21.3.05

Primavera escondida

Chegou o equinócio da Primavera. Para o desmentir, o tempo pôs-se com um ar carrancudo. Vestiu as farpelas menos vistosas para receber a Primavera. Insiste em mostrar que ruma contra as marés do convencionado. Diria que neste tempo louco fervilha um espírito de contradição acentuado: quando se espera algo dele, oferece-nos o seu contrário.

Em boa verdade, a Primavera instalou-se há largas semanas. É inútil louvar de braços abertos a sua entrada que as folhas do calendário não deixam cair em esquecimento. E se hoje a chuva que se ausentou no Inverno se fez mostrar, se hoje acordámos com um dia cinzento a fazer lembrar o Inverno que não tivemos, é apenas para recordar que o tempo sossegado não se instala em definitivo quando a Primavera se põe no calendário.

Quem seja dado ao simbolismo das datas terá sofrido uma desilusão. Um equinócio primaveril pintado de tons cinzentos, com o peso do chumbo das nuvens carregadas de chuva, é a antítese da celebração da estação das cores alegres, dos odores que salpicam a atmosfera. É uma Primavera escondida que entra. Para quem espera ansiosamente que o calendário dobre as páginas da invernia, o tempo bonançoso dos meses anteriores já deixou no ar o cheiro a Primavera antecipada. A Primavera deu as alvíssaras dentro de uma estação que não era a sua. É o sinal do conturbado tempo em que vivemos, das alterações climáticas que trazem uma sensação de incerteza que baralha os sentidos, confunde as forças da natureza, enlouquece a normalidade climática.

O postal de boas vindas não ilustra a Primavera no seu esplendor. A tristeza não se deve apoderar dos cultores do simbolismo das efemérides. Eles sabem que o calendário tem os seus caprichos, que a própria Primavera é aqui e ali pontuada pela chuva abundante, pelo vento impiedoso, pelo frio convidativo do refúgio junto a um borralho. Sabem que um dia carregado de nuvens não é o prenúncio de uma Primavera de onde o sol se ausente. Nem o será o advento de uma Primavera que desminta as sementes de mudança que a força das convenções colocou em forma de letra, nos livros.

Teremos uma Primavera com temperaturas que convidam a trajar menos roupa, dias mais longos, noites que emagrecem até chegar o equinócio do Verão, quando elas começam de novo a estender-se. A eterna dança dos pássaros, que cantam loas ao tempo que se renova na imagem cintilante do sol que asperge uma terra que viveu na penumbra por tanto tempo. É ainda o festival da natureza, o rejuvenescimento das árvores e das flores, inspirados por uma Primavera aprimorada que traz alento às forças inatas da natureza que se soltam de meses de hibernação.

As mentes poderosas que se enquistam na Primavera generosa resguardam o poder do conhecimento bem junto de si. Também aqui há um mundo carregado de simbolismo. Uma Primavera política, de costumes, de comportamentos. Agora tudo é novo, os bafientos ares que empestavam a atmosfera foram soprados para outras latitudes. A Primavera também rima com a mudança que veio rejuvenescer a vida de todos nós. O povo recuperou a auto-estima – é o que anunciam os cultores do mundo cor-de-rosa, como se fossem sapientes alquimistas que, com uma varinha de condão, medem o pulso à sociedade em que vivem. Até o Benfica – esse clube que tem mais adeptos do que cidadãos nacionais – está bem encaminhado para alcançar um triunfo que durante anos a fio não passou de uma longínqua miragem.

Tudo está bem quando acaba em bem. Faz lembrar o argumento de um filme hollywoodesco, que sempre acaba com os bons na senda do triunfo, relegando os maus para o baú do esquecimento. Nisto, um refulgir da Primavera: o ânimo redobrado, a confiança recuperada, de braço dado com a memória curta. Esta memória que alcança só o que a vista miópica lhe permite ver é o espelho da falta de vocação histórica de todos nós. E um arremedo de como estamos convencidos que o futuro acaba depois de amanhã.

No adiantado dos dias que se esfumam no horizonte, quando os corpos estiverem cansados dos dias quentes do estio, chega o lugar da estação outonal. Ocasião para desmentir expectativas que vieram a rodos com a necessidade do optimismo. Que dará lugar ao realismo, que não demora nos desencontros do tempo. Todas as Primaveras são o lugar efémero das esperanças que renascem com a invernia enterrada.

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