2.8.05

Ai a maioria absoluta…

As maiorias absolutas fazem mal. Absolutizam o poder, na confusão entre o poder que se sustenta numa maioria absoluta e um autismo de tudo e de todos que se aproxima de um exercício totalitário do poder. Por isso fiquei preocupado quando o PS, finalmente, realizou o sonho de há muito perseguido – a maioria absoluta. Ao mesmo tempo, apostava que estes iam ser tempos de algazarra, para quem – como eu – já só se consegue rir a bandeiras despregadas com o amadorismo das figuras de quinta escolha que insistem em passar pelo cadeirão do poder.

Ainda a Ota. Depois de vários comentadores terem desafiado o governo a apresentar os estudos que justificam a racionalidade económica do aeroporto da Ota, esboça-se um tímido movimento do ministro da economia. No sábado publicou no Expresso um artigo onde ensaiava uma desastrada explicação. Sempre é melhor do que o seu colega das obras públicas, o ministro mais perigoso deste governo, que há tempos afirmou que se ia fazendo e se ia avaliando o impacto do projecto – estilo, “work in progress”, como se isto de mexer com largos milhões de euros dos impostos pagos por todos nós fosse coisa de somenos importância.

Pelo caminho, o comissário António Vitorino tranquilizou-nos, do alto da sua iluminadíssima tribuna, dizendo que “lá para Setembro, depois das férias”, os estudos justificativos iam aparecer no site do ministério da economia. Como se isto de colocar algo na Internet dependesse de um labiríntico exercício burocrático a que o pessoal que sempre se acobertou à mesa da função pública está tão habituado.

O desnorte é total. De uma imagem o governo não consegue escapar: estes mega-investimentos apareceram do nada, num abrir e piscar de olhos, a receita milagrosa que inventa empregos e impulsiona a adormecida economia para o fulgor há tanto prometido. Estudos que sustentam a lógica dos projectos, nem vê-los. Porque é impossível, no tal abrir e fechar de olhos, tirar esses estudos da cartola. Fica o registo do amadorismo que preenche o governo. Coisas feitas em cima do joelho, à boa maneira do desenrascanço nacional em que somos pródigos. Nada de novo: um governo à imagem da população (que o elegeu).

Felizmente a sociedade civil não dorme. Perante o ilógico que domina a Ota e o TGV, muita gente, insatisfeita com a arte de decidir em cima do joelho, exigiu do governo estudos justificativos. Foram mais longe, perguntando: quem são os proprietários dos terrenos onde poderá ser construído o aeroporto da Ota? Depois de alguns dias sem resposta, alguém conseguiu desemaranhar a ponta do véu. A investigação produziu resultados que só são surpreendentes para quem desconhece a cumplicidade entre partidos, personagens que empestam a política, e grupos empresariais que se banqueteiam à mesa do Estado. Uma das empresas que possui alguns dos terrenos está ligada ao grupo Espírito Santo. De onde saiu, directamente para o ministério da economia, o actual ministro.

Nisto da governação da coisa pública aplica-se a velha máxima: “à mulher de César não basta ser séria, tem que o parecer”. Se a tal empresa ligada ao grupo Espírito Santo for a proprietária de muitos dos terrenos do ex-futuro (oxalá) aeroporto da Ota, o ministro da economia tem muito para explicar. Da suspeição não se livra. E carrega um ónus pesado aos seus ombros.

Só os ingénuos acreditam no desinteresse com que os “servidores da causa pública” (políticos, assessores, quadros superiores) exercem funções. É natural que tomem decisões motivadas por interesses particulares. Mas convinha que tudo fosse feito com transparência. Para não levantar suspeitas de que utilizam a sinecura para enriquecer de forma inusitada. É em relação a eles que se justifica o levantamento de sigilo bancário. As suas contas bancárias deviam ser acessíveis a qualquer cidadão. Podem-me dizer que esta excepção é inadmissível, por fazer tábua rasa das regras de privacidade de dados pessoais que reforçam os direitos de personalidade tão em moda. Quem não deve não teme: a melhor forma de credibilizar o poder, de o tornar transparente, é desnudar o exercício patrimonial dos detentores de cargos públicos. Prolongando-o por alguns anos após a vacatura do poder.

Então sim, não haveria manobras de bastidores que levam poderosos grupos empresariais a aliciarem políticos, inclinando-os para certas decisões. Nem tão pouco o movimento oscilante “empresas-política-empresas” que leva a suspeitar destas cumplicidades. Que são censuráveis não só na pessoa de quem deambula de um lado para o outro, mas sobretudo para as empresas que dependem do Estado para a obtenção de avultados lucros (quando deviam, em homenagem à essência da iniciativa privada, desprezar essas relações).

Estas movimentações subterrâneas aparecem diminuídas quando os membros do governo se agasalham na maioria absoluta que os sufragou. Só numa democracia imatura a maioria absoluta é invocada para governar com estabilidade. O problema é a aura ditatorial que vem do passado não muito distante, e que parece infectar quem se enreda numa maioria absoluta. A tal confusão que os leva a entrar num terreno movediço, no autismo que alicerça a teimosia de governar em favor de interesses minoritários. Ao arrepio do princípio da boa governação democrática.

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