14.7.05

O pecado (?) da gula

Questão prévia: para mim, não existe o pecado. É um legado do cristianismo, dos seus quadros mentais. Fomos habituados à nossa pequenez perante o “criador”, seres imperfeitos, atreitos ao erro, educados a admitir que pecamos e obrigados a expiar os pecados. Sempre na esperança de que a expiação dos pecados receba a condescendência da entidade divina, para que mais pecados sejam cometidos pelo tempo fora.

O pecado católico é um mistério. Quando erramos, das duas uma: ou temos consciência da asneira, e sabemos que a fazemos; ou só damos conta da asneira depois da vermos as consequências do acto, se ela não foi premeditada, devemos colocar este acto na gaveta dos pecados? Voltando à primeira hipótese: quando há o erro deliberado, podemos estar à espera da bondade da entidade divina no seu perdão magnânimo? Porque então todos podemos fazer as maldades do pior jaez, umas atrás das outras, sabendo que o perdão se desprende da mão generosa da entidade divina. Então o pecado deixa de o ser, pela indulgência do deus generoso.

Na simbologia religiosa, a gula é um dos sete “pecados”. Quando se fala em gula vêm à lembrança tentações alimentares a que, uns mais do que outros, somos dados. Aquele jantar faustoso em que as iguarias se sucedem à frente da vista que enche as medidas mais do que o estômago. Este é o ponto crucial: diz o povo que os olhos comem mais do que a barriga. Tirando os esfomeados compulsivos, os que têm anomalias hormonais que levam à ingestão maciça de comida, e os que têm um gosto apurado pela arte da gastronomia, é verdade que os olhos comem mais do que a barriga.

Por isso é que muitos chefes de cozinha se esmeram na arte da apresentação dos pratos que servem à mesa. Tudo se passa como se o sentido visual trouxesse uma ilusão ao sentido gustativo. Ou por serem muitas horas sem ingerir alimentos, ou por um qualquer mecanismo psicológico que desperta a atenção da vista para o embelezamento do pitéu, a primeira reacção ao repasto é de excitação. E as primeiras garfadas trazem uma satisfação ao palato que já não é reproduzida à medida que vamos para o fim da refeição. Os economistas descobriram uma lei que talvez explique o fenómeno: a utilidade marginal decrescente. O que contraria o pecado da gula: se atacamos com toda a vontade as primeiras garfadas (ou as primeiras dentadas) de uma iguaria, depois a satisfação vai diminuindo. Se calhar o “pecado” concentra-se nos momentos iniciais da degustação. É aí que tem o seu expoente máximo.

Ou terá o pecado uma medida relativa? Será um desafio à consciência daqueles que se deixam inebriar pelas tentações gastronómicas, passando por cima da subnutrição que condena ao definhamento milhões de pessoas espalhadas pelos países pobres? Então o pecado do eu é definido em função da carência do outro. Deixa de ser pecado, passa para o domínio das “injustiças” que semeiam um mundo desigual. E a menos que cada indivíduo responda hoje pelos erros dos seus antepassados que criaram as injustiças na redistribuição da riqueza, não vejo como censurar a gula pela carência dos países que vivem à míngua. Quando era mais pequeno e não queria acabar o almoço, diziam-me: “coitadinhos dos meninos que não têm que comer. Se não comeres tudo e for para o lixo, é um crime!” Nunca percebi a pedagogia: a comida que eu não queria, podia ser enviada para quem tem fome em vez de ir para o lixo?

A gula é na comida, como é na música, nos livros, num hobby, numa tarefa (nas mulheres?). A gula é a intensidade que aspergimos na vida, nas coisas que fazemos. Será a pressa de viver depressa, com o medo que seja a última vez que fazemos aquilo que gostamos. Nem que depois se regresse ao pátio do pecado, uma e mais vezes. A gula perdoa-se na consumição dos actos que são alvo da censura da consciência. Já que ela se concentra nos momentos iniciais da coisa gulosa, e se esbate com o seu consumo, é natural que se vá perdendo o rasto à gula. Acaba por se diluir no nada, haja a consciência que a gula, não sendo pecado (porque não existe), é o motor dos sentidos que fazem de nós seres que rejeitam a dormência.

A gula é o apetite de viver, com intensidade. Como poderia ser “pecado”?

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