23.8.05

Liga? E porque não campeonato?

Vamos sendo habituados a ouvir e a ler a expressão “liga” como designação do campeonato que junta as equipas que querem singrar no pestilento panorama do futebol. A ideia de chamar “liga” a um campeonato mete-me espécie. Socorro-me do dicionário. Que esclarece as minhas dúvidas – aliás, adensa-as, semeando mais incompreensão pela escolha da palavra “liga” como substituto de “campeonato”:

Substantivo feminino; 1. acto ou efeito de ligar; união; ligação; 2. sociedade ou associação com qualquer objectivo; 3. aliança entre Estados com o objectivo de defender interesses comuns; 4. mistura de substâncias heterogéneas resultando num produto final uniforme; 5. fita elástica para cingir a meia à perna; 6. obra de meia, feita com agulhas próprias; 7. Metalurgia: material que resulta da fusão conjunta de dois ou mais metais, dando um corpo macroscopicamente homogéneo; 8. Regionalismo: borras; de faca na liga: irascível; de má pinta”.

Há dois significados que se encaixam no que imediatamente entendo ser uma liga: os que constam dos números 5 e 7. Quando se fala de liga, lembro-me da liga que ornamenta a lingerie de senhoras mais ousadas, despertando a libido saltitante de homens que se arrebatam com estes pequenos artefactos cheios de significado erótico. Quando ouço a palavra liga, a mente também se direcciona para as ligas metálicas que por aí abundam, na construção, nos automóveis. Daí que, olhando aos oito significados possíveis do termo, há dois que se excluem quando se procura uma justificação para que o campeonato de futebol se intitule “liga”.

Se continuarmos por exclusão de partes, outros significados carecem de identificação com o campeonato que se faz passar por “liga”. Significado número 1: acto ou efeito de ligar; união; ligação”. Poderá haver alguma associação, se se entender que o que está unido, ligado, são os clubes de futebol que criaram uma entidade (a Liga Portuguesa de Futebol Profissional) que organiza o campeonato. Será uma liga no sentido institucional. A liga, neste contexto, é apenas o aparelho que organiza o campeonato. Não vejo razões para que o campeonato, o torneio que coloca as equipas em competição directa, deixe de se chamar campeonato para assumir as vestes de liga. É confundir a competição com o organizador.

Esta confusão vem ao encontro do significado número 2: “sociedade ou associação com qualquer objectivo”. Percebe-se que se chame “liga” à entidade que congrega os clubes de futebol profissional. Todos têm o mesmo objectivo: entrar numa competição, necessitando de uma entidade que a organize com credibilidade (ou sem ela…). A partir do momento em que os clubes entram no campeonato, cessam os “objectivos comuns”. Passam a ter objectivos antagónicos, quando entram em competição directa. Ganhar é o objectivo que depende da derrota dos adversários.

Os significados números 3, 4, 6 e 8 têm entendimentos específicos, situados num contexto que escapa ao mundo do futebol. Há uma aproximação quando o dicionário esclarece o sentido da expressão idiomática “de faca na liga”. A expressão tanto pode querer dizer “irascível”, como referir-se à “má pinta” de alguém. No mundo competitivo em que vivemos, o futebol destaca-se pela impressão de que não olha a meios para atingir os fins. Quantas histórias de corrupção que ficam por deslindar, ao não passarem dos vestígios que levam à suspeição? Quantas paixões exacerbadas, fermentadas pela clubite descontrolada? Quantos exageros de análise, que levam ao sobredimensionamento do fenómeno do futebol, estendendo a mão a iras gratuitas? Sem esquecer que no futebol abundam as personagens que se encaixam no estereótipo da “má pinta” – jogadores com penteados de gosto, no mínimo, duvidoso, corpos carregados de tatuagens que vão deixando cada vez menos pele à mostra, o mau carácter de levas sucessivas de dirigentes que aparecem para a vida mediática no tirocínio que fazem no mundo do futebol.

Ao chamar-se “liga” ao campeonato, alguém laborou num equívoco. O de fazer uma tradução literal (diria melhor, retroversão) do inglês para o português. É verdade que temos a “liga inglesa” (que agora tem, como designação oficial, “premiership” – fugindo da conotação “liguesca”), temos a “liga dos campeões”, e uma moda que se espalhou por vários campeonatos nacionais pela Europa fora, agora intitulados “liga”. Só que as traduções literais encerram alçapões que ferem a coerência do que se traduz. É o caso: o que faz sentido na língua inglesa perde coerência ao ser literalmente retrovertido para a língua portuguesa. Modismos…

Sem comentários: