10.6.05

Rejuvenescimento paternal

Recuar no tempo. Resgatar a infância emoldurada na poeira do passado. São reminiscências dos tempos idos, dos anos da meninice, quando as brincadeiras eram o consolo diário e as despreocupações vagueavam com a teimosia da incompreensão da vida. Retomo esses tempos mercê da filha que cresce a pequenos passos. Não é o pai embevecido que se expõe. É o pai que tenta comunicar com uma filha ainda bebé, esboçando uma linguagem ininteligível que ela sabe perceber. Um pai que se perde em esgares que levam a filha à gargalhada empanturrada. Um espólio de brincadeiras que julgava perdido nos distantes anos da infância. No regresso ao passado, reinventar o espírito através da inspiração que vem, num fluxo incessante, da filha que me olha da profundidade dos seus olhos azul-acizentados.

São coisas distintas. Uma, o preenchimento da alma que a paternidade acalenta. Daquelas sensações que milhentas palavras são incapazes de reproduzir com fidelidade. Outra, diferente, é estar embrenhado numa comunicação que se vai tecendo, uma intimidade que esquadrinha os caminhos de uma identificação a dois. É aí que compreendo a agradável sensação de estar a reviver a leveza dos anos infantis: ao esgadanhar sons sem sentido que levam a filha ao sorriso espontâneo; ao mergulhar na barriga desnudada da bebé, esfregando o nariz com vigor, sorvendo a gargalhada que ela solta; ao nutrir um diálogo em que a língua se prende entre os maxilares e liberta perdigotos salivados acompanhados de um silvo bem audível.

Faço tudo isto na convicção de que a educação de um filho não deve ser dominada por laivos patéticos, o “gugu-dada” da praxe, as aborrecidas canções infantis que, dizem pedagogos encartados, fertilizam um crescimento adequado. Sinto algum egoísmo quando acabo por fazer aquilo a que, em teoria, me oponho. Sensato egoísmo, por sentir que a minha filha se acha feliz com as palhaçadas esboçadas pelo pai. Egoísmo puro, porque o pai se sente cercado por uma revoada de bem-estar ao descer à faixa etária da filha, resvalando para o “gugu-dada” (em sentido figurado…) que à partida depreciava.

Oito meses de experiência paternal. Meses imensamente ricos, meses de um crescimento inigualável, talvez pelo regresso à linguagem infantil que trouxe reminiscências de uma inocência perdida no processo de crescimento. Não é gratificante apenas por acompanhar, dia após dia, o crescimento de uma filha que é o repositório de muito amor. É gratificante por permitir desligar da terra, isolar-me da mágoa que é viver no mundo. Retomo, por instantes, naqueles momentos de cumplicidade com a minha filha, a infância que o tempo quis, mas não conseguiu, enterrar nas brumas da memória. Um mergulho às origens sacia a fortificação do espírito renovado.

Acaso houvesse necessidade de dar um sentido à vida, diria que assumir a paternidade a corpo inteiro é o milagre esperado. Dóceis gestos que merecem a retribuição de um sorriso envergonhado da filha gerada, um afago que a sua pequena mão repousa na cara do pai, a curiosidade que a leva a descobrir os recantos de uma face que a fita sem se cansar. Para o pai, a filha é a recompensa maior. O orgulho da arte criada, o regalo de a ver crescer todos os dias. Mas também a lufada revigorante que preenche o pai ao afagá-la no regaço, quando ela adormece no calor do seu peito, quando lhe muda a fralda e ela esboça o contentamento de sentir o corpo desnudado, livre.

Um amplexo de sensações que são a reinvenção do espírito, uma vivência revigorada, tónico para suportar com estoicismo as adversidades que a vida teima em semear no caminho. Que deixam de ter importância ao sentir o pulsar de uma vida frágil que está nas nossas mãos. A entrega de nós, na essência da virtude maior que os sentimentos podem conhecer.

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