29.4.05

De pequenino se torce o pepino (o cancro das juventudes partidárias)

Correm de boca em boca histórias de alunos que se fazem substituir por colegas em exames. Naquelas disciplinas que teimam em desafinar com as suas capacidades. Como há quem seja mais dotado, a amizade, a comiseração, ou uma boa maquia em dinheiro fazem o milagre de uma classificação de dois dígitos, quando nas tentativas anteriores um angustiante dígito era a nota possível.

Estas histórias correm de boca em boca, com a velocidade supersónica dos rumores. Como rumores que são, quase sempre não passam disso mesmo, de simples rumores. Mas em tudo há excepções. Recentemente deparei com dois casos destes. Dois alunos finalistas embirraram com a disciplina de Estatística. Exame atrás de exame, insucesso atrás de insucesso. Como se retardava a conclusão do curso, e como Estatística era a última disciplina que lhes faltava, restava o recurso final. Alguém foi em sua vez, e o redentor “dez valores” surgiu em pauta. Para azar deles, soube-se do episódio numa conversa de corredor captada por um funcionário. Para meu azar, que ainda carrego às costas a cruz de ser licenciado em direito, instruí os processos disciplinares que foram abertos aos alunos.

A aluna confessou que alguém tinha ido em sua vez. Aconselhada por uma advogada, que a representou, teve a dignidade de reconhecer que errou. E que estava arrependida. O aluno teve uma postura diferente. Na resposta por escrito desmentiu a acusação. E partiu para o ataque: considerava-se ofendido por o acusarem da fraude; e oferecia-se para provar que a caligrafia do exame de Estatística era a sua. Entretanto recolhi outros exames, noutras disciplinas, feitos pela mão deste aluno. Por coincidência ou não, em todos os exames a caligrafia coincidia. Já a do exame de Estatística era bem diferente.

Quando os alunos foram chamados para prestar declarações, os comportamentos mantiveram-se em bitolas diferentes. A aluna reconheceu o erro, pediu desculpa e prontificou-se a aceitar a sanção que a universidade decidisse. Já o aluno insistiu na arrogância, na impertinência. Reafirmou que esteve presente no exame de Estatística. Quando o desafiei a escrever um texto para provar a caligrafia, apesar do seu esforço apenas consegui obter uma terceira caligrafia – diferente dos outros exames, mas bem longe do exame de Estatística.

Remeti o processo ao conselho disciplinar. O parecer propunha a anulação da nota de Estatística para ambos os alunos (consequência natural da fraude), uma repreensão por escrito para a aluna e uma suspensão de trinta dias para o aluno. Achei que era a melhor forma de distinguir os comportamentos antagónicos dos alunos. Não sei se perante a arrogância e a teimosia que o aluno exibiu alguém mais rigoroso não proporia a expulsão. Os alunos foram notificados das sanções. O aluno, dando mostras de uma falta de inteligência própria de quem tenta esticar a corda, como quem vai em frente mesmo sabendo que o próximo passo pode ser um salto em vazio no abismo, enviou um e-mail aos membros do conselho disciplinar e ao instrutor do processo. Vale a pena transcrevê-lo:

Ex.mo(a)s senhore(a)s:

Tomei conhecimento há pouco da decisão do Conselho Disciplinar sobre o processo em que alegadamente eu estava envolvido (exame de Estatística). Gostava, apenas, de comunicar às pessoas que assinam esse documento que lamento o vosso erro. O que para vocês foi um simples assinar de papéis sem grandes implicações, para mim tem consequências imensamente prejudiciais. O único consolo neste momento é saber que não tenho nada que ver com os factos em apreço no processo. E como acredito na justiça, sei que a verdade será reposta – só é pena que isso vá durar tempo demais, obrigando-me a alterar os meus projectos de vida mais imediatos.

PS – Como a Universidade nunca se referiu aos reais indícios que originam as suspeitas sobre a minha presença ou não presença no referido exame de Estatística, também nunca será correctamente esclarecida.

O único comentário que se oferece é este: sem comentários! Ou melhor, sem surpresa, sabendo (como soube entretanto) que a criatura é membro da juventude do CDS-PP (Gerações Populares, ou lá como isso se chama). Há quem seja da opinião que as juventudes populares são do que há de pior no nosso sistema político-partidário. É aí que fecunda o espírito carreirista dos oportunistas de serviço que se acoitam à sombra das mordomias dos cargos que lhes caem em sorte. É aí que germina o caciquismo que destila outro dos fenómenos deploráveis da política caseira. Parece não haver lugar à indignidade. É gente que leva a tabuada bem ensinada. São eles que, como os seus colegas mais tarimbados na gestão da coisa pública, juram a pés juntos o contrário do que aparece à vista desarmada, com a desfaçatez de quem mente com os todos os dentes que tem.

É esta a geração que virá mais tarde desempenhar cargos de importância. Incapaz de romper com os maus hábitos dos mais velhos, reproduzem-nos com mais refinamento. É a “boa escola” das juventudes partidárias. Aprendem aquilo que os mais velhos já são e não hesitam em piorar o panorama. Pergunta-se: não há forma de os banir?

28.4.05

Quase sem dar conta, desfaz-se o mito da igualdade

É um legado persistente da revolução francesa. O tríptico da liberdade, igualdade, fraternidade. Na sua recriação contemporânea, a ênfase está na igualdade. Mais uma influência das certezas absolutas impingidas pelos quadrantes à esquerda, somos educados para destacar o valor da igualdade. Mais importante do que a liberdade (a fraternidade é só um resquício do lirismo emprestado à revolução francesa; entretanto caiu em desuso), somos instruídos na obrigação de tutelar a igualdade. Somos todos iguais. Desde a nascença até à morte. Uma igualdade decretada à força, ainda que ela seja contrariada pela observação da realidade, pelas condições diferentes que a natureza das coisas impregna à existência de todas as pessoas.

Vem isto a propósito da indignação que varreu o país por causa da libertação dos homicidas de um agente da Polícia Judiciária. As curvas sinuosas das manobras processuais que enxameiam a justiça possibilitaram a flagrante injustiça. Os indivíduos já teriam sido julgados e condenados pelo crime. Por um qualquer deslize de um magistrado, um prazo foi ultrapassado. No dia seguinte, os criminosos estavam à solta. Logo se ergueu um coro de protesto contra esta não justiça. Contra a justiça que acautela mais os detalhes processuais, se perde em pormenores técnicos e se esquece da sua essência – fazer justiça. Outras vozes viraram-se ferozmente contra os juízes. Que são relapsos, que trabalham pouco e mal. Que as suas funções exigem um acrescento de responsabilidade que impeça deslizes como este, que franqueou as portas da liberdade a quem não a merecia.

Não vou entrar nos meandros labirínticos da justiça (ou da falta dela). Temos especialista que já dissertou com abundância sobre a matéria, do alto da sua sapiência (outro guardião da verdade absoluta, o Prof. Boaventura). Pego no assunto para sublinhar como temos um povo que, do alto da sua indignação, distraidamente não percebe como se envolve num manto de contradições. Não é este o povo que está sempre com o valor da igualdade na ponta da língua? Não é este o povo que corre em socorro dos desfavorecidos, por serem as vítimas da iniquidade que nega o supremo valor da igualdade? Como entender a azáfama da censura social? Há que admitir, erros processuais como o que permitiu a libertação dos carrascos do agente da PJ são deploráveis. Mas nota-se, no caso, uma censura social ainda mais frenética porque a vítima foi um agente da autoridade.

Se a vítima tivesse sido uma pessoa anónima tudo isto passaria em branco – ou o alarido seria menor. A câmara ensurdecedora do ruído social, com os dotes apimentados da comunicação social, ampliou os efeitos do erro cometido pelo magistrado. Como estava em questão o assassínio de um polícia, o povo acha que a justiça deve ser mais implacável. Fiquei com a impressão que temos medidas diferentes para tratar casos que são iguais. Quando o assassinado é um agente da autoridade, a mão da justiça deve cair sobe o criminoso com o peso brutal de um bulldozer. Se a vítima não fizer parte do corpo policial, os juízes devem ser mais brandos. É aqui que a pergunta surge, inevitável: as leis são gerais e abstractas, como se ensina? Afinal somos todos iguais aos olhos da lei, ou há quem seja mais igual apenas porque usa uma farda?

O protesto social faz sentido quando os erros judiciais são tão flagrantes que fica à vista a denegação da justiça. O que deixa de fazer sentido é a discriminação que a sociedade faz em função da qualidade das vítimas. Como se fosse necessário dar guarida à ideia de que os crimes devem ter uma sanção mais dura quando as vítimas são agentes da autoridade.

É curioso que o povo assim pense. Primeiro, porque é o mesmo povo que suspeita sempre das polícias (quantas vezes os polícias são maltratados, porque perseguem o que o povinho considera ser o “crime menor”?). Invertendo o comportamento, quando chega o momento de fazer cair o peso da censura social, através dos julgadores que existem nos tribunais, esse mesmo povo pensa (?) que os polícias devem ter uma protecção especial, que os crimes de que sejam vítimas devem ser duramente punidos. Nem dão conta da desorientação em que mergulham!

Segundo, com esta atitude são os fautores de algo que muito me apraz. Apesar de não perceberem os efeitos da incoerência, são os primeiros a contribuir para desmontar o mito da igualdade. Por mais que a retórica oficial nos eduque na exigência de velar pela igualdade, são estes actos corriqueiros, com o alto patrocínio da “censura social”, que acabam por fazer cair a máscara: a igualdade é um simples mito.

27.4.05

O cínico optimista

Categoria bizarra. Lógico seria associar o cinismo a um pessimista militante. Ou o optimismo a alguém desprendido de sentimentos esconsos como o cinismo. Ele sabe que ser cínico é uma atitude desconstrutiva. Descomprometido de tudo, apenas atento aos achaques da sua consciência, aprendeu a ser cínico como defesa contra o exterior a si. Também a vida lhe ensinou que o cepticismo metódico (que redundava numa desconfiança permanente do mundo, no pessimismo recorrente) era penoso. Arrastava-o para o mundo sombrio, para as trevas que deixavam as marcas pungentes de um passado cercado por ironias vãs. Exangue, ficava desmotivado para encarar de frente os dias que estão na agenda do porvir.

Achou-se numa encruzilhada. Não queria prescindir da deriva niilista que o inscrevia na rota do pessimismo. Ao mesmo tempo, afogueado pelo mal-estar que o dominava. Um apelo para um caminho diferente. Um chamamento a ver o mundo com outros olhos. Ver nas coisas tenebrosas que preenchiam o mundo sombrio em que vivia coisas com a sua beleza. Era a quadratura do círculo que tinha que desvendar para se achar imerso noutra vivência. Ter a coragem – ou a covardia – de saber ler os sinais positivos nas coisas que estava habituado a trazer para o rol do cepticismo.

A chave para o dilema era tornar-se cínico. Tinha que alterar a maneira de encarar o mundo, num encontro forçado com o optimismo. O que convocava o cinismo. Cinismo com os outros, com o mundo que o rodeia. E cinismo com o seu eu. Sem saber se a redundância de si mesmo, mergulhado nesta deriva de cinismo optimista, não era uma caricatura daquilo que desdenhava nos outros. Aprender a ser mais um, sem ter o pretensiosismo de se achar tão diferente dos outros, como se deificasse a si mesmo. Aterrar, deixar de vogar sobre os outros como se fosse o observador privilegiado acima das suspeitas mundanas que fazem de todos nós simples mortais.

Seria um exercício de civilização de si mesmo. Um esforço de socialização. Na peugada do grupo a que pertence, num desassombro que o levava a desprender-se do espartilho individualista. Do espartilho que, por confusão, os outros por vezes viam como um acesso furioso de egoísmo.

Estava no limiar da transformação. Na charneira metódica de deixar de ser o que sempre foi para enveredar por uma estrada diferente. Por necessidade ou por convicção, não lhe interessava saber. Para não mergulhar em efabulações que só traziam perda de tempo. Tinha chegado o momento do pragmatismo. Embarcar nos usos e costumes de todos os outros, perder a chama alternativa, perder o rasto à teimosia de ser diferente. Encontrava-se perante este dilema: perguntava se a insistência no “ser diferente dos outros” não era só uma defesa de si perante eles, um expediente para fugir à normalidade abúlica em que os outros se deixavam ir, como água de um rio que não resiste em fluir em direcção à foz.

O dilema estava enraizado. Hesitante, não sabia se a mudança era sinónimo de cansaço do que era há tantos anos, ou se destilava a exigência de ser diferente – agora, não diferente da normalidade imperante, diferente daquilo a que estava habituado a ser. Nesta recriação de personalidade, moldava-se aos outros numa azáfama de socialização forçada. Daí a mudança – da natureza céptica, do culto do caos, do elogio à desconstrução; para o optimismo que engrandece, cardápio regenerador do que era dantes para o outro eu que queria ser.

Suspeitava que era uma atitude forçada, comprometida, fugindo da genuinidade. Num mundo que se ajoelha perante as finalidades, espezinhando os meios escolhidos, aquelas dúvidas eram relegadas para segundo plano. Na necessária mutação, sentia-se oportunista de si mesmo. Mas pressentia que o acto de regeneração era uma exigência necessária, como se fosse o derradeiro balão de oxigénio onde bebe a inspiração de uma vida com cor.

Na introspecção, uma dúvida persistia: não sabia se era um cínico optimista, ou um optimista cínico.

26.4.05

A “espanholização” de Portugal é perigosa?

E se um dia, ao acordar, estivesse desfraldada a bandeira amarela e vermelha de Espanha? E se um dia, de surpresa, Portugal passasse a ser mais uma região autónoma de Espanha? Eis o fantasma que amedronta os que excomungam o iberismo. Aqueles que, esbaforidos, acusam tudo e todos do pecado do iberismo, mesmo aqueles que, não o sendo, não renegam com vigor o espantalho de uma união ibérica que dilua a tão preciosa soberania lusitana.

Devemos recear uma espanholização de Portugal? A resposta remete para duas dimensões, separadas por uma diferença de grau. Por um lado, a hipótese mais radical, tão do agrado dos espanholistas que não desdenham construir um imperiozinho que abarque toda a península ibérica: uma união ibérica, fazendo ajoelhar Portugal ao jugo de Espanha. A segunda hipótese mantém as soberanias nacionais separadas, apenas abrindo as portas para uma crescente presença económica e cultural dos vizinhos espanhóis. No primeiro caso, o caos para os anti-iberistas – na forma de uma iberização política da península; no segundo caso, apenas uma espanholização de facto, conservando-se imaculada a virgindade soberanista que amansa as consciências dos que se querem separados dos vizinhos do lado.

O tema estava agendado há duas semanas. Data da primeira visita do neófito primeiro-ministro ao estrangeiro. Local escolhido: Espanha. Sócrates preparou o terreno para a sua primeira visita oficial ao exterior. Encomendou uma entrevista ao El País, enfatizando as três prioridades da política externa nacional: “Espanha, Espanha e Espanha”. Adivinho a indisposição gástrica que terá provocado nos anti-iberistas. De como terão interpretado esta afirmação: de como a leram de acordo com o sentimento de nacionalismo arreigado que domina o espanhol típico. A frase bombástica de Sócrates equivale a uma manifestação de subserviência, como se Portugal não alcançasse mais longe do que a fronteira pirenaica e toda a orla mediterrânica. Um país de cócoras diante de um gigante que se consuma nos braços tentaculares que nos asfixiam, aniquilando o nosso devir autónomo. Que cenário dantesco!

Há que descontar o fatalismo próprio de quem, como os extremados anti-iberistas, vê chifres na cabeça do cavalo. Estes fantasmas do iberismo deixaram de fazer sentido. Com a participação de ambos os países na União Europeia, a possibilidade de Portugal ser deglutido pelo papão espanhol só entra nas cogitações de alienados. Contudo, eles insistem, como se a hipótese fosse real. Concedo: por vezes, é difícil suportar a vaidade espanhola, que nestas coisas de apego nacionalista só rivaliza com os franceses. É difícil haver povos mais chauvinistas do que os franceses e os espanhóis. É interessante como dentro da península se encontram dois povos que contrastam nas idiossincrasias nacionais: nós, por natureza pessimistas, descrentes nas nossas possibilidades; os espanhóis, num elogio da grandiosidade que não têm, confiantes de que estão possuídos de um desígnio divino que faz deles um povo escolhido.

Ao descontar a possibilidade inviável da iberização política, fica a hipótese da espanholização de facto. É aqui que o empresariado português se distingue pela sua bafienta postura, ainda e sempre dependente da mão protectora do Estado. São os mesmos que protestam contra a presença excessiva do Estado, na forma da tentacular burocracia que é obstáculo para tudo e mais alguma coisa. Os mesmos que, sem capacidade para o jogo da concorrência internacional, estendem a mão à protecção divina que o Estado está habituado a conceder. São eles que reclamam oportunidades para entrar no mercado espanhol. Querem entrar no mercado espanhol da mesma forma que os espanhóis invadiram o mercado lusitano.

Um mar de equívocos: esquecem-se que os espanhóis entraram em força no nosso mercado sem precisarem de empurrões artificiais dados pelas respectivas autoridades. Apenas porque têm capacidade para tal – algo que às nossas pequeninas empresas ainda falta. É tudo uma questão de dimensão. E se as lamúrias antes se voltavam contra a “invasão” de espanhóis, agora os queixumes vão contra as dificuldades para entrar no mercado espanhol. Sem saber que, de ambas as vezes, as autoridades nada podem (ou devem) fazer.

É e curiosa a desfaçatez: protestam contra a espanholização do nosso mercado. Ignorando que a entrada de empresas espanholas só faz bem à economia nacional: elas são consumidoras de produtos nacionais, mantendo em actividade certas empresas portuguesas que, de outro modo, já teriam fechado as portas; e empregam muita gente, contribuindo para menos desemprego e permitindo que estas pessoas consumam mais (o que também é positivo para as empresas domésticas). É a espanholização da economia nacional que alimenta uma economia que não se perde nos rastos sombrios de uma pequenez cada mais periférica.

Uma interrogação final: porquê tanto temor em relação à “invasão” espanhola se, num contexto de globalização, pouco protestamos contra outras “invasões” – a norte-americana, a inglesa, a francesa? Dois pesos, duas medidas – ou o caminho da incoerência.

25.4.05

E depois, vão pedir emprego ao Vaticano?

Acusam a igreja capitaneada por Ratzinger de ser a emanação do mais grotesco conservadorismo. Numa das primeiras exibições do novo pontificado, em reacção a um presente envenenado do governo espanhol (a lei que legaliza casamentos entre homossexuais), o Vaticano reagiu de forma enérgica. Apelou aos católicos que trabalham em conservatórias do registo civil em Espanha para se recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. À boa maneira da cartilha de Che Guevara, a igreja convoca à objecção de consciência. Levando ao limite as consequências da sua recusa – mesmo que isso implique o despedimento.

Há alguns aspectos curiosos nesta manifestação desorientada do Vaticano. Primeiro, em bom rigor, não se trata de objecção de consciência. Quando alguém invoca objecção de consciência para uma omissão, esse é um acto puramente individual, ditado pelas convicções pessoais de quem se agarra ao argumento da objecção de consciência. Nunca o será quando o incitamento vem do exterior, de uma qualquer entidade a quem interessa o resultado da objecção de consciência. Aí a objecção de consciência deixa de o ser – individual, vinda de dentro para fora; será colectiva, imposta de fora para dentro.

Poderão os defensores da igreja argumentar que se trata de um obstáculo gerado pelas convicções da fé, logo uma objecção de consciência. Não o é no sentido puro da expressão. O que vemos é a hierarquia eclesiástica a tentar orientar a consciência dos católicos, mais uma vez negando a carta de alforria para a consciência individual. São consciências manietadas, as dos católicos. Mesmo neste insólito domínio da objecção de consciência (para a tradição eclesiástica), os crentes devem seguir as orientações superiores, que comandam os cordelinhos das suas consciências. Isto não é objecção de consciência. É ver nos católicos simples marionetas que são manobradas ao sabor das conveniências tácticas da igreja.

Segundo comentário: não é usual ver a igreja apelar à desobediência da lei. Talvez porque ao longo da história tenham sido episódicos os momentos de tensão entre o poder secular e o poder político, a igreja sempre fez parte do necessário respeito da lei. É estranho ver na igreja um foco de perturbação social. Deito-me a adivinhar o que aconteceria se os católicos espanhóis com empregos em conservatórias do registo civil correspondessem em massa ao apelo do Vaticano: um ambiente de desobediência civil que ofusca o bom funcionamento do Estado de direito. Para uma instituição que se diz conservadora, que aceita a necessidade das regras de convivência social, que tem pautado a sua conduta pela obediência da lei, ver agora a igreja a apelar ao não cumprimento da lei é sinal de estranheza. Mostra que a igreja muda de posição quando as regras vão contra os seus dogmas. Mergulhando numa incoerência de acção que era até agora desconhecida.

As voltas que o mundo dá! Quando os críticos desconfiam do novo pontificado por ele tresandar a conservadorismo, afinal a igreja mostra que aprendeu a lição da modernidade. Nisto de desobediência civil, parece ter sido boa aluna da cartilha revolucionária ao estilo Che Guevara. Quem diria? Afinal a igreja não é tão conservadora como apregoam as carpideiras de serviço. É revolucionária nos instrumentos escolhidos para que os seus dogmas não sejam destruídos por leis (para a igreja) ímpias.

Em terceiro lugar, falta saber se a igreja assume a sua responsabilidade na instigação à desobediência civil. Os clérigos reunidos no Vaticano tiveram a sensatez de avisar os crentes que, ao dobrar da esquina, pode vir o desemprego. Presume-se que seja a própria a igreja a reconhecer a justa causa do despedimento, para os casos em que a objecção de consciência seja utilizada. E que leve até ao fim a sua coerência: que dê emprego, nunca com remuneração inferior, aos católicos que tiverem obedecido ao chamamento do Vaticano e, pela desobediência à lei, tenham ficado no desemprego.

22.4.05

Tolerantes que se escondem na capa de uma covarde intolerância

Na Universidade do Nevada, numa aula de economia, Hans-Hermann Hoppe explicava aos alunos que certas escolas do pensamento económico desprezam o longo prazo. Para estes economistas, apenas interessam os efeitos imediatos das decisões políticas. O paradigma do modismo vem com uma frase do economista que tem a paternidade intelectual desta corrente (Keynes): “no longo prazo estamos todos mortos”. Sugere-se: olhemos apenas para o dia de amanhã, já que os efeitos prolongados das decisões que hoje tomamos só serão sentidos quando já não estamos entre o mundo dos vivos.

Hoppe referiu que a afirmação celebrizada por Keynes faz sentido quando se soube, depois da sua morte, que ele era homossexual. Procurava mostrar que o longo prazo estava fora das cogitações de Keynes: pois se era homossexual, não podia ter filhos, logo era razoável que não olhasse para o longo prazo porque não deixava linhagem, não tinha que acautelar os interesses dos descendentes.

Dias mais tarde, Hoppe foi incomodado por uma comissão de ética da universidade. Um dos alunos que assistiu àquela aula tinha feito uma denúncia. O aluno, homossexual, sentira-se ofendido com a mensagem veiculada por Hoppe, que era acusado de fomentar um espírito de discriminação em relação aos homossexuais. Hoppe andou quase um ano, de inquirição em inquirição, algumas delas com um odor persecutório bem evidente, até que finalmente se livrou da acusação (toda a história aqui, narrada pelo próprio).

Hoje é perigoso falar, é muito perigoso fazer declarações que, sendo mal interpretadas, vão contra os dogmas do pensamento politicamente correcto e trazem a acusação da intolerância. A armadilha é sermos reféns da falta de inteligência alheia. Estou à vontade no assunto: já por mais do que uma vez aqui afirmei que os homossexuais devem ter igualdade de direitos com os heterossexuais. Mas não posso aceitar que os imperativos da “discriminação positiva” (outro disparate do politicamente correcto) edifiquem uma retórica proibida. São os novos inquisidores, no papel de juízes dos discursos alheios, de olho atento aos que rompem o unanimismo do reconhecimento dos seus direitos. Sempre prontos a disparar setas envenenadas contra os que professam pensamentos homofóbicos. Pelo caminho, também são apanhados na rede os que, não sendo adversos aos direitos dos homossexuais, são mal interpretados nas suas afirmações.

O que Hoppe disse é mentira? Não. Por mais que lhes custe, os homossexuais não conseguem procriar. A natureza não deixa. Nem o avanço científico arrepiou caminho à fecundação de homens por homens e de mulheres por mulheres. Os casais de homossexuais não reúnem as condições para a maternidade e paternidade por métodos naturais (outra coisa é assumir essa condição através da adopção – direito que já aqui defendi, sem preconceitos, para os homossexuais). Fora dos casos em que homossexuais adoptem crianças (o que está muito longe de ser vulgar), é compreensível que eles se concentrem em exclusivo um no outro quando constroem expectativas de vida. Não há os interesses dos filhos para curar. Negar isto é tapar o sol com a peneira.

Teve Hoppe uma exibição de discriminação contra os homossexuais? Também não. Ser realista não é ser homofóbico. Quem foi assaltado pela confusão de sentimentos foi o covarde aluno homossexual que não quis dar a cara ao fazer a denúncia. De que teria medo? Represálias do professor – se este é que foi perseguido? Vergonha de desnudar a sua homossexualidade? Sentou-se ofendido porquê? Porque a natureza não o deixa ser pai (ou mãe)? Então acuse a maldita natureza. No fundo, o intolerante foi o denunciante.

Há que o admitir, a causa homossexual tem vindo a conquistar terreno devagar. A sua afirmação entre a sociedade tem sido uma batalha difícil. Cada centímetro progredido custa muito suor aos seus defensores. A maioria da sociedade ainda pensa que estamos perante um “comportamento sexual alternativo” – o que revela a forma distorcida como a homossexualidade é apreciada por largos sectores. É natural que os homossexuais clamem pela tolerância da sociedade, para que possam aspirar a uma total igualdade com os heterossexuais.

Ora quem carece da tolerância alheia não pode ter a arrogância de exalar intolerância por todos os poros. Não pode ver fantasmas em todo o lado, acusando quem não é homofóbico de o ser. Sob pena de perderem credibilidade, de serem os próximos campeões da intolerância, acantonados num reduto isolado que não favorece os seus interesses. Quando deparo com estas exaltações anti-homofóbicas que são um simples equívoco, apetece-me destilar a maior das intolerâncias contra os homossexuais que protestam, indignados, contra a discriminação que sentem cair sobre eles.

19.4.05

Morte ao relativismo (Ratzinger dixit)

Os católicos andam em pulgas. Na vacatura papal, as ânsias que seja anunciado o sucessor, o pastor que indica o caminho ao ordeiro rebanho. O acontecimento catalisa as atenções da comunicação social. Especulações sem conta, tentando adivinhar quem será o contemplado. No êxtase do nacionalismo inconsequente, andam as carpideiras caseiras num frémito: há dois candidatos lusos bem colocados para a investidura papal. A comunicação social só presta atenção ao conclave. Ainda ontem o noticiário das 20.00 horas na RTP já ia com 35 minutos e a notícia era sempre a mesma. A certo ponto as câmaras desceram às santas terrinhas dos dois cardeais lusitanos. Deram a palavra ao santo povinho que anda delirante com a possibilidade de ver um dos seus a ascender ao cargo papal. Dizia um ancião das beiras: “xe ixo acontexer, é como xe o xéu dexexe à terra”. Cansado, mudei de canal.

Naqueles 35 minutos de excitação colectiva, a RTP esqueceu-se de um pequeno detalhe que tem a maior das importâncias: um dos cardeais que parte com vantagem, o alemão Ratzinger, aproveitou uma missa para sovar o sacrílego relativismo. Culpou-o pelos males do mundo, pela intolerável perseguição às pessoas de fé, à igreja católica. Para a teutónica eminência, “estamos a avançar para uma ditadura de relativismo que não reconhece nada como certo e que tem como objectivo central o próprio ego e os próprios desejos”. Imparável, fulminou todos os que se arregimentam no caliginoso clube do relativismo: “o pequeno barco do pensamento dos numerosos cristãos é agitado por estas vagas, que oscilam entre um extremo e outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, do colectivismo ao individualismo radical, do ateísmo a uma vaga mística religiosa”.

Não admira que o cardeal alemão faça as delícias do esquerdalho que consome o seu tempo a zurzir na igreja. São atitudes destas que afastam as pessoas que sabem pensar pela sua própria cabeça. Há certas metáforas eclesiásticas que dizem muito: a do rebanho que segue sem pestanejar os ditames dos clérigos, é sintomática. Há os dogmas que alicerçam a fé. Ou se acredita, ou se é dissidente. Não há meio-termo.

Escutemos Ratzinger: maldito relativismo, a barreira que impede seres descomprometidos de se entregarem, de corpo e alma, aos destinos da igreja. É o relativismo que desperta as consciências para o viés da igreja, tenta fazer com que as pessoas se libertem do seguidismo cego, surdo e mudo que a hierarquia eclesiástica alimenta. O relativismo questiona tudo. Tanto que se afogueia num mar de incertezas: nada é certo, e dos debates nascem apenas novas perguntas a que se deve tentar dar resposta. Numa coisa o cardeal tem razão: algumas das facções que enumerou como o séquito do hediondo relativismo manifestam uma intolerância que é a antítese do relativismo. É o que sucede com a intolerância em relação à igreja, com as modas anti-clericais que falam alto, e com cólera, contra a igreja. Estas facções do relativismo cavam a sua sepultura: descambam para um tipo semelhante de intolerância que durante tanto tempo a igreja católica cultivou.

Não é a razão que importa para um relativista. É a tolerância, a discussão com o outro, a troca de ideias, salutar, apaixonada mas serena. Um relativista questiona tudo o que o rodeia. Desconfia dos arautos da certeza. Estes são os adversários de estimação do relativista. A sua dialéctica leva-o a uma encruzilhada: em vez de certezas, de respostas para as questões que se erguem no horizonte, apenas mais dúvidas. Talvez seja a não apetência pela certeza que leva católicos empedernidos (como Ratzinger) a censurar o relativismo. Porque sabem que só conseguem arregimentar fiéis se lhes incutirem um modo de pensar que invoque a certeza, a confiança nos dogmas oferecidos pelo catecismo católico.

Ratzinger devia saber que um relativista acaba por se embrenhar em contradições problemáticas: só tem a certeza que não há certezas. No que afirma uma certeza. Mas essa é a beleza do relativismo: reconhecer que a sua fórmula encerra a negação do enunciado. O que também causa confusão a quem está habituado a quadros mentais compartimentados, herméticos, à prova de qualquer rombo. Para um relativista, a ênfase está em provar que a mesma coisa pode ser vista de diversos ângulos, assim sejam diferentes os olhos através dos quais a coisa é observada. Na certeza de que mesmo esta “certeza” tem uma falibilidade angustiante para quem se afadiga em procurar certezas a toda a hora. A incerteza, essa é a única “certeza” que o relativista tem como adquirida.

18.4.05

Como se fosse o “Taliban do norte”*

(*Alcunha do sempre imparcial Miguel Sousa Tavares. Que aceitou o convite para opinar neste blog sobre o terramoto noticioso do fim-de-semana)

Como sabem os meus admiradores – das crónicas semanais no Público e em A Bola, e os que seguem as intervenções na TVI – tenho um dom que me persegue: quando digo ou escrevo algo, sei do que estou a falar. E fico mal disposto quando surge qualquer energúmeno desmiolado que ousa discordar da minha eloquência.

Serve o prelúdio para apresentar o tema que me traz hoje ao convívio dos leitores através de uma via alternativa, simpaticamente colocada à minha disposição: o blog O Felino. Aquele que se gaba de ser o “jornal de referência” deixou-se enlamear pelo estigma da imprensa sensacionalista. Mais uma vez. Só que agora pisou-me os calos. A notícia de capa alude a passagens do processo que implica agentes muito nobres do que outrora apelidei a “indústria mais competitiva de Portugal” – o futebol. Na inconfidência de um algoz do meio judicial, a quem se adivinha terem sido aquecidas as mãos com dinheiro que jorrou em abundância, mais coisas vieram a lume. Para queimar a imagem do grande presidente desse clube emblemático que, sozinho, já conquistou mais do dobro de taças europeias do que as duas agremiações da segunda circular em conjunto.

Lá vem o Expresso levar a boa nova, enchendo de contentamento os pérfidos detractores de Jorge Nuno Pinto da Costa. E, de caminho, tentando empurrar o FC Porto para o descrédito, impingindo a ideia de que as vitórias acumuladas no passado recente tiveram um cunho extra-desportivo. Maus perdedores, é o que são. Em vez de se curvarem perante a grandeza da instituição azul e branca; em vez de prestarem vassalagem pelas vitórias que encheram a boca destes patrioteiros de meia tigela; em vez disso, o seu contrário: a perseguição impiedosa dos matreiros seguidores dos clubes da capital, dessa coligação ignominiosa que só ficará satisfeita quando vir o FC Porto disputar outro campeonato (o que nem é má ideia: para estabelecer a diferença de calibre, o FC Porto num campeonato europeu de clubes, os da segunda circular entretidos com a pequenez do campeonatozinho doméstico).

Chega-se ao desplante de sugerir que a consequência será a descida de divisão do FC Porto. Alegres, os arautos da desgraça lambuzam os dedos com a ideia a desfilar na sua pacóvia imaginação. Há lá coisa melhor do que ver o FC Porto arrastar-se pelos campos da segunda divisão, competindo com o Felgueiras, o Feirense, o Espinho, o Portimonense? Não satisfeitos, dão largas à imaginação: vêm esse senhor do desporto nacional, o presidente do FC Porto, condenado e a cumprir pena com outros presos de delito comum.

É triste quando tantos se unem no afã de destruir o que de mais válido existe. Às vezes interrogo-me se este país merdoso merece um clube que, na sua grandiosidade, extravasa as dimensões do país. Dizem os inimigos, com o desdém de quem olha sob o ombro, que o FC Porto é um “clube regional”. Que não faz mossa à superior estatura dos clubes da segunda circular (então se falamos do Benfica, que tem mais adeptos do que pessoas…). Estão equivocados. O FC Porto, pelo que já legou ao património desportivo nacional, é mais do que uma referência nacional. Toca as raias de um clube com dimensão mundial.

E o que rezam as notícias? Que Pinto da Costa está mergulhado no lodaçal da corrupção que alimenta o processo “apito dourado”. Que terá encomendado, em pessoa, meninas de duvidosa reputação para saciar os apetites sexuais de equipas de arbitragem que passaram por jogos da sua equipa. Que será o mentor de um polvo que pagava a árbitros para prejudicarem os rivais lisboetas.

Temo que o processo se arraste e venha beliscar a imagem do presidente do FC Porto. Porque as cumplicidades estão ao alto, servindo-se de um lauto jantar onde a cabeça de Pinto da Costa é servida em bandeja de ouro. A teoria da conspiração ferve nas águas fétidas da inveja. Tudo servirá para abater o FC Porto, na pessoa da sua inquestionável referência, Pinto da Costa. Anunciam-se tempos difíceis para a causa azul e branca. Os abutres centralistas, invejosos do sucesso inigualável da equipa que veste de azul e branco, farão de tudo para edificar um duopólio: faltará decreto governamental para restringir as vitórias no campeonato aos “gigantes” da segunda circular.

Sei – e quando sei, sei mesmo do que estou a falar, e ai de quem discorde de mim, que se arrisca a apanhar soco na cabeça, por via escrita – que Pinto da Costa não é o diabo pintado pelos seus cruéis detractores. Se dúvidas houvesse: pode um homem com fino recorte literário, com a sensibilidade de quem declama de cor poemas de António Nobre, estar envolvido nas tacanhas operações que lhe são imputadas? Nem nos piores pesadelos!

15.4.05

Uns vão-se deitar, outros vão trabalhar

É uma dança bizarra. Estudantes universitários que se soltam das discotecas, vindos de uma das inúmeras festas que organizam durante o calendário lectivo. Cruzam-se com pessoas humildes, frescas para iniciar a sua labuta diária. Uns arrastam os corpos cansados de saltos maquinais ao som de uma música robotizada. Inchaços de álcool, pernas cambaleantes, raparigas que não se aguentam em pé e são arrastadas em ombros. Após o sono prolongado que os espera as aulas ficam, quase desertas, à sua espera.

O passo que se entrecorta com pausas para respirar o ar salubre do exterior é testemunha de uns espécimes esquisitos. Mais velhos, acabrunhados, olhos impregnados pelas olheiras de um sono que se queria alongado. Olham-se com desconfiança recíproca. Os que já estão a pé abanam a cabeça em sinal de desaprovação, quando se cruzam com jovens universitários que fazem as figuras tristes típicas de quem foi tomado de assalto pelo excesso de álcool. Pensam com os seus botões: “ando eu a sustentar estes parasitas…” Às vezes solta-se um comentário mais deselegante, de um energúmeno de mais idade que se acha detentor de uma moralidade superior. Os visados, mergulhados nas alucinações etílicas, nem dão conta. Quem os acompanha e está sóbrio incomoda-se, por vezes. Alimenta-se a suspeição de parte a parte.

Para quem observa a estranha dança, uma imagem de incomodidade. O contraste de dois mundos diferentes. Um mundo de jovens estudantes açambarcados pela vertigem da noite. E o universo dos guardiães da moral, que erguem o dedo da desaprovação: deviam estudar mais e divertir-se menos. Esquecem-se que quando foram jovens tiveram o seu tempo de diversão. Decerto diferente, quem sabe porque a diversão da geração mais jovem de hoje exibe a aparência de irresponsabilidade. Porventura, salutar inveja dos tempos em que as preocupações estavam ausentes e toda a vista apenas apontava para a descontracção. Agora que as exigências são outras, que o tempo parece correr a uma velocidade alucinante, que a acrimónia se sucede, olham de soslaio para os jovens que, na altura própria da idade, transpiram uma aura de irresponsabilidade malquista junto dos mais velhos.

São outros tempos. Tempos de diversão diferente. Quando os mais velhos tiveram o seu laivo de juventude, o lazer nocturno não se prolongava noite dentro, até ao romper a aurora. Nem tantas vezes durante a semana. Reservavam as loucuras da noite para sexta-feira e sábado. Concentravam-se as diabruras que rasgavam a modorra do quotidiano que já se esboçava, não obstante a tenra idade.

Agora é diferente. Os corpos dos jovens parecem nutridos com energia que se renova. Repetem-se as noitadas. Vão pela noite fora, de bar em bar, copo atrás de copo, olhares trocados que desnudam cumplicidades que ora se revelam, ora ficam escondidas no imaginário. Dir-se-ia que estes jovens desprezam a luz do dia. Vivem intensamente a noite. Reservam-se durante o dia, quando dormem o sono que os retempera para a noite que virá a seguir. E quando a noite se apresta a dar lugar à luz diurna, fogem das trevas das discotecas e refugiam-se na escuridão dos seus quartos. Como se fossem morcegos, a quem a luz fere a vista.

Giza-se um conflito, implícito, entre os corpos que vagueiam à saída das discotecas e os corpos que calcorreiam a via-sacra da rotina diária de quem vai trabalhar. Alimenta-se da inveja com que os que já acordaram olham para os que ainda se vão deitar. Este é o abismo que traz a lancinante diferença de comportamentos. Os jovens que começam a ansiar por uma cama, imersos no cansaço e na desorientação dos sentidos toldados por substâncias estranhas, estão a leste da pendência. Os mais velhos inquietam-se com as energias esbanjadas enquanto eles se ocupam do sono. Perdem-se em sentenças: sobre o tanto que os noctívagos consumidores gastam e o nada que produzem. De como são parasitas. Repete-se: é a inveja que os consome, a imagem dos áureos tempos idos em que o sossego da juventude passou por eles.

A quem observa a coreografia dos corpos que vão e vêm em sentidos inversos, a estranheza dos desencontros ditados por relógios que batem descompassados. Uma fileira de jovens exangues que ainda vão conversar com o travesseiro, e a multidão que sai de suas casas, já dormida, em direcção ao trabalho. Ou de como há mundos que se tocam, de tão desencontrados que são.

14.4.05

“I will be around” (ou o elogio fúnebre do “Pedro”)

Não foram os dois candidatos que disputaram a liderança do PSD que levaram a palma na frase bombástica do congresso do partido. O lugar estaria reservado a mais uma boutade do maior erro de casting de que há memória, Santana – “Pedro”, carinhosamente “Pedro”, para os indefectíveis e para as santanetes que irromperam do socialite.

Num dos discursos de despedida, a habitual encenação com laivos melodramáticos. Não me dei ao trabalho de ficar especado à frente da televisão, consumindo discursos a eito feitos pelos congressistas laranjas. O ritual dos congressos partidários está longe de me encher as medidas. O tempo, o escasso tempo, deve ser gasto em coisas mais úteis. E a paciência é pouca para ser desbaratada em manifestações carregadas de trivialidade. Apenas vi excertos seleccionados pelos jornalistas. Uma espécie de best off do dia. Foi num desses momentos que vi “o Pedro” a anunciar que ia embora, mas não de vez. Que “ia andar por aí”.

A frase tem o condão de levar às lágrimas, tanta a risada. “O Pedro” ainda não terá dado conta que o que resta de si, enquanto personagem política, é um esqueleto que se aproxima da decomposição em cinzas. Ou talvez não. Afinal estamos num país anormal. Que se engalana para ressuscitar personagens políticas que deviam estar bem enterradas na campa dos que morreram em combate político. Talvez esta seja a esperança “do Pedro”. Acredita que isto há-de bater ainda mais no fundo. Pela parte que me toca, nem sei o que esperar: as surpresas jorram a toda a hora. Quando se pensava que o inenarrável Eng. Guterres tinha trazido a coisa para o nível mais baixo de que há conhecimento, afinal “o Pedro” nivelou-a mais abaixo. Será que alguém vai descer o nível ainda mais?

Será este fulgor de sebastianismo que levou “o Pedro” a avisar que “ia andar por aí”? Como interpretar esta frase (se é que há inteligibilidade nos ditirambos que se soltam da boca “do Pedro”)? Andará “o Pedro” a ver filmes a mais? Terá agora, como presidente da câmara de Lisboa, o tempo livre que as funções de primeiro-ministro lhe roubavam, dedicando-se à filmografia melodramática hollywoodesca? Duas hipóteses: primeira, “o Pedro” avisa que vai estar vigilante, acha-se uma reserva moral da pátria; segunda, “o Pedro” comprou um espelho defeituoso e, quando se olha ao espelho, contempla o grande Messias que há-de inscrever a nação na rota do sucesso.

“O Pedro” é personagem de divã de psiquiatra. Os especialistas da ciência devem andar afadigados, tanta a matéria-prima para análise. É um caso raro de persistência política. Misturado com a indispensável dose de incoerência, aliás apanágio da classe política. Tantas vezes avisou que ia abandonar a política, tantos foram os esquecimentos que o levaram a deitar ao lixo o dramático aviso. Agora diz que não abandona. Que se há-de manter vigilante no seu posto, algures “por aí”, deambulando pela noite. Não como personagem esquiva, que isso não condiz com a busca das luzes da ribalta, com os néons da excelsa vida social de que tanto gosta. Mas há-de estar de vigia, para ver se o “seu” partido não descarrila, para medir o pulso ao país. Oxalá que a incoerência se mantenha: prometendo que regressará, que a prática e o tempo desmintam a promessa.

“O Pedro” acredita que a condição de antigo primeiro-ministro lhe confere a autoridade moral para ingressar no grupo dos sábios que estão acima de qualquer suspeita. Entrará para o restrito escol de iluminados senadores, presidido pelo irrepreensível Soares. Ser-lhe-á pedido parecer sobre tudo e mais alguma coisa. Como deve acreditar que a sua imagem saiu imaculada do equívoco que foram os quatro meses do seu consulado! Acontece com muitas pessoas: erros de auto-avaliação. Acreditam que são uma coisa, mas de fora para dentro são vistas pelos outros como coisa totalmente diferente. Quando pelo meio se adiciona uma pitada de enorme auto-convencimento, não há volta a dar. Vivem numa ilha – eles são a ilha, julgam-se senhores da verdade. Os outros, todos eles, estão errados. O problema é que a imensa maioria, ainda que esteja embrenhada no equívoco da análise, não tem os dotes destes predestinados. A incompreensão alheia leva aos desvios de um futuro brilhante…

“O Pedro” tem um mérito que ninguém pode negar. Com ele, a paisagem política caseira atingiu níveis de comicidade sem precedentes. Foi rir até a barriga doer. Sem parar. Veja-se como a sua análise de enorme calibre traz surpresas impensáveis: ainda no congresso, afiançou que a paragem da campanha eleitoral durante o dia do funeral da irmã Lúcia roubou muitos e decisivos votos ao PSD! O que dizer? Já não há pachorra, ou que “o Pedro” rivaliza com os melhores comediantes que temos?

Paz à sua alma!

13.4.05

Há-de o Estado financiar a cultura?

As portas da Casa da Música estão quase a abrir. Finalmente! Rejubilam os fervorosos consumidores de produtos culturais, mais ainda o segmento do público a que se destina a infra-estrutura – os melómanos. Numa notícia, o balanço da odisseia: seis anos de construção (quatro de atraso…), seis vezes mais cara do que o planeado. As páginas negras da incerteza já foram dobradas. Agora há que aproveitar este marco indelével da cultura nacional, motivo de garbo para as gentes do Porto. Para mais quando, para o New York Times, o edifício está entre as coisas mais belas construídas nos últimos cem anos…

O episódio das desventuras da Casa da Música levanta uma interrogação: deve o Estado financiar a cultura? Não me refiro a este tipo de equipamentos, que contam para o rosário das “despesas de investimento” (onde cabe quase tudo que assim convenha ser qualificado). Estou a pensar nos subsídios que mantêm viva uma certa produção cultural indígena. Dirão os partidários da cultura da subsídio-dependência cultural: este é um imperativo de todos nós, que afinal somos o Estado em que vivemos. Dirão que não nos podemos demitir de uma responsabilidade de tamanha importância, ou ficaremos reduzidos a um marasmo cultural, um povo abrutalhado sem acesso aos prazeres da cultura.

A discordância dirige-se à obrigação de financiamento das iniciativas culturais. Concordo que devemos consumir produtos culturais. Já não tanto que este deve ser um imperativo nacional, como se fosse necessário inculcar nas pessoas a exigência de frequentar teatros, galerias de arte, óperas, etc. No que toca ao “deve ser” que recai sobre cada um, já basta o rol interminável de tarefas de que não nos podemos demitir. A cultura é um bem inestimável. Mas a cada pessoa deve ser dada a prerrogativa de decidir o que frequentar, sem que haja entidades atarefadas em indicar às massas a cultura que vale a pena. Até para evitar preferências por artistas, que desnuda a arbitrariedade do programador cultural.

Invoca-se a obrigação do Estado dedicar mais verbas à cultura. Critica-se a escassez de fundos no orçamento do Estado. Com a entrada em funções do governo rosa, mais dado aos deveres politicamente correctos de gastar dinheiro com tudo e mais alguma coisa (e mais ainda com a cultura, que clientelas suas engrossam os corredores do lobby cultural), desenha-se um objectivo que porventura será difícil de alcançar – 1% das despesas do orçamento para a cultura. Os adeptos do financiamento estatal da cultura dirão que são parcas verbas, uma insignificância que traduz a desconsideração de um país pela cultura. Ideia reforçada pela comparação com outros países, vendo-se que por aí fora gasta-se mais em cultura.

Na batalha pela maior fatia do bolo orçamental, as decisões são questionáveis. Tudo passa pelas opções, pelo que a subjectividade encontra aqui um terreno fértil. Para quem, como eu, é avesso aos gastos militares, existe margem de manobra para protestar uma transferência das verbas estupidamente gastas no simulacro de defesa nacional que nos convencem que temos. Transferência de verbas para outras áreas mais úteis para o país. Aos que sustentam que o Estado deve gastar mais dinheiro na cultura, esta é uma oportunidade de ouro. Não é caminho que trilho. Se houvesse coragem para liquidar a defesa nacional, essa gorda fatia daria para abater o peso excessivo do Estado. Nada de transferências de dinheiros para outros sectores. Nem para a cultura.

Acho engraçado como quem sustenta a subsidiação cultural se desdobra em preocupações de índole social. São as mesmas pessoas que clamam por políticas sociais mais generosas, descontentes que estão com a desprotecção social das camadas desfavorecidas. E, no entanto, não dão conta que os gastos com a cultura são do mais iníquo que existe. É ou não verdade que o público que beneficia de produtos culturais subsidiados é uma elite distante, bem distante, de quem passa por graves dificuldades económicas? São pessoas que vivem no desafogo financeiro. E que mesmo assim reclamam um financiamento do Estado para manifestações de cultura que atingem públicos específicos, um nicho de mercado de reduzidas dimensões. Reivindicam subsídios por dois motivos: para sustentar quem produz essas manifestações culturais; e para que os preços pagos pelos consumidores sejam reduzidos (quando não gratuitos), a expensas da imensa maioria de contribuintes que financia os bens culturais sem deles tirar partido.

A cultura é um mercado. Concedo, com algumas particularidades. Mas um mercado. Quem quer apresentar produtos culturais destinados a um público de reduzidas dimensões, tem duas opções: ou exige preços mais elevados, para tornar compensadora a produção cultural; ou procura fontes de financiamento junto de empresas. O mecenato existe. As empresas vão estando mais motivadas para o patrocínio de iniciativas do género. Insistir na obrigação estatal de subsidiar a cultura é um fardo injusto para os milhões de contribuintes que, com os seus impostos, financiam um sector sem dele obterem uma contrapartida. Alimentando a indolência dos agentes que gravitam em torno do universo da subsídio-dependência, com as perversas cumplicidades que se estabelecem (hoje subsidia-se este em detrimento daquele, porque o primeiro é amigo e o segundo nem tanto).

12.4.05

“Porto feliz” e a não esmola a arrumadores

De ontem vem o balanço dos primeiros meses da iniciativa “Porto feliz”, a peregrina decisão de tirar os arrumadores toxicodependentes das ruas, motivando-os para um programa de reabilitação. Para a câmara do Porto, o programa salda-se pelo sucesso. Dizem as autoridades que agora temos menos arrumadores a enxamear os locais de estacionamento público, sucedâneos dos sorvedouros de moedas chamados parquímetros. E há a marca social legada: toxicodependentes que deixaram o consumo de estupefacientes. Uma cidade mais limpa, sem a “praga dos arrumadores” e sem tanta agressão à consciência que vem dos farrapos humanos que deambulam em busca de mais uma dose.

No lançamento da iniciativa, os munícipes foram convidados a mudar de hábitos. Teriam que parar de dar a “moedinha” aos arrumadores. O mal maior para uma chaga ainda maior – a fonte de rendimentos fáceis que, puxando lustro à imaginação, os toxicodependentes arranjaram para saciar o seu vício. Quando já se tinha instalado um misto de comiseração e de salvaguarda do património – comiseração pelas figuras andrajosas que exalavam toda a sua dependência das drogas; e salvaguarda do património, pois a sensatez aconselhava à hipocrisia de deixar a moeda da praxe, não fosse dar-se o caso de no regresso o carro ter umas alterações estéticas indesejadas – eis que a câmara municipal quis que fizéssemos marcha-atrás.

Há que o reconhecer, os arrumadores de ocasião são oportunistas de primeira água. Mas lá conseguiram ter o acesso imaginativo de descobrir uma fácil fonte de rendimento. Aproveitando-se do receio dos automobilistas, instalou-se uma espécie de coacção positiva. Para os arrumadores, a sensação de que estão a prestar um serviço: ajudam na difícil manobra do estacionamento, são o vigilante que impede roubos aos automóveis estacionados na sua jurisdição. Para os “utentes do serviço”, mais um mal necessário, mais uma fonte de despesas, é certo, mas a habituação a um inevitável serviço para impedir que danos fossem causados nos carros. Pelo meio, os cidadãos com mais tibieza tinham que admitir que estavam a contribuir para a toxicodependência dos arrumadores.

Para o programa “Porto feliz” ter sucesso, o município tinha que convencer as pessoas a mudarem de hábitos, recusando a moeda ao arrumador que surgisse pela frente. Aqui estava o problema, o dilema da “galinha e do ovo”: o sucesso do programa passava pelo estancamento da fonte de rendimentos dos arrumadores. Restava convencer os proprietários de automóveis a recusar a oferta da moeda, instalando-se o medo de que riscos dessem um aspecto diferente à pintura do veículo, ou que no regresso ao carro houvesse vidros partidos, amolgadelas várias, prejuízos muitos. Que se saiba, a câmara não previu solução para os desmandos causados por arrumadores enraivecidos. Não se ofereceu para cobrir os prejuízos provocados pela revolta dos arrumadores que viam desaparecer uma mirífica fonte de rendimentos.

Enquanto as drogas não são liberalizadas, a hipocrisia da sociedade é a voz de serviço, acolitada pelas decisões moralistas das autoridades que não se cansam de estar ao lado do higienismo dominante. É fácil dizer que o consumo e o tráfico de drogas são uma chaga social. Convinha investigar a fundo quem beneficia do grande tráfico, para depois de tirar conclusões – então não precipitadas, como por ora acontece. Enquanto as drogas continuam a ser alvo de censura social, a hipocrisia dominante convida-nos a recusar a moeda aos arrumadores, como se fosse a prescrição mágica para banir o mal. Os iluminados decisores esquecem-se de um detalhe importante: enquanto coleccionam as moedas que os automobilistas dão, os toxicodependentes não se entregam (ou entregam-se com menor frequência) à “pequena criminalidade” (furtos de variada espécie, para alimentar o vício).

No cotejo dos males, o mal menor é a menor das más soluções. Entre todas as hipóteses que se perfilam – e, repito, enquanto não houver coragem para legalizar o que é ilegal, mas que acontece a toda a hora, zurzindo da autoridade do Estado – é aconselhável deixar os arrumadores nas ruas. São um incómodo, é verdade. O que fazem é uma doce forma de extorsão, com a conivência de quem se vê coagido a dar a moeda. Mas enquanto não se desterrar a hipocrisia que nos manieta, é o mal necessário, o mal menor que não se compadece com falsos moralismos. Por mim, continuo a ter uma reserva metálica dedicada aos arrumadores. Fica mais barato do que solucionar surpresas desagradáveis que trazem desarranjos estéticos ao automóvel.

11.4.05

Expressões idiomáticas sem sentido (I): vida de cão

Tomamos uso de certas expressões, parte integrante do nosso património linguístico. São usadas de forma maquinal, sem que se elabore no seu real significado. A certa altura, estas expressões idiomáticas vêm o seu sentido pervertido. Não é aquilo que as palavras transmitem, no seu sentido literal, mas aquilo que a voz popular se foi habituando a dizer. Sem que haja correspondência fidedigna entre as duas coisas. Perde-se o fio condutor dos vasos comunicantes da linguagem. Através dessas expressões idiomáticas dizem-se coisas que não são o espelho da realidade.

“Vida de cão” é uma dessas expressões. Habitualmente diz-se que uma pessoa tem vida de cão quando é exposta a padecimentos que a colocam no limiar da miséria (quando a expressão é usada com um referente materialista). Demonstrando um estado de alma, alguém tem vida de cão quando a infelicidade lhe bateu à porta e se recusa a visitar outras paragens. “Vida de cão” têm as pessoas que marcaram encontro com o desamor. Aqueles que estão eternamente descontentes – com o mundo, com os outros, mesmo com a sua própria pessoa – também deixam verter a lágrima furtiva acompanhada da inevitável expressão, “vida de cão”.

Todavia, olhando às palavras, ao seu significado, a expressão idiomática encerra um equívoco. Fica a pergunta: porque se convence o povo que os cães têm uma vida de mortificação, de sofrimento, tingida pelas cores da infelicidade? Serão os canídeos os proscritos, os desalinhados do mundo vivente, os perseguidos pelo fel da desfortuna? Basta olhar em redor para desmentir a ideia. Os cães têm vida regalada. Quer os “cães de companhia”, quer os “cães vadios” (mais duas expressões idiomáticas que davam pano para mangas; primeiro, pela distinção: uns têm dono, e por isso são emproados à condição de animais “de companhia”, a dos seus donos. Os outros, por não terem dono nem um tecto que os acautele dos reveses climatéricos quando dormem, logo são “vadios”, como se um vadio se encaixasse no paradigma do cão sem dono).

Os cães têm uma vida invejável. Sobretudo para quem gostaria de viver uma vida menos absorvente, mais entregue ao lazer, menos ocupada com as minudências das coisas pequenas que distraem dos sentimentos que nos deviam preencher por dentro. Os cães não têm essas preocupações. Dormem horas a fio, sem agenda para cumprir. Quando pensamos nos “cães de companhia”, não há receios quanto à falta de sustento – a comida chega sempre a horas, e há guloseimas que os donos oferecem em complemento. Os afagos fazem parte do seu bem-estar – e do bem-estar dos seus donos. Há nesta reciprocidade um mar de fortuna que torna a vida de muitos canídeos o objecto de salutar inveja para tantos humanos. E, no entanto, convencionou-se que é a “vida de cão” que retrata uma vida abaixo da pobreza, alcantilada no remoinho do infortúnio.

Mesmo que a expressão idiomática tenha como referência a vida dos “cães vadios”, o equívoco não se desfaz. Ao comparar a vida destes cães com os que têm um tecto sobre a cabeça, a conclusão de que os “cães de companhia” são uns privilegiados. Não significa, contudo, que os “cães vadios” sejam assoberbados pela desventura. Estão mais expostos à adversidade: os maus-tratos de bestas humanas, prontas a cobardemente sacrificar animais como expressão da nulidade expressa na violência gratuita; andando na rua, podem ser atropelados, ver a vida ceifada; a alimentação é aleatória, porque tanto pode hoje haver um manjar num qualquer caixote de lixo ricamente recheado, como se perderem dias a fio numa busca infrutífera por alimento que sacie a sua fome. Numa coisa estes cães oferecem uma lição: a liberdade que fruem.

São senhores do seu destino. Vagueiam por onde o seu sentido os inscreve, sem rota, sem obedecerem a nada nem ninguém, a não ser à sua vontade. Concedo, não têm o mesmo bem-estar material dos seus primos que desfilam como “cães de companhia”. No ininteligível mundo dos sentidos, há coisas que são desprovidas de valor, por mais que se tente fabricar um mercado que torne os sentidos comensuráveis. Os “cães vadios” são o melhor retrato. Desmentindo que a “vida de cão” seja coisa de deitar fora. Pudessem os que são bafejados pelos caminhos erráticos da vida ter o mesmo bem-estar interior dos cães, e provava-se que a “vida de cão” não é esse universo tenebroso que a voz do povo ensinou geração atrás de geração.

8.4.05

Natalidade profiláctica

Um país tem que produzir consumidores,
ou não faz sentido produzir o que quer que seja.
Salvato Trigo, reitor da Universidade Fernando Pessoa

Na abertura de um congresso em Ponte de Lima sobre o desenvolvimento sustentável na região do Minho, o meu reitor proferiu aquela frase. Sustentou que, na região do Minho, o motor de desenvolvimento é o ensino superior. Lamentou a falta de cultura que grassa entre nós, o que coloca Portugal na cauda da Europa quando se observam os dados estatísticos relativos ao ratio de estudantes universitários por habitante. Insurgiu-se contra a iliteracia que nos domina, uma iliteracia que ainda olha de soslaio para o valor acrescentado das universidades. Com razão, zurziu nos “intelectuais de barbearia e de café” que disseminam enorme sapiência pelos fóruns de jactante popularidade. Sem parar, viu na ocasião o ensejo para criticar os excessos do mercado, causticando o “neo-liberalismo” que se esquece dos valores humanos fundamentais, que espezinha a cultura e tece pontes com uma nova aculturação que renega a espessura civilizacional que vem do passado.

Foi a este propósito que o reitor se lembrou de um episódio que demonstra como os excessos do mercado são perversos. Apelou à audiência para não se acomodar à cultura anti-maternidade que emergiu em certas empresas (o exemplo mais conhecido: o BCP). No seu diagnóstico, o caminho trilhado era consequência daquilo a que apelidou “yuppização da sociedade”. A emergência de gestores que só se preocupam com a produtividade, a racionalidade económica, o curto prazo. Colocando entraves ao recrutamento de mulheres, porque elas engravidam e podem ser um grão na engrenagem do sagrado objectivo da produtividade. Ou, quando elas são recrutadas, levando-as a compromissos de honra que as impedem de engravidar. O farol de um genocídio antes do tempo, a desertificação humana de um país. Foi então que assegurou que sem produção de consumidores deixa de fazer sentido sermos produtores de qualquer coisa.

Não sei se o meu reitor vai ler este texto. Como é um homem cultor da tolerância, decerto compreenderá a minha discordância. Por três motivos. Primeiro, a retórica dos excessos do mercado. A ideia é popular: as empresas, no afã do lucro, adoptam medidas que atropelam os direitos da pessoa. Acontece com as empresas que contratam mais facilmente homens do que mulheres, receando que estas decidam engrossar as estatísticas da natalidade, deixando temporariamente de dar o seu contributo à produção da empresa.

Era bom que nos convencêssemos que a riqueza é gerada pelas empresas. Elas não são o inimigo. São elas – com ou sem “excessos de mercado” – que criam emprego, que distribuem riqueza, que prestam serviços e produzem bens que alimentam o bem-estar das pessoas. Se as empresas são acusadas de excessos que espezinham valores humanos, uma pergunta é inevitável: quem seja afectado pela entorse dos seus direitos pode ou não recusar-se a trabalhar nessa empresa, procurando emprego noutro lugar? É difícil, lamentam alguns. Pois é, por culpa de uma regulamentação laboral muito rígida. Fosse mais fácil despedir pessoas, e seria mais fácil transitar de emprego em emprego, seria menor a taxa de desemprego.

Em segundo lugar, a percepção de que cada um tem o “dever social” de contribuir para a continuação da prole. Para quem tem uma filosofia individualista, a prescrição desta solução indeclinável soa a agressão. Porque há a difícil convivência com a ideia de que todos temos obrigações que resultam da nossa inserção na comunidade. Uma delas será o dever de contribuir para a sobrevivência da sociedade sem crises demográficas que, mais tarde, provoquem dificuldades gigantescas (uma segurança social insustentável). Porque motivo todos temos que dar o nosso contributo para a proliferação da gesta lusitana? Não será uma agressão intolerável à forma de ser de cada um, sobretudo para os que adoptam um modelo de vida que não passa pela formação de um agregado familiar?

Há pessoas que não querem casar. Há pessoas que não querem ter filhos. Há comportamentos sexuais alternativos incompatíveis com a maternidade. Outros contentam-se com o filho único que geram. Dizem, insuficiente para alterar a pirâmide demográfica que se inverte a cada passo. Podemo-nos acusar de irresponsabilidade, de sermos os culpados, com a deriva individualista, de arrastar o país para uma crise sem precedentes? Não, desde que cada um saiba assumir a sua quota-parte de responsabilidade. Não, desde que haja sapiência para encontrar soluções alternativas que atenuem os problemas que se avizinham.

Em terceiro lugar, uma nota económica desmente a afirmação do reitor. Concordando com ele, quando asseverou que a economia tem muito a ganhar se ficar permeável à cultura, também o inverso é verdadeiro. Um país pode estar mergulhado numa crise demográfica sem que isso implique o desaparecimento das empresas que produzem bens e serviços. Ainda que o consumo do país esteja condenado a diminuir, as empresas podem manter – ou mesmo aumentar – a sua produção. Porque ela pode ser vendida no estrangeiro, em países onde a natalidade seja superior à mortalidade, países ainda carentes na satisfação de necessidades de consumo e que são mercados atractivos. Saibam as empresas encontrar essas oportunidades, é o desafio que têm pela frente. Que é independente de considerações demográficas.

7.4.05

“Yuppização” da política?

Na orfandade em que caiu a “direita” doméstica (quando espantosamente se situa o PSD como partido de direita), há quem procure o D. Sebastião que recupere a auto-estima destes quadrantes. Depois do desastre santanista e do epílogo de Paulo Portas, fala-se com insistência na refundação da “direita”. Com a aproximação do congresso do PSD, por entre o descontentamento do “mais do mesmo” que os dois candidatos ilustram, a busca da figura sebastiânica acentua-se. António Borges é a noiva prometida, a luz ao fundo do túnel que mostra o caminho a seguir. Outros, mais ousados, atiram os nomes de outros Antónios: Mexia e Carrapatoso.

A confirmar-se o lançamento de um destes nomes para a ribalta do PSD – seja agora, seja a médio prazo – é como se a iniciativa “Compromisso Portugal” fizesse uma OPA sobre aquele partido. E, de caminho, estendesse a OPA à própria política caseira. Inevitável, há quem suspeite das boas intenções destas personalidades que se distinguiram no meio empresarial. Argumenta-se que “estas iniciativas (…) tresandam a yuppies que tiveram sucesso na gestão e na finança e que agora, impolutos, querem saltar para a actividade política”.

Não tenho procuração de nenhum dos Antónios. Tenho todo o à vontade para discordar daquele ponto de vista, tanto mais que nem com a possível liderança de um daqueles Antónios o PSD recolheria o meu voto. Mas tenho que discordar frontalmente daquela sentença. É ela que tresanda a qualquer coisa, algo que exala o odor bafiento da política que se faz da mesma forma, com os mesmos actores que, eles sim, estão longe da condição impoluta. Quando se desconfia das intenções de Borges, Carrapatoso ou Mexia (ao saírem da gestão empresarial para a política), esquece-se que materialmente eles só têm a perder com a transferência. Há que o reconhecer, sem ingenuidade, que terão que ganhar algo com a troca. Há que o reconhecer, ao longo de anos amealharam um invejável pé-de-meia com o desempenho profissional. Como há que o admitir, a passagem para a política pode-lhes granjear um reconhecimento público que não têm enquanto estiverem no reduto empresarial.

Há algo que me atrai na fórmula. Quando se equaciona a possibilidade de personalidades que se distinguiram no firmamento empresarial virem para a política, é de refrescamento da política que se fala. Introduz-se um salutar factor concorrencial. Em vez de políticos profissionais e carreiristas que nunca tiveram contacto com o “mundo real” – o das empresas, que geram riqueza – a entrada em cena de empresários que se reconvertem em políticos é uma lufada de ar fresco. Com a vantagem de se abrirem as portas a pessoas que estão habituadas a gerir bem, a alcançar fórmulas de sucesso, a produzir riqueza.

Não estamos no domínio dos políticos arrivistas, com uma longa trajectória desde as juventudes partidárias, ou de outros que se colam com oportunismo aos becos do poder. Estes não sabem o que é gerir recursos escassos. Nem sabem que sobre eles pesa uma espada afiada, caso os recursos sejam geridos com irresponsabilidade. Não é o universo dos gestores públicos, que ora gerem empresas públicas ora vestem a camisola de políticos, dessas aves raras que saltam de empresa pública em empresa pública para cavar mais um buraco financeiro, desbaratando os impostos pagos pelos contribuintes. É este o paradigma do político profissional. Com os resultados desastrosos que se conhecem.

Mudar de ambiente pode trazer resultados positivos para a qualidade da governação. Seja porque os novos políticos, vindos da gestão de empresas privadas, chegam ao poder e aumenta a expectativa de as decisões políticas sejam mais racionais; seja porque, remetidos à oposição, actuam como um estímulo concorrencial para os detentores do poder: quem governa terá que estar alerta às críticas e propostas alternativas que são verdadeiras alternativas de governação, e que podem cativar a atenção dos cidadãos.

Sei que há um mau exemplo da osmose entre o meio empresarial e o meio político: Berlusconi em Itália. É a imagem de um homem que conseguiu conquistar o poder e que, entretanto, tem tomado decisões que lhe permitem escapar às malhas da justiça em que estava enredado. Não se confunda a árvore com a floresta. Nenhum dos Antónios de que se fala tem problemas com a justiça (que se saiba). O que se lamenta é que haja pessoas que continuam agarradas às fracas figuras que se passeiam na passerelle política, como se estivessem satisfeitas com o desempenho. Só não sei se é limitar as expectativas por uma bitola inferior, ou se é o elogio da mediocridade.

6.4.05

O reaccionário compulsivo

Chamam-lhe reaccionário, conservador, ultra-liberal. Por vezes, apanha com rótulos menos simpáticos, aos quais não dá atenção por falta de credibilidade dos extremistas que o endossam: extrema-direita.

A etimologia fornece uma ajuda. Reaccionário, no sentido de reagir contra correntes ideológicas que dominam a paisagem. Quando se fala do domínio tentacular da globalização, há um contraponto na comunicação social: como as esquerdas pairam sobre a consciência colectiva, indicando as soluções óbvias que não merecem a menor contestação. As coisas só podem ser vistas da forma como eles as encaram. Não há alternativa credível. E quem ousar pautar a sua conduta pela dissonância, está condenado ao ultraje e à intolerância das esquerdas que, por ironia, chamam a si o património da tolerância. A retórica não basta. A prática afasta-as da retórica que embeleza a postura com que surgem em público.

É um reaccionário compulsivo. Contra esta superintendência abusiva. Apetece ser a voz discordante, o desalinhado do coro afinado que aceita os axiomas politicamente correctos. Por vezes interroga-se: será apenas um aguçado espírito de contradição que o leva a antagonizar os ventos dominantes? Não, porque não abdica das referências que alicerçam um sentir ideológico. Admite que o situacionismo lhe causa alergia, motiva-o para a reacção compulsiva que, qual anti-corpo, o leva a ser adversário dos quadrantes do “bem pensar”. Não está na orfandade ideológica.

Conservador? De todo! Um conservador quer perpetuar os traços que divinizam o mundo em que vivemos. O reaccionário compulsivo rompe com o estado de coisas. Não aceita os postulados que manifestam a vivência de uma larga franja da população. Não quer que se continue a misturar religiosidade com governação. Nem lhe é simpática a ideia de o indivíduo se manter agrilhoado a imperativos metafísicos. Desdenha as soluções que são o mal menor. Para ele, é inadmissível que certas figuras que foram condenadas pelo julgamento popular das urnas possam ressuscitar para a vida pública, como se estivessem recauchutadas pelo véu da ignorância que o passar do tempo traz à memória de quem elege.

De direita? O reaccionário compulsivo não se identifica com a direita situacionista. A direita que continua a perfilhar valores que ele não aceita – a autoridade sobre o indivíduo, o império de deus, a intocabilidade da família, o valor supremo da pátria. Uma corrente que enaltece um Estado forte: proteccionista quando a debilidade dos interesses nacionais é exposta pela abertura à concorrência externa; intervencionista quando a desdita atinge pessoas ou empresas, como se fosse a entidade paternal sempre na retaguarda quando a adversidade irrompe; um Estado assistencialista, porque está na moda a direita fazer de conta que incorporou os “valores sociais” que sempre foram traço identitário das esquerdas.

Ultra-liberal? O reaccionário compulsivo não se arreda do rótulo. Não se revê inteiramente na catalogação, mas de todas as alvitradas é a que menos se afasta da sua forma de encarar o mundo. Acredita no império do ser humano. É um individualista radical. Rejeita as soluções que fazem crer que o indivíduo deve ceder nos seus interesses quando são invocados os mais altos interesses do colectivo. Vê nesta argumentação um embuste: o caminho para certos indivíduos, que se apropriam do poder político, exercerem o poder sobre os demais, com a sua complacência. O reaccionário compulsivo é mais do que ultra-liberal: estes aceitam um Estado mínimo; o reaccionário compulsivo é um utópico que acredita na diluição do Estado.

O reaccionário compulsivo presta tributo ao valor da tolerância. Gosta de discutir ideias. Tem as suas, e tenta desmontar a racionalidade das ideias que lhe são rivais. Sempre no respeito pelas ideias alheias, num trajecto necessário para a compreensão recíproca. Só não tolera a intolerância, mais ainda quando vem acobertada por uma capa de máxima tolerância. Aceita comportamentos sociais alternativos – legalização das drogas, homossexualidade alheia –, o que o separa do conservadorismo e da direita tradicional.

Continua a sofrer incómodos arrepios quando as esquerdas aparecem em público emproando certezas incontestáveis. A sua reacção é fermentada por essas convicções inabaláveis. Quanto mais se edifica a eticidade irrefutável das esquerdas, maior é a vertigem pela divergência. O que o encerra numa contradição: ferido pelas certezas e pela suposta superioridade moral das esquerdas, na divergência acha-se possuído por certezas que são o tapete que estende a contestação à intolerância que vem do outro lado. O que lhe traz um desconforto irreprimível, preso aos mesmos artefactos que condena em quem o leva à dissonância: também ele se vê acometido pela doença das certezas.

5.4.05

Michel Vaillant e a intemporalidade

O ritual de sempre, a compra do Autosport às segundas-feiras – a bíblia semanal. A partir de ontem, e durante algumas semanas, o Autosport traz um álbum das aventuras de Michel Vaillant. Ontem foi o primeiro: “o homem de Lisboa”, uma aventura que evoca os tempos gloriosos do Rali de Portugal, quando a prova era o melhor rali do mundo. Foi um duplo regresso ao passado.

Mergulhar nas recordações da adolescência que começava, daqueles anos em que descobria que o automobilismo era o desporto preferido. Os álbuns de banda desenhada de Michel Vaillant, um herói das corridas de automóveis, eram consumidos com sofreguidão. Descontava os laivos romanceados que tingiam a realidade com uma nota fantasiosa. As aventuras de Michel Vaillant e seus parceiros são o mundo dos bons e dos maus, em que os bons acabam sempre por levar de vencida os maus. Era o retrato do ambiente das corridas que me prendia a atenção, numa idade em que a banda desenhada cativava o meu fascínio e a competição automóvel tomava conta de mim.

Lia de fio a pavio os álbuns de Michel Vaillant. Parava para reter certos pormenores, algumas passagens mais espectaculares, momentos auge das histórias. Na inocência da idade, levava comigo para a cama, nos minutos que antecedem o sono, o sonho de ser uma espécie de Michel Vaillant. Não pelos louros da vitória que o herói francês arrebatava. Apenas o sonho de ser protagonista do mundo mágico das corridas de automóveis, a adrenalina de conduzir um automóvel de competição no limite da aderência, saber-me entregue nas mãos das condições aleatórias das corridas – entregue aos caprichos da mecânica, exposto aos erros dos outros pilotos. Não era pelo glamour retratado por filmes que narram histórias passadas no mundo das corridas. Nem sequer pela intriga que alimenta o enredo das histórias de Michel Vaillant, com as manobras desleais dos maus da fita.

No regresso ao passado, a história ontem publicada pelo Autosport teceu outra ponte com o passado, um passado não tão remoto. A história de Michel Vaillant de ontem passava-se no Rali de Portugal, quando o rali tinha cinco dias, percorrendo as duras estradas de terra do centro e do sul do país. Logo num fim-de-semana em que decorreu um Rali de Portugal em versão “donwgraded”, para satisfazer as exigências dos organizadores do campeonato do mundo de ralis, numa tentativa para fazer regressar a prova ao calendário do campeonato após três anos de ausência.

Ler a história de Vaillant serviu para recordar alguns dos momentos memoráveis emoldurados no álbum das memórias. Do baú das memórias, o registo contabilístico: desde 1983 apenas faltei a um Rali de Portugal – aquele que foi realizado no ano a seguir à exclusão do campeonato do mundo, há três anos. Talvez sinal da decepção que invadiu os adeptos do evento ao perceberem que foi a inépcia dos organizadores do rali que o pôs fora do calendário, senti a necessidade de um ano de nojo que me trouxe a ausência de uma prova que via órfã de si mesma.

Tirando esse ano, foram anos a fio a seguir um ritual bem estudado. Anos e anos a calcorrear quilómetros pelas estradas do país, para seguir os carros nas derrapagens controladas. Anos de banhos de poeira, a poeira entranhada no corpo só libertada por um banho minucioso. Outros anos foi a lama que reinou, com a chuva impiedosa a encharcar os ossos e a lama vomitada pelos carros, nas suas acelerações frenéticas, a pintar as roupas com um castanho viscoso e desconfortável. Nada disso obstava a que um grupo de amigos fiéis ao evento se reunisse, ano após ano, para alimentar os prazeres da alma com a coisa decerto corriqueira de ver carros numa correria louca palmilhar os quilómetros de estradas florestais cheias de pedra solta e de sulcos que escalavravam o piso. Histórias que davam para encher páginas a eito. O convívio que tingiu amizades que já vinham de longe; os lugares recônditos que só as estradas de acesso ao rali davam a conhecer; um Portugal desconhecido que foi sendo visitado porque havia um rali para ver; as comezainas nos momentos de paragem; as aventuras nocturnas, noites mal dormidas no meio de uma gélida serra de Arganil, com as fogueiras espalhadas pelas colinas emprestando uma magia que fazia parte do rali.

Outrora escrevi que revisitar o passado é tempo perdido. Há momentos em que é difícil resistir à tentação de resgatar os momentos inesquecíveis que vêm de longe, que trazem recordações gratas que são o património genético do bem-estar que se assenhoreia de nós no tempo presente. Basta encontrar o pretexto certo. Algo que o Autosport conseguiu com a iniciativa que começou com a edição de ontem.

4.4.05

Olha para o que eu digo, não para o que eu faço…

A Greenpeace já nos habituou às suas acções espectaculares, quando tenta impedir atentados ao meio ambiente. Quantas vezes as imagens televisionadas não entram olhos dentro, encenações bem montadas, com especialistas em desportos radicais que emprestam a adrenalina e a espectacularidade que são os nutrientes do mediatismo? É a melhor forma de despertar as consciências adormecidas, ainda pouco sensibilizadas para a causa ambientalista. Há que as chocar com a intensidade dramática das acções de protesto, em que o mundo inevitavelmente aparece segmentado entre os bons (eles, os generosos ambientalistas) e os maus (os porcos capitalistas que não hesitam em delapidar os recursos naturais para se alambazarem com o nefando lucro).

Por cá a Greenpeace andou adormecida. As imagens retratavam acções espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Alguma vez teríamos que ser bafejados pela sua messiânica visita. Em pouco tempo, duas acções carregadas com o sal e a pimenta de um filme de acção. Estes são os novos McGivers que, sem recurso a armas de fogo, apenas dotados de muita imaginação e de falta de respeito pelo direito de propriedade, saltam para as primeiras páginas dos jornais. Os novos justiceiros, que denunciam as atrocidades que empobrecem o meio ambiente. Põem-se a jeito para a grande coligação que acusa a terrível globalização que enriquece um punhado de criaturas sem escrúpulos, remetendo à miséria cada vez mais pessoas indefesas perante os braços tentaculares deste polvo sufocante.

Não tivesse a Greenpeace descoberto que por cá se importam madeiras exóticas vindas da floresta amazónica, e não teríamos ainda o prazer da sua visita. Primeiro ensaiaram um bloqueio ao navio que atracou no porto de Leixões para descarregar essas madeiras. Objectivo falhado. Por mais voltas que dessem, para desespero do ingénuo jornalista que embarcou no bote dos ambientalistas, não conseguiram ocupar o navio.

Dias mais tarde, meia dúzia de seguidores da seita acorrentou-se às instalações de uma empresa de transformação de madeiras. Queriam denunciá-la pela importação de madeiras exóticas vindas do Amazonas, contribuindo para um atentado ambiental da pior espécie. Quem quisesse entrar nas instalações da empresa para trabalhar, não o podia fazer. Foi então que as câmaras da televisão testemunharam a actuação brutal e impiedosa de um administrador da empresa. Vendo que não podia entrar nas instalações que são suas, que não podia ir trabalhar, o homem irrompeu que nem um javali ferido e levou tudo à frente. Um activista e um operador de câmara provaram o sabor dos seus punhos.

Qualquer tipo de violência é lamentável. Não sei se o faça em relação ao acto irreflectido do administrador da empresa. Ponho-me a pensar: qual seria a reacção das criaturas que ali estavam, numa manifestação de “resistência pacífica”, se chegassem a casa e reparassem que alguém os impedia de entrar? Imaginemos que alguém, descontente com o alarido do Greenpeace, insatisfeito com os constantes atentados ao direito de propriedade cometidos pelos militantes da causa ambientalista, quisesse pisar o calo dando a entender a estes activistas qual a dor que eles provocam quando se arvoram na suprema consciência do mundo e espezinham os direitos individuais alheios.

Dir-me-ão aqueles que se alistam na causa colectivista: há objectivos comuns a todos nós que justificam a entorse de direitos individuais, mesmo ao direito de propriedade. Tal seria o caso da mediática acção que impedia o acesso às instalações da empresa de madeiras. Mas nestas coisas gosto sempre de reverter os cenários – dando voz ao afamado princípio cristão que ensina “não faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti”. Adivinho a reacção dos militantes da Greenpeace, quando dessem conta que não podiam entrar nas suas casas. Não seria contentamento. E, por entre a retórica de pacifismo mal encapotada que alinda o seu discurso, aposto que algumas destas criaturas também partiriam para a acção física para fazer valer o seu legítimo direito de propriedade.

O problema seria a terrível incoerência de que não se conseguiam desprender: o popular adágio “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço” teria então a sua consagração, derrubando a máscara de cordeiros dóceis que se esconde detrás destas criaturas.

1.4.05

Vícios de nacionalidade: apoiar um dos nossos, ou o melhor?

A propósito da “indigitação” de Guterres para Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. A notícia encheu de contentamento meio mundo. A começar pelo próprio, subscrevendo uma salutar tendência de individualismo que assaltou os políticos do burgo: primeiro a carreira pessoal, para plano secundário o sacerdócio do serviço público. Afinal os políticos têm mesmo motivações próprias, não são seres maquinais que se colocam ao serviço do “interesse público”. Está na moda a vertigem das carreiras internacionais, tão mais enobrecedoras do brio próprio do que a comezinha política da nação.

Depois, os camaradas de ideologia exultaram de contentamento. É compreensível. É “um deles”, o reconhecimento de que alguém que professa o mesmo credo ideológico está talhado para um cargo internacional de tamanha visibilidade. É como puxar o lustro aos sinais de pertença: o ego insuflado, porque foi “um dos nossos”, mostrando que os adversários não têm calibre para rivalizar “connosco”. Sem surpresa, o engenheiro que sucedeu ao engenheiro designado veio, em nome do governo, declarar entusiasmado apoio. Adivinha-se uma luta sem quartel, com manobras diplomáticas de elevada exigência, para o antigo primeiro-ministro se abarbatar ao lugar. Mesmo que isso signifique uma deserção perdoável: ficam os cor-de-rosa órfãos de candidato a candidato presidencial.

E depois há o arrepio colectivo, de todos (e são muitos) que exibem o orgulho na portugalidade. São os patriotas que aplaudem de pé sempre que um patrício vinga lá fora. A prova de que a gesta lusitana perdura na história da humanidade, capazes que somos de rivalizar com os melhores. É nestes momentos que a nacionalidade traz ao de cima a veia emocionante. Até os que no passado foram adversários do nomeado conseguem esquecer rivalidades e elogiam o perfil, jurando a pés juntos que melhor do que ele não há – pelo menos noutros países.

(Um parêntesis para dar conta de como a vaidade pessoal incha estes perus que se agigantam desde a pequenez dos seus tamancos. Abordado pelos jornalistas, Guterres avisou que o cargo é irrecusável. Curioso. Ao que consta, ele é apenas um entre sete candidatos que vão ser entrevistados nas Nações Unidas. Todos partem da mesma posição, da casa da partida. Mas a coisa foi pintada como se “sua eminência” já tivesse a certeza de que a sinecura lhe está reservada. É caso para dizer: presunção e água benta…)

Esta identificação patrioteira leva-me às lágrimas. É uma visão paroquial. As pessoas não valem pelas suas qualidades inatas. Distinguem-se pelo passaporte que ostentam. Nisto, todos os países são iguais no comportamento. Uns com mais requinte – os que adejam sobre o culto da nação, como se um desígnio divino trouxesse para os nacionais qualidades ausentes nos estrangeiros –, outros de forma mais envergonhada. Quando há uma competição do género, assinamos de olhos fechados por baixo do nome da pessoa que tem a nossa nacionalidade. Nem interessa indagar acerca das qualidades humanas dos rivais, ou saber se o perfil se encaixa melhor nas funções. Aquele é um dos nossos, e tanto basta.

No meio disto, qual o papel reservado às competências pessoais? Elas são independentes do passaporte que os candidatos trazem à lapela. Voltando ao caso, nenhum dos rivais do engenheiro Guterres foi primeiro-ministro, o que engrandece o curriculum do “nosso”. E o passado, não interessa? Vamos ao baú das recordações: Guterres foi dos piores primeiros-ministros que a história de Portugal conheceu; desertou no rescaldo de um desaire eleitoral – abandonando as funções a meio, abandonando os camaradas socialistas que ficaram carentes de uma referência a meio do nada; arranjaram-lhe um “exílio dourado”, à frente dessa coisa pouco recomendável que é a Internacional Socialista. Tem viajado pelo mundo, exibindo superioridade intelectual e o desassombro das convicções de quem sabe que o socialismo (ou a social-democracia) é a ideologia suprema, a única com apetência para reconciliar o Homem com a felicidade. Na política doméstica, desaparecido em combate mas com uma missão sebastiânica que nunca fugiu de mira – o tabu presidencial, alimentado pelos seus camaradas e por um punhado de ingénuos com memória curta.

Repito: acredito nas pessoas pelas suas qualidades inatas, não pela nacionalidade. Pelo cadastro pouco recomendável de Guterres, e em nome da memória que não está adormecida, apetece-me dizer: qualquer um dos outros candidatos será melhor. Até porque a causa (proteger refugiados) não se compadece com personagens carregadas de tibieza.