30.5.05

O pecado do consumo

Este governo decidiu aumentar o IVA de 19 para 21%. É uma das medidas para sanear as descontroladas finanças públicas, depois do frete que o governador do Banco de Portugal fez ao revelar, no termo de uma encenação prolongada, que tínhamos um défice orçamental de 6,83%. Não vale a pena insistir na tecla que nunca é martelada pela classe política quando toca a corrigir derrapagens orçamentais: que a correcção se faça pelas despesas e não sobretudo pelo lado das receitas. Não vale a pena gastar tempo com um discurso de pregação no deserto. Para políticos atreitos ao populismo (em doses variáveis), as medidas fáceis agigantam-se sobre as medidas eficazes e racionais. Daí mais uma revoada de impostos para penalizar as nossas bolsas.

Era de esperar o aumento do IVA. Alguns economistas hesitam: dizem que o IVA é um imposto cego. Argumentam que este imposto penaliza o consumo, e como toda a gente tem que consumir um pacote mínimo de bens, o IVA não é justo. O imposto tem a mesma taxa independentemente do rendimento dos consumidores, o que representa (em termos relativos) um fardo mais pesado para as pessoas de menores rendimentos. Se este argumento estivesse correcto, o governo socialista daria uma estocada fatal na sua imagem de benfeitor das causas sociais, uma peça determinante da sua retórica bafienta.

Aquele raciocínio não está correcto. Porque o consumo é função do rendimento. Numa sociedade inquinada pelos “males do consumismo” (em semântica do agrado da extrema-esquerda que está na moda), quanto mais dinheiro se ganha mais se consome. Tomara os pobres e remediados chegarem ao final do ano e se gabarem que tinham pago muito mais IVA do que no ano anterior. Seria sinal da afluência material a bater à porta. Como são os mais endinheirados que mais consomem, são eles que mais contribuem para a fatia do IVA que o Estado arrecada. Eis o socialismo no seu esplendor: os ricos que paguem a crise! Imperativo de solidariedade irreprimível: mergulhado o país na crise, e sendo urgente inverter a tendência, a todos um sacrifício. Os que nadam em dinheiro que assumam uma quota-parte mais elevada.

A lógica do argumento é tentadora. Mas falaciosa. Do consumo de muitos depende o sucesso do negócio de muitos outros: dos que produzem, dos que intermedeiam os negócios entre produtores e comerciantes, dos próprios comerciantes. E, há que não esquecer, todos eles empregam muita gente. Se o consumo diminui em consequência do aumento do IVA, um efeito em cadeia põe-se em funcionamento. Atingindo, no final, os trabalhadores dos sectores afectados pela crise de consumo que se instalar. Menos lucros proporcionam menos rendimentos aos que trabalham, para não falar na possibilidade de se abrirem as portas a despedimentos.

Sei que os economistas trabalham com sofisticados cenários econométricos que antecipam os efeitos das medidas adoptadas. Imagino que os economistas que quantificaram a subida do IVA para 21% concluíram que o efeito na diminuição do consumo seria marginal. Logo, não afectaria a receita de IVA para os cofres públicos. O problema é a falibilidade das previsões dos economistas (como o demonstra uma escola de economistas – escola austríaca – que desconfia da exactidão científica da matemática ao serviço da economia). Raramente acertam, tantas são as variáveis que não conseguem dominar. Não tenho base empírica para a conclusão que se segue, mas vou apostar nela: feitas as contas, um IVA a 21% vai gerar menos receita do que um IVA a 19%. Não só porque a capacidade de rendimento dos portugueses está espremida, o que vai motivar uma diminuição do consumo. Mas também pelo incentivo à fuga que se instala com uma taxa de IVA mais elevada.

Quando comprarmos algo, sabemos que somos penalizados em mais de um quinto do valor com o imposto devido. Estranha forma de viver em sociedade. Parece que o consumo é a versão contemporânea das mensagens bíblicas. Então era a gula que tinha a cominação do pecado. Agora a gula assume uma nova roupagem: é o consumo em geral. Para apaziguar o pecado que nos consome a consciência, o benfazejo IVA iliba-nos da culpa. E o Estado enriquece a expensas dos nossos pecados, como abutre que debica nas nossas consciências tão atormentadas…

Para tudo funcionar na perfeição, não poderia haver fuga ao IVA. Daí que sejamos educados para exigir o recibo ou a factura em todas as transacções. Um imperativo de socialização, dizem-nos. Para que os espertos não trepem às costas dos cumpridores. Nem que para isso se organize uma lotaria que premeie o recibo exigido por um comprador consciente. A sugestão partiu de Miguel Beleza, antigo ministro das finanças, um dos muitos cobradores de fraque que estão sempre prontos a puxar da imaginação para resolver esse “problema grave” que é a evasão dos impostos.

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