28.6.05

A ditadura fiscal (o sigilo fiscal perdido)

É o desespero de causa. Quando se invoca o desespero de causa, a noção que se exige a solução final para resolver um problema. Tentou-se de tudo; e como os meios razoáveis se esgotaram, só resta a solução extrema. É aí que a ideia do desespero de causa emerge, como que a tentar justificar que o que à partida seria destituído de razoabilidade surja como a última instância utilizável para solucionar o problema.

Quando se discute a falta de sanidade das finanças públicas, o dedo aponta, invariavelmente, para o lado das receitas. A acusação dirige-se ao contribuinte relapso que não hesita em fugir às suas obrigações. A evasão fiscal é, na opinião maioritária, a grande culpada do desequilíbrio estrutural das contas públicas. Poucos desviam o olhar para o descalabro despesista do Estado-monstro. É a estafada lógica das “despesas rígidas”: diz-se que mais de 80% das despesas são intocáveis, argumento auto-blindado que faz dessas despesas uma matéria tabu, indiscutível. Sendo indiscutível, afina-se a mira para as receitas. Das duas uma: ou se aumentam os impostos; ou se agravam as medidas de combate à fraude fiscal, para impedir que muitos continuem a escapar ao pagamento dos impostos. (Ou as duas medidas ao mesmo tempo.)

A mais recente novidade é a diluição do sigilo fiscal. Já não bastava o levantamento do sigilo bancário, agora é possível que qualquer pessoa se desloque a uma repartição de finanças e exija a um zeloso funcionário a consulta de declarações de rendimentos alheias. É a instituição da devassa fiscal. De acordo com a lógica de quem pensou a medida, acredita-se que ela funciona como um elemento de pressão para os que fogem aos impostos. Estas pessoas vão andar com o fel do medo a povoar a existência, sabendo que não pagaram impostos na quantia exacta e que podem ser denunciados por um consciente cidadão que investigue declarações de impostos alheias.

Para os que aceitam a lógica de que os meios compensam os fins – coisa que abunda na ética de duvidoso recorte que se instalou – a medida é compreensível. Convivem, sem problemas, com a intrusão em dados que devem fazem parte da privacidade de cada um. Ironia do destino: quando tanto se reforçam as garantias de privacidade dos dados pessoais, com legislação detalhada a garantir tais direitos, abre-se um rombo no princípio para permitir a violação dos dados fiscais de cada pessoa. Como sou daqueles que põe acima dos objectivos os meios utilizados, suspeito que o levantamento do sigilo fiscal é um perigoso precedente. Não só pela incoerência de contrariar a maré da inviolabilidade de dados pessoais, mas pelas consequências mais profundas que se adivinham.

A possibilidade de consultar declarações de rendimentos é um maná para os invejosos de serviço, para os cultores da mediocridade. A abundância material do vizinho causa invejas que perturbam o espírito dos invejosos. Como não são capazes de chegar aos mesmos índices de bem-estar, os medíocres suspeitam da proveniência da abundância material do vizinho. Os boatos têm terreno fértil para prosperar. Agora que o sigilo fiscal foi destruído, os invejosos têm o caminho desbravado para investigar a ostentação do vizinho. O outro lado da moeda aparece com nitidez: a inveja leva à delação, quando os invejosos de serviço concluírem que algo não bate certo entre a declaração de rendimentos e os sinais exteriores de riqueza do “investigado”. É a nova PIDE, especializada em prestar informações relativas aos infractores fiscais.

Com esta brilhante medida, teremos metade do país afadigado a investigar a situação fiscal da outra metade (desperdiçando tempo valioso que podia ser um contributo para a produtividade nacional…). As denúncias hão-de crescer a um ritmo exponencial. É um excelente negócio para o Estado: não tem que reforçar o quadro de fiscais de impostos, já que terá ao seu serviço uma horda de invejosos dispostos a fazer o serviço gratuitamente. Esta é a ditadura fiscal que se prepara para avançar contra todos nós – sim, ninguém está livre de ver a sua situação fiscal devassada por um maníaco que vá consultar a nossa declaração de rendimentos; e ninguém se livra de denúncias, mesmo que os deveres fiscais estejam a ser cumpridos com um custoso escrúpulo.

É a bufaria do antigamente, reconvertida às novas exigências da “democracia fiscal”. Que se traveste de ditadura: não basta estarmos cercados de impostos por todos os lados (tendência reforçada pelas medidas aprovadas pelo governo para combater o desequilíbrio do orçamento); junta-se, agora, uma rede de voluntariosos espiões fiscais com as denúncias que trazem surpresas desagradáveis. É indigno. Espera-se que as consciências que sempre se inquietaram com a lógica de delação do Estado Novo denunciem a sua feição moderna, corporizada na quebra do sigilo fiscal.

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