22.8.05

Futebol caloteiro

Mais uma edição do campeonato nacional de futebol. Antes que comecem as polémicas com dirigentes e as corruptas arbitragens que falseiam a verdade desportiva, o aquecimento faz-se com a dívida de 24 milhões de euros dos clubes ao fisco. Não há dinheiro para saldar estas dívidas, mas há verbas para fazer contratações caras (já não as contratações milionárias, porque o apertar do cinto chegou ao futebol) e para pagar salários que são uma miragem para o comum dos trabalhadores.

O futebol é o paradigma da mania das grandezas. Arvorou-se de privilégios incontáveis e de regimes de excepção. Quem não se lembra do lamentável “totonegócio”, artimanha saída do conluio recorrente entre política e futebol (ou os seus protagonistas não se confundissem tantas vezes), que deu aos clubes a flexibilidade para ir pagando as dívidas ao fisco e à segurança social? Os tais clubes, habitados a viver à grande e à francesa, mas que se iam esquecendo de pagar impostos e contribuições para a segurança social, numa desigualdade face a empresas normais e outros cidadãos.

O corporativismo dos agentes do futebol foi pródigo em argumentos falaciosos. As agremiações de futebol deviam ter um regime de excepção porque dão um contributo para a educação de jovens. Logo, cumprem uma “função social” de inegável importância. Puxando ao melodrama, houve quem atirasse poeira para os olhos do público, dizendo: enquanto os jovens estão a praticar desporto fogem da tenebrosa droga. Como se a maioria dos jovens cultivasse hábitos de prática de desporto, e esses hábitos dependessem da utilização das instalações desportivas dos clubes de futebol…

O corporativismo puxou lustro aos galões da nacionalidade: na competitiva indústria do futebol, não podíamos ficar para trás na competição com outros países. A grandeza nacional em muito dependia dos feitos além-fronteiras, das derrotas infligidas aos colossos do futebol europeu. Daí às loucuras financeiras um singelo passo, com contratações caras de craques de craveira mundial, salários com cifras impensáveis para o comum dos mortais – as mesmas pessoas que continuam a pagar preços elevados para assistir a jogos de futebol, caucionando o desequilíbrio de rendimentos. Por efeito de contágio, a lógica dos gastos sumptuários estendeu-se a todos os clubes nacionais. Se os mais poderosos elevaram a fasquia para terem ambições nas competições europeias, os mais pequenos não podiam aceitar que o fosso se agravasse.

Em defesa dos privilégios da casta, os seus fautores prosseguiram na senda do ilusionismo. Como desporto de massas, que arrebata as emoções, faz parar um país, domina noticiários de televisão pelos pormenores mais comezinhos, aos poderes instituídos só restava não afrontarem a tribo do futebol. Se não se começasse a pôr um travão à indignidade dos privilégios, a escalada não teria fim: em nome do poder da maioria (a maioria que se aliena com o futebol, que se deixa mergulhar no estúpido fervor clubista), qualquer dia teríamos o futebol a mandar no país. Pouco faltaria para esboçar a lógica dos números na sua associação democrática: seria anti-democrático afrontar os privilégios de um desporto que faz as preferências de uma imensa maioria.

Havia nascido um país dentro do país – um país futebolístico, cheio de privilégios, ostentando uma grandeza fátua, como se começou a verificar há poucos anos com o downsizing orçamental, os salários em atraso, as dívidas acumuladas. O panorama começou a mudar. Haja a coragem que apareceu nas palavras do secretário de Estado dos assuntos fiscais (que prometeu: ou pagam os clubes, ou pagam os seus dirigentes), e o futebol vai entrar nos eixos da normalidade. Regressará a um estatuto de igualdade com as demais indústrias, sem a falsa complacência de uma aparente missão de “serviço público” que não passa de oportunismo destilado pelos figurões do futebol.

Houvesse ainda mais coragem, e as contas dos clubes de futebol seriam saneadas com um passe de magia. A solução: proibir a inscrição de jogadores aos clubes que teimassem em manter dívidas à segurança social e ao fisco. Como as transferências mexem com muitos interesses – são elas que movem rios de dinheiro, para gáudio de uma trupe que faz fortuna à custa do sucesso alheio (dirigentes e esses proxenetas modernos chamados “empresários” dos jogadores) – todos teriam a ganhar com a redução das dívidas a zero. Seriam eles os primeiros a pressionar para o pagamento do que está em dívida.

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