19.12.05

Flatulência e as absurdas convenções sociais

Entretida com um brinquedo, a minha filha solta uns sonoros gases. Esboça um sorriso de satisfação. Não porque as pessoas que a rodeavam se riram pela melodia engatilhada da flatulência. Ria-se de satisfação: aqueles gases eram sobras inúteis que o organismo guardava. O ar de prazer testemunhava a necessidade em libertar a flatulência. Afinal um desperdício, acaso seja obrigado a permanecer comprimido nas entranhas.

Revejo o episódio: as pessoas olharam para a minha filha e acharam graça à façanha sonora. Ponho-me a pensar se eu tivesse sido o artista da flatulência. Adivinho os olhares da censura social a caírem sobre mim, pela ousadia misturada com falta de educação. Convenções sociais exigem comportamentos formatados. Algures no passado, convencionou-se que os gases intestinais não podiam ser libertados em público. Pelo ruído que envergonha, mais pelo odor pestilento que certa flatulência empresta à atmosfera.

Faça-se uma comparação com o tabaco – e estou à vontade por me causar espécie a perseguição feita aos tabagistas: as mesmas convenções sociais que erguem o dedo aos gases que escapam dos intestinos, porque o ar empestado obriga a suster a respiração às vítimas, nada dizem quando um fumador solta golfadas carregadas de fétida nicotina. Os fumos que se desprendem das cinzas do tabaco rivalizam em pestilência com a variabilidade de aromas flatulentos. Têm o beneplácito dos usos sociais, dada a má convivência dos usos com a matéria escatológica.

Entre muitas razões, convenções sociais inoportunas e incoerentes fazem de mim a antítese de um conservador. Não percebo porque as pessoas se embevecem com a flatulência dos petizes e fazem um esgar de reprovação se acaso um impertinente adulto é apanhado no alçapão de sonoro gás vindo das entranhas. Dir-me-ão que um bebé não sabe o que faz, que ainda está nas trevas da racionalidade, tudo se lhe perdoa enquanto não passou pelo crivo da educação formatada. É um argumento incompreensível. As crianças de tenra idade estão longe da domesticação educacional; é isso que permite compreender o que é genuíno num ser humano longe do espartilho da socialização. Os bebés soltam os gases intestinais, metem o dedo no nariz, fazem ruídos com a boca que fossem feitos por um adulto o colocavam no limiar do internamento num hospício. São genuínos, não autómatos que seguem a marcha ordenada sem poderem passar o risco do tolerável pelo comportamento em sociedade.

A flatulência é vedada em público. Remetida para a intimidade do ser. Só aí nos é dada a liberdade de esvaziarmos as ventosidades que vagueiam, desnecessárias, pelas entranhas. O que nos é permitido fazer no refúgio de nós, sem ninguém à volta para denunciar a selvática demissão dos usos sociais, é um bálsamo para o reduto da nossa individualidade, uma fuga da socialização forçada a que somos remetidos. Na cela individual onde só cabe o nosso eu vivem os trogloditas maneios denunciados por zelosos fiscais dos costumes sociais. Quando somos respeitáveis seres sociais, prestando tributo às convenções, somos indivíduos espartilhados, lutando contra as forças indomáveis que vagueiam dentro de nós.

Os costumes sociais são voláteis no tempo. Coisas que nos são vedadas eram vulgares outrora. Ficamos mal no retrato se queremos urinar na rua, ou escarrar no chão (excepção aberta aos futebolistas), ou comer de boca aberta, ou poisar os cotovelos em cima da mesa à refeição, ou palitar os dentes depois de um lauto jantar. Algumas destas coisas eram corriqueiras no passado. Agora deixaram de o ser. Outras que eram intoleráveis são agora usuais. São modismos, tropismos que vão e vêm com as folhas do calendário que se desprendem.

Outras convenções sociais variam no espaço. Por cá, os arrotos são imagem de deseducação, uma espécie de flatulência que em vez de sair por baixo se solta por cima – mas também ela ventosidade que povoa inutilmente o organismo, à espera de ser expelida para o exterior num intenso alívio. Os árabes – ora vistos como civilização mais avançada, ora como ilustração das trevas civilizacionais – eructam no fim de uma refeição como sinal de aprovação pelo manjar oferecido pelos anfitriões. Ao mesmo tempo, sinal de agradecimento pelo convite para amesendar em casa alheia. Não soltar um sonoro arroto é um acto de má educação e sinaliza a má qualidade da refeição posta na mesa. Por cá, a eructação é um não uso social.

Lá como cá, apenas uma convenção, uma imposição incindível vinda do passado sedimentado, que ordeiramente acatamos para não sermos votados ao ostracismo social. Sinal da ditadura social que aniquila a essência de cada indivíduo.

1 comentário:

Anónimo disse...

A flatulência é de facto um "organizador social" de proporções imprevistas que quando bem conduzidas - de preferência com um isqueiro no local da detonação - produzem resultados capazes de fazer rir uma múmia!...Como é evidente este é um número de elevado risco que só deve ser conduzido por profissionais do sector!