31.10.05

A cartilha do bom marialva

Há dias, a notícia de que uma mulher vai experimentar as sensações de um fórmula um. É uma pilota inglesa (não me ocorre o nome), com escasso palmarés. Porventura trata-se de uma operação de marketing da equipa, um charme fora do vulgar – e o fora do vulgar tem o condão de atrair as atenções dos media, arranjando espaço gratuito para as empresas que patrocinam a equipa.

Dias mais tarde, um dos pilotos do pelotão da fórmula um opinou sobre a iniciativa. Disse que a fórmula um era um desporto para homens, que as mulheres deviam ficar remetidas à condição de adeptas. E argumentou. Primeiro, é uma questão de aptidões físicas. Este é um desporto exigente para o físico, com as acelerações brutais traduzidas em forças que estão para além das possibilidades do corpo feminino. E depois lavrou sentença pastosa com um argumento bizarro: “estão a ver os mecânicos a apertar os cintos de segurança dentro do habitáculo? Estão a vê-los a ajustar os cintos enquanto percorrem os seios da senhora sentada no cockpit?

Faltava-lhe o argumento da praxe, quando se discutem os atributos femininos e vem à baila a aselhice média que caracteriza as saias ao volante. Jason Button, o tal piloto, esqueceu-se desse pormenor, ou na Inglaterra onde vive não existe o costume marialva latino de achincalhar as performances automobilísticas das senhoras. Quem não tem perícia ao volante está condenada a vegetar na cauda do pelotão em corridas de automóveis, poderia Button concluir na sua brilhante deambulação teórica, dizendo que as mulheres, pela dita perícia que se ausenta dos seus dedos, carecem da rapidez exigível para sentar o rabo num fórmula um.

Não aquilato a veracidade do primeiro argumento. Porque me apetece zurzir de Button e da sua preocupação de que o reino da fórmula um deixe de ser um acantonamento macho. Terá razão quando invoca o argumento físico como condição de exclusão das senhoras. A natureza incontornável. Mesmo a jeito para a sátira é a avaliação fantasista que Button faz dos problemas que os mecânicos teriam no momento em que os cintos de segurança são ajustados ao corpo de uma pilota. Para os que não estão a ver como a coisa funciona: o habitáculo de um fórmula um é uma cápsula onde se encaixa o corpo semi-deitado do piloto. A exiguidade do espaço obriga a que sejam os mecânicos a prender e depois ajustar os cintos de segurança.

Ora, para Button, os mecânicos sentir-se-iam constrangidos caso uma mulher se sentasse, corrida atrás de corrida, num fórmula um. No ritual de ajustar os cintos de segurança há um intimismo forçado entre piloto e mecânicos. Intimismo contra-natura, caso os mecânicos percorressem o corpo da pilota ao realizar a tarefa necessária para garantir a sua segurança. Da cabeça pequenina de Button vem a ideia unidimensional de que o tal constrangimento apenas está dentro da cabeça dos mecânicos que têm problemas em apalpar, ainda que involuntariamente, partes erógenas do corpo da pilota. Parece que a coisa não funciona no sentido contrário: a senhora semi-deitada no cockpit será uma ninfomaníaca que se deleita com esses momentos em que a turba de mecânicos lhe aperta os cintos de segurança.

Sem querer, o pouco inteligente Button está a chamar homossexuais aos mecânicos e aos pilotos que monopolizam o circo da fórmula um – e ele mesmo não escapa ao epíteto. Se os mecânicos sentem constrangimento pelas causas aduzidas, já o não têm quando executam a mesma tarefa em homens? Para quem está por fora dos pormenores, o cinto de segurança de um fórmula um tem seis braços que confluem para o mesmo ponto de encaixe. Este ponto situa-se entre as pernas dos pilotos, junto à matéria testicular. Segundo a (i)lógica de Button, os mecânicos sentem-se à vontade quando rondam com as suas mãos essa parte também erógena dos pilotos. Que, por sua vez, também não vêm problemas em saberem que as mãos de um homem quase acariciam o órgão reprodutor. Nada disto é estranho; coisa diferente se acaso uma mulher entrasse com assiduidade para o habitáculo de um bólide destes.

E eis como um argumento marialva se transforma num alçapão de cariz homossexual.

(No Montijo)

Adenda: algumas senhoras que percorrem pistas a alta velocidade já reagiram à boutade.

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