13.6.05

O hino, o sagrado hino

Há notícias que se encaixam na perfeição no calendário. Esta foi lida na sexta-feira, “dia de Portugal, de Camões e das Comunidades” (assim rezam os dizeres oficiais). Noticia um requerimento apresentado por um deputado – por enquanto mantido no anonimato, para alimentar o efeito-surpresa – que se insurgiu contra o desrespeito da RTP por ter saltado o momento em que era entoado o hino portugês em Tallin, no último jogo da selecção nacional.

Vale a pena reproduzir excertos do requerimento do esmerado deputado. Acusando a RTP de “falta de respeito pela selecção nacional” ao ter preterido o hino por publicidade, o deputado asseverava, do alto da sua douta pena, que “honrar os símbolos nacionais é obrigação primeira do serviço público”. Sem se deter, concluiu o requerimento com um laivo de pedagogia. Foi dito que “a entoação colectiva do hino, acompanhada pelos jogadores da Selecção Nacional e pelos milhões de portugueses espalhados pelo mundo é um momento único de identificação nacional e de partilha emocional, que não pode ser ignorado por quem tem uma missão de serviço público”. Uma pérola do mais alto calibre! Tocante!

Agora deslinda-se o mistério. Quem foi o autor de semelhante arroubo de exaltação patrioteira? Um deputado de direita, decerto. Dizem os costumes que o fervor nacionalista é apanágio da direita trauliteira, que, agarrada aos preconceitos salazaristas, ainda estremece de emoção quando os símbolos da nacionalidade são evocados. São estes sectores que cantam o hino nacional com sentimento. São eles que prestam vassalagem à bandeira vermelha e verde com o escudo armilar. Para eles, o devir nacional sobrepõe-se ao indivíduo. Da sua cartilha faz parte uma retórica que enaltece os feitos de quem deu a vida ao serviço da pátria, de quem tombou em combate em defesa do grandioso Portugal.

É tempo de desfazer as ilusões alimentadas pelos usos a que estamos habituados. Afinal há esquerdistas que também dão para o peditório do patriotismo. Esquerdistas que não hesitam em usar palavras que, anos antes, eram vituperadas por eles mesmos. Quem ousasse, à saída da revolução de Abril, invocar a condição de patriota, ou exigir respeito pelo hino e pela bandeira, era apedrejado em praça pública por estar a aludir a símbolos que faziam lembrar os tenebrosos tempos da ditadura derrubada. Agora são os mesmos que se servem da retórica nacionalista para arregimentar fiéis às suas causas. Foi este requerimento, lavrado por um deputado socialista (por mais uns momentos reservado à condição do anonimato, para manter o suspanse…). Foram os inúmeros camaradas que falaram a sua mágoa pela morte do companheiro Vasco, de quem disseram ser um esmerado patriota. Espera-se que o mesmo seja dito do camarada Cunhal, depois da notícia da sua morte ter sido conhecida há minutos.

Cada um pode ser “patriota” ou “nacionalista” à sua maneira. É uma necessidade que emerge amiúde, sobretudo quando quem verte esse palavreado sente que os “símbolos nacionais” são o cimento para congregar multidões acarneiradas em redor do ideal, de um objectivo. Por isso, a perversão da linguagem que correspondia ao binómio esquerda-direita. A direita tem incorporado no seu discurso ideias caras à esquerda. Como as esquerdas não ousam em fazer a apologia de simbologias desde sempre conotadas com a direita, como é o caso da retórica nacionalista.

O deputado do PS que falou, com o protesto vigoroso da sua voz grave, foi Manuel Alegre. Alguém vindo da ala mais à esquerda do PS esteve com atenção à distracção da RTP. Ou os outros deputados do PS não tiveram tempo para ver o jogo da selecção nacional – crime anti-patriótico, ou não fosse passada a imagem de que a selecção de futebol é um símbolo do país que temos. Ou estes deputados ainda não aprenderam a lição de transformismo semântico de que o deputado Alegre é pioneiro entre as esquerdas.

Um dia destes ainda veremos o deputado Alegre protestar contra a perda de soberania nacional imputada aos avanços da União Europeia. Andará de braço dado com esse ícone do soberanismo à antiga que é Manuel Monteiro. Alegre será a voz dissonante dentro do PS, ou não sejam todos os deputados rosa instruídos para fazerem campanha a favor do sim no referendo (se o houver…) à Constituição Europeia. Sim, porque ninguém cala Manuel Alegre!

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