeu” – a razão da falência da Europa.

Dizem que o Estado somos todos nós. Então porque não estender ao Estado o princípio que limita a capacidade de endividamento dos particulares? É verdade que hoje olhamos para todos os lados e as hipóteses de endividamento das pessoas se multiplicam. Mas tudo tem um limite – e os bancos estão ao corrente desses limites, negando pedidos de crédito que os ultrapassam. Seria lógico que o mesmo acontecesse com a gestão dos dinheiros públicos. Quando são insuficientes para manter todos os vícios do Estado, cortem-se esses vícios, limite-se o tamanho do Estado que continua a ser gigantesco.

Com as novas regras o PEC está morto. Veremos mais inconsciência política acobertada pela hipocrisia dos sócios do clube. Quem vai pagar a factura? O consumidor-eleitor-contribuinte que pediu dinheiro emprestado ao banco para comprar a sua casa. O mais provável é o Banco Central Europeu reagir, aumentando as taxas de juro. Se o consumidor-eleitor-contribuinte for inteligente, deve fazer tudo menos caucionar as decisões irreflectidas dos políticos incompetentes e irresponsáveis que conduzem os nossos destinos. Serão eles os culpados pelo emagrecimento dos orçamentos familiares depois do aumento das taxas de juro.

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