17.10.05

Aniversário um – um conto evocativo

Abres os olhos pela manhã. No torpor de um sono sossegado, entrelaças os dedos enquanto vais trauteando uma cantoria. Que nos desperta. Não é choro – que esse fica guardado para as noites em que te visitam pesadelos com más personagens que, sem querer, vês na televisão. É apenas um melodiosa cantoria, a forma mais sublime de despertares os teus pais.

Espreitas entre as grades da cama. Sentes que chegámos, porque também te espreitamos em jeito de desafio. Ergues a cabeça e esboças aquele sorriso desarmante. Que cedo se faz gargalhada sonora, o teu bom dia para erguer a alvorada para um dia que se tonifica com o teu, nosso, despertar. Uma torrente de sensações que se renova a cada dia que passa, com as pequenas coisas que vais descobrindo, as pequenas coisas que nos vai oferecendo no teu desenvolvimento normal. E se antes tínhamos que te altear dos lençóis, agora pões-te em pé por nos veres à entrada do quarto.

São estes pequenos momentos que redefinem a vida. Pequenos nadas que vêm cheios de significado. É a alvura dos sentimentos que traz uma enxurrada de sensações para as quais nem todas as palavras do mundo são suficientes para encontrar descritivo. Bálsamo para os males que atormentam o espírito, a vida ávida que levas, com o pavio que não esgota naqueles momentos em que metes as pilhas novas e, esbaforida, contagias uma energia estonteante.

Momentos. Quadros que se imortalizam nas memórias. Não há fotografias que consigam captar a torrente de sensações que se destilam. Nem lapsos que a memória queira atravessar, para não escaparem esses momentos sublimes que são do tamanho do universo inteiro. Os momentos que levas para tragar um biberão, nos meus braços – os preferidos. Sofreguidão, o instinto de sobrevivência de horas a fio sem retemperar o estômago, avidez dos sentidos. Dedilhas o cabelo, o teu e o meu. As carícias que os teus carnudos dedos depositam na cara, no cabelo, pelas minhas mãos, são um mar chão de ternura que se espalha como cinzas joviais depositadas num aluvião de fertilidade. Semeiam a cumplicidade que amansa os caminhos que havemos de percorrer juntos, de mão dada, para que possas atravessar os contratempos da vida com o amparo que te é devido.

O teu crescimento é a nossa sensatez. Ver-te crescer, no dia que se segue, significa que também nós crescemos. O que aprendes nas doces veredas da curiosidade da vida são caminhos que nós palmilhamos, um trajecto onde cresceremos juntos. Os choros que soltas, as zangas que episódico mau feito semeia, os sorrisos que contagiam uma tranquilidade interior, ou quando gargalhas mostrando os tímidos dentes que se descobrem para a vida – tudo, e muito mais, uma lava incandescente que desce de um vulcão, tu, e que sacia uma fremente fome de vida de quem te trouxe para a vida.

Os aniversários hão-de suceder-se. Muitos, para deleite de quem pelo amor te contempla numa límpida câmara onde só o amor por ti existe. És a força maior desse sentimento, a sua renovação que impede que se perca no rasto das coisas que escurecem a vivência. E se momentos há em que o desencanto amargura, basta um olhar, um afago na tua pele suave, o ditongo imperceptível que comunicas, ou esse sorriso mágico com que nos agracias, para tudo voltar à sua forma original.

Renovado o espírito, então, pela aura incandescente que exalas, um frémito de vida que é o lenitivo maior quando se espalham os pós do desencanto. Ele, o desencanto, varrido pelas pétalas perfumadas aspergidas pela tua vida irradiante.

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