31.10.05

A cartilha do bom marialva

Há dias, a notícia de que uma mulher vai experimentar as sensações de um fórmula um. É uma pilota inglesa (não me ocorre o nome), com escasso palmarés. Porventura trata-se de uma operação de marketing da equipa, um charme fora do vulgar – e o fora do vulgar tem o condão de atrair as atenções dos media, arranjando espaço gratuito para as empresas que patrocinam a equipa.

Dias mais tarde, um dos pilotos do pelotão da fórmula um opinou sobre a iniciativa. Disse que a fórmula um era um desporto para homens, que as mulheres deviam ficar remetidas à condição de adeptas. E argumentou. Primeiro, é uma questão de aptidões físicas. Este é um desporto exigente para o físico, com as acelerações brutais traduzidas em forças que estão para além das possibilidades do corpo feminino. E depois lavrou sentença pastosa com um argumento bizarro: “estão a ver os mecânicos a apertar os cintos de segurança dentro do habitáculo? Estão a vê-los a ajustar os cintos enquanto percorrem os seios da senhora sentada no cockpit?

Faltava-lhe o argumento da praxe, quando se discutem os atributos femininos e vem à baila a aselhice média que caracteriza as saias ao volante. Jason Button, o tal piloto, esqueceu-se desse pormenor, ou na Inglaterra onde vive não existe o costume marialva latino de achincalhar as performances automobilísticas das senhoras. Quem não tem perícia ao volante está condenada a vegetar na cauda do pelotão em corridas de automóveis, poderia Button concluir na sua brilhante deambulação teórica, dizendo que as mulheres, pela dita perícia que se ausenta dos seus dedos, carecem da rapidez exigível para sentar o rabo num fórmula um.

Não aquilato a veracidade do primeiro argumento. Porque me apetece zurzir de Button e da sua preocupação de que o reino da fórmula um deixe de ser um acantonamento macho. Terá razão quando invoca o argumento físico como condição de exclusão das senhoras. A natureza incontornável. Mesmo a jeito para a sátira é a avaliação fantasista que Button faz dos problemas que os mecânicos teriam no momento em que os cintos de segurança são ajustados ao corpo de uma pilota. Para os que não estão a ver como a coisa funciona: o habitáculo de um fórmula um é uma cápsula onde se encaixa o corpo semi-deitado do piloto. A exiguidade do espaço obriga a que sejam os mecânicos a prender e depois ajustar os cintos de segurança.

Ora, para Button, os mecânicos sentir-se-iam constrangidos caso uma mulher se sentasse, corrida atrás de corrida, num fórmula um. No ritual de ajustar os cintos de segurança há um intimismo forçado entre piloto e mecânicos. Intimismo contra-natura, caso os mecânicos percorressem o corpo da pilota ao realizar a tarefa necessária para garantir a sua segurança. Da cabeça pequenina de Button vem a ideia unidimensional de que o tal constrangimento apenas está dentro da cabeça dos mecânicos que têm problemas em apalpar, ainda que involuntariamente, partes erógenas do corpo da pilota. Parece que a coisa não funciona no sentido contrário: a senhora semi-deitada no cockpit será uma ninfomaníaca que se deleita com esses momentos em que a turba de mecânicos lhe aperta os cintos de segurança.

Sem querer, o pouco inteligente Button está a chamar homossexuais aos mecânicos e aos pilotos que monopolizam o circo da fórmula um – e ele mesmo não escapa ao epíteto. Se os mecânicos sentem constrangimento pelas causas aduzidas, já o não têm quando executam a mesma tarefa em homens? Para quem está por fora dos pormenores, o cinto de segurança de um fórmula um tem seis braços que confluem para o mesmo ponto de encaixe. Este ponto situa-se entre as pernas dos pilotos, junto à matéria testicular. Segundo a (i)lógica de Button, os mecânicos sentem-se à vontade quando rondam com as suas mãos essa parte também erógena dos pilotos. Que, por sua vez, também não vêm problemas em saberem que as mãos de um homem quase acariciam o órgão reprodutor. Nada disto é estranho; coisa diferente se acaso uma mulher entrasse com assiduidade para o habitáculo de um bólide destes.

E eis como um argumento marialva se transforma num alçapão de cariz homossexual.

(No Montijo)

Adenda: algumas senhoras que percorrem pistas a alta velocidade já reagiram à boutade.

28.10.05

O Vitorino herói

Vitorino é nome próprio, não o nome legado pela tradição familiar. Vitorino, nesta história, não é a minorca socialista personagem que abrilhanta os locais por onde passa com a sua devastadora inteligência. O herói não é o político meia-leca-rabo-de-pato que trouxe amargos de boca aos camaradas socialistas que tanta fé nele depositam, que tanto dele esperam como o seu Messias que podia combater o outro Messias, o da direita.

O herói Vitorino é um anónimo jovem que saltou para o estrelato porque cometeu a façanha de ser apanhado sessenta vezes pela polícia enquanto conduzia sem estar habilitado pela obrigatória carta de condução. O jovem foi entrevistado por um canal de televisão. Contou que começou a transgredir com catorze anos. E tantas vezes foi detectado pelas brigadas da GNR que, a certa altura, os policiais nem sequer o mandavam parar para a necessária autuação: bastava o contacto visual com o adolescente Vitorino em aventuras a alta velocidade para que a GNR registasse o local e a hora do delito. Mais tarde, o Vitorino seria notificado pela enésima vez para comparecer em tribunal.

Enquanto decorria o relato das façanhas, Vitorino dava a cara às câmaras, sem o mínimo pudor. O que me intrigou: como pode uma criatura aparecer diante das câmaras da televisão confessando o seu avantajado cadastro? Como se pode expor ao ridículo? Não teria consciência de que esta entrevista, dando conta de uma bizarria que alimenta as opções editoriais da comunicação social, o cobria de ridículo perante a audiência?

Talvez o jovem Vitorino quisesse surgir como herói junto de um séquito de adolescentes inconscientes que vê naqueles feitos a aspiração máxima que as hormonas gotejantes podem desejar. Vitorino expunha-se ao ridículo perante uma larga franja da audiência – os sensatos e sensaborões telespectadores já amadurecidos, para quem estes arroubos aventureiros não passam de excitações inconsequentes, bizarrias que tocam o limiar dos desvios comportamentais que entretêm psicólogos. Se até o seu advogado é da opinião de que a justiça devia ser mais branda: para o causídico, o gosto pela velocidade na idade adolescente deve ser tolerada, compreendida no contexto próprio de quem adolesce.

Continuei atento à reportagem, meio boquiaberto meio entretido com a fanfarronice relatada. Deitei-me a adivinhar como centenas ou milhares de adolescentes sequiosos de sensações fortes elevavam naquele momento Vitorino ao altar maior da heroicidade. Não vou aqui engrossar as fileiras dos que exigem da comunicação social maior pedagogia social. Nem protestar contra a reportagem, num pudor hipócrita e bafiento. Nem sequer me indignar com os critérios editoriais que privilegiam o sangue, a baixeza, o incrível. Que interessa que bandos de jovens venham para as ruas com motas e automóveis, num sorvedouro de velocidades vertiginosas até que os veículos parem, esborcinados, contra um poste, um muro, no fundo de uma ravina?

Agora Vitorino arrisca quinze anos de cadeia. Se reincidir, a liberdade coarctada será o preço a pagar pela ebulição das sensações fortes que um acelerador a fundo traz a tantos. Tirar a carta de condução será um preciosismo desnecessário: pois se é verdade que ele conduz bem sem ter passado pelo crivo de uma escola de condução, para quê gastar tempo, dinheiro e paciência e ter que mostrar a um instrutor que já está capacitado para conduzir? Faz-me lembrar uma conversa que escutei há largos anos, num autocarro. Dois populares discordavam da decisão de encurtar os limites legais de etilização ao volante. Um dos populares sentenciou a conversa: “o meu cunhado, que conduz camiões TIR, diz-me que conduz melhor quando emborca uma garrafa de tinto ao almoço”.

Só no final da reportagem percebi a intenção. O jovem Vitorino afinal não se estava a gabar para um reduto de fiéis seguidores. Estava a manifestar arrependimento. Ouvi-o dizer que não sabia o que fazia, não tinha consciência do perigo nem da ilegalidade que cometia. Para evitar tentações, a mãe acompanha-o para todos os lados. É a liberdade manietada que comprou, para não ser obrigado a dizer adeus ao que lhe resta da liberdade que todos temos fora das prisões. A exposição perante as câmaras – a expiação pública dos erros do passado, uma espécie de “serviço à comunidade” para evitar a aplicação da pena de prisão?

26.10.05

Reorientação do ser: a vida é bela

Tanta é a tendência para tornar complexo o que é simples. Elevada a propensão para os arrebatamentos da emoção que sopram para outras latitudes o espectro da razão. Grandes tempestades que adornam pequenos copos de água. Aborrecimentos sobrevalorizados, conflitos alimentados, quantas vezes nascendo da simples vontade de cultivar uma boa discussão. A eito: dar importância ao que menos importa na vida. Dirigindo a vida nos eixos errados, semeando as rugas, os cabelos brancos, ou a calvície que se começa a mostrar, ainda o mau feitio que teima em vingar.

E tudo para quê? As consumições, um fogo-fátuo que consome a existência. Apetece fechar a porta aos tormentos que estão, pequenos diabos tentadores, na soleira à espera de se fazerem carregar aos ombros. Quando entram na circulação envenenam o sangue que alenta o espírito. Tingem de sombras carregadas os caminhos escolhidos, como plúmbeas nuvens que se adensam à espera que a borrasca descarregue os seus desapiedados frutos. Nada disto faz sentido. Vida desprovida de sentido esta que se anima nos desvios do bem-estar. Momentos há em que o cansaço do destempero exige uma redefinição das coordenadas.

Na bolsa dos valores, o momento para a revalorização dos atributos que norteiam a vida. Descontar o valor das coisas que agitam as atenções – os aborrecimentos, os atritos estéreis, as canseiras sem sentido, a apetência pela desconstrução gratuita. Em vez disso, olhar aos caminhos que apetece trilhar na busca de outro sentido. Sem misticismos espúrios, ou religiosidades que apenas significam um desprendimento de si mesmo. A solução está no ser que habita dentro de mim. Naquelas facetas adormecidas que andam asfixiadas pelo mau feitio dominante.

É então que exulta a busca de um significado belo para as coisas mais comezinhas. A beleza de uma ave que esvoaça com a docilidade de um voo que plana, pintando o horizonte com a graciosidade do seu voo. O oceano que sussurra os segredos guardados na imensidão das águas azuis que vêm encontrar descanso no areal. As árvores que se renovam num ciclo que se repete mas que jamais é cansativo. Contemplar o amanhecer no alto de uma colina, ver como lá em baixo se forma uma neblina que se adensa com o caminhar da manhã. Procurar a brisa refrescante das águas de um ribeiro, que se encaminham na sua celeridade para a foz que as vê desaguar no imponente rio. Os cães, os gatos, toda a passarada que relembra que o humano não está sozinho neste mundo. As artes, as que são escolhidas pelos parâmetros subjectivos da estética, sem dar lugar aos maus fígados que desmerecem outras artes que estão nos antípodas dos critérios estéticos que me conduzem. E as letras, a magia das letras que se ordenam com um sentido, empurradas pela enxurrada de sensações, melodias que se tecem com o som que ascende do mais profundo do ser.

As pessoas. Habitantes de um mundo partilhado, exigência de compreensão. Excessos críticos levam a lado nenhum. Não vou dizer que passe a olhar para os desmandos de comportamento com a bonomia que a introspecção poderia motivar. Não há tempo, nem lugar, para mudar de campo com um simples esgar da alma. O que importa é passar ao lado das misérias que compõem o ramalhete do lugar e do tempo em que habito. Olhar para o lado, ou então recusar a hipocrisia mas encontrar a resistência sem me deixar invadir por torrentes de sentimentos sombrios.

Fazer um acto de justiça: prestar tributo às poucas pessoas que são uma lição de vida – na família, nos amigos, nos colegas de trabalho. Esquecê-los é cometer a imprudência de não dizer como são eles o terreno que aplaina o meu crescimento, que nutre o bem-estar pessoal. Queria encontrar as palavras para tecer loas assíduas aos meus pais, aos meus irmãos, à Paula, à Leonor, aos amigos que foram certidão do meu amadurecimento, aos colegas com quem já aprendi tantas coisas. É nesses momentos que as palavras são sempre escassas para revelar a grandeza dos sentimentos que todas essas pessoas instalaram em mim. Esses são os momentos em que uma gratificante lufada invade todos os poros, cobre-me com o zéfiro dos predestinados à felicidade. É para aí que estão a apontar os ponteiros da bússola.

O resto, o resto que se amotine no baú das coisas diluídas de importância. Coisas, pessoas, letras, artes, manifestações, comportamentos - esses pequenos nadas têm destino traçado. Entregues à somenos importância que merecem, que se revolvam no quarto esquecido hermeticamente fechado a sete chaves. Em nome das coisas belas que a sempre curta vida nos agracia.

25.10.05

Quando a matemática atraiçoa a gramática (ou vice versa)

Com a soltura verbal de quem vê, primeira vez na vida, microfone e câmara de tv. à frente dos olhos, diz a senhora, para justificar o desemprego de longa duração:

- “Com a idade que tenho, ninguém me quer dar um emprego”.

E pergunta o jornalista, desconhecendo uma regra de ouro do cavalheirismo demodé:

- “Que idade tem a senhora?
- “Cinquenta e um ano”.

Cinquenta e um ano, just like that. Intrigam-me os meandros tortuosos da mente de quem mete os pés pelas mãos ao misturar matemática e gramática. Tento perceber o raciocínio: “cinquenta e um” acaba no primeiro número inteiro que a contagem algébrica conhece. Um é singular, logo este “um” sobrepõe-se ao cinquenta, que aqui estende a passadeira vermelha ao potente “um”, o imperativo do singular. Portanto, sempre que aniversariamos num algarismo que acaba em “um” regressamos à longínqua infância em que mal nos púnhamos de pé. Por imperativos do singular que asfixia o avantajado plural que se esconde nos “qualquer-coisa-e-um” que batem, inclementes, no calendário.

Um conflito entre matemática e gramática. A senhora configura uma excepção à regra. Iletrado povo na arte dos números, que também anda aos trambolhões com a arte da sintaxe. Ela quis dar primazia à sua versão pessoal da matemática redundante. Atropelando a gramática.

Morrer da cura

Frequentar hospitais públicos. Nas urgências, em visitas, em demoradas esperas por uma consulta ou um tratamento. No convívio forçado com o desgraçado povaréu. Desgastando a paciência com inenarráveis atendedores, o arquétipo do funcionário público: eles existem para serem servidos pelo utente, em vez do contrário.

Podem mudar as instalações dos hospitais. Podem-nas modernizar. Ou mesmo construir hospitais novos de raiz. O mal há-de lá estar, sejam os hospitais edifícios emproados de estilística arquitectura, sejam vetustas, medonhas construções. O estigma dos hospitais públicos moveu-me a contratar um seguro de saúde. Sei que duplico a factura pessoal em gastos de saúde, pois no Estado infamante em que vivemos não é dada a opção de descontarmos para o sistema nacional de saúde ou para um seguro privado.

Naquelas ocasiões em que o seguro se saúde não serve de tábua de salvação que impeça a visita ao hospital público, a dor de cabeça é fatal. Os guichets de atendimento, onde começam as filas para tudo e mais alguma coisa; o atendimento impessoal, desinteressado, porque cada “paciente” é mais um estorvo para os funcionários administrativos que muito gostariam de ter menos gente para atender em cada dia. É nos hospitais que faz sentido rotular os utentes como “pacientes”. Pela paciência chinesa exigível para aturar as horas infindáveis perdidas nos corredores do hospital em tarefas que, à primeira vista, parecem tão simples.

Em esperas nos hospitais públicos encontra-se um laboratório sociológico das lusitanas gentes. O povo rasteiro: senhoras hipocondríacas dadas a achaques à mínima dor, quase imperceptível; as misérias sociais que mostram como ainda estamos longe da Europa, uma miragem no imaginário; ali desaguam casos sem fim onde apetece, num acto de hipocrisia, virar a cara para o lado. Numa sala de espera apinhada de gente, com um odor pestilento que vai tomando conta da atmosfera fechada, o burburinho próprio de um ajuntamento popular. As conversas passam em revista as moléstias pessoais. As senhoras revisitam o cadastro das maleitas coleccionadas no passado. Parece um cantar ao desafio, a ver quem tem mais operações no passaporte, quem passou mais dias acamada no hospital.

Pelo meio, enfermeiras e maqueiras que furam o caminho com uma maca vazia, maltratando duas hesitantes senhoras que estavam grudadas à porta por onde a maca tinha que passar. O espelho de como o povoléu é tratado abaixo de cão por quem trabalha no hospital. Os maus-tratos estendem-se, num mostruário do hospital como laboratório da sociedade. No altifalante é chamada uma senhora para o consultório número-qualquer-coisa. Uma, duas, três vezes. É o marido que a vai buscar à casa de banho e, em maus modos, na grosseria marialva que é património genético de uma certa educação popular, passa-lhe um raspanete com a voz grossa de quem “manda lá em casa”. Empurra-a vigorosamente para a porta e depois fica a olhar em todas as direcções, com o orgulho másculo de “quem manda lá em casa”, decerto à espera de ser aplaudido pela turba.

Na sala de espera, mesmo à minha frente, uma voluntária serve um sucedâneo de pequeno-almoço aos pacientes e acompanhantes. Como coisa gratuita que é, a senhora desdobra-se em trabalho. Uns atrás de outros, é uma enxurrada de pacientes que aproveita a borla para reforçar o pequeno-almoço tomado em casa – mesmo que àquela hora pouco tempo haja passado desde o bucho matinal. Uma borla nunca se desaproveita. A mesquinhez em todo o seu esplendor.

Ao regressar ao hospital, uma e outra vez mais, a sensação de sempre. Ao sair, um inexplicável cansaço que se apodera de mim. Ainda que a demora tenha sido menor, mesmo que o tempo de espera estivesse ocupado com a leitura de um jornal, os olhos cruzam-se fatalmente com as ladainhas, as desgraças pessoais que são sempre as mais inditosas, a boçalidade a jorros, a desdita de quem vai ao hospital em busca do bem-estar pessoal e de lá sai com uma cruz carregada às costas. Entrar no hospital, supõe-se, é em busca da cura. O longo caminho para extinguir os males que povoam os pacientes defronta-se com a inépcia do hospital. Hospital fadado para germinar o mal.

24.10.05

Dreams come true

Ouço Antony and the Johnsons, música que soa a ladainha sofrida, uma voz cavernosa sempre pontuada pela melancolia. Ouço-os repetir: “dreams come true”. Uma expressão que se sedimenta num idioma, uma expressão de difícil tradução quando se ensaia decifrá-la no idioma pátrio. Por tentativas: sonhos que se tornam realidade (numa tradução literal), ou sonhos concretizados (tradução adaptada ao contexto, numa das raras expressões em que a tradução para português representa uma economia de palavras).

Os idealistas, os sonhadores, os que vivem agarrados às utopias pessoais, quantas vezes não suspiram para que um dia um, vários sonhos se tornem realidade? Esses, os sonhadores, vivem desligados da terra, ancorados nos sonhos que constroem como nuvens acasteladas no imaginário flutuante. São os sonhos que laboriosamente edificam que os guiam. Desprendem-nos da vida terrena, sanciona-os uma existência etérea, com a marca do onírico. Dir-se-ia que constroem castelos de nada, sonhos com substância, carnudos cenários idílicos onde a vida se desmaterializa. Sonhos, uns perto de serem alcançados, outros tão distantes como inatingíveis.

Às vezes os sonhos têm a meta desimpedida. Como nos filmes onde tudo acaba bem, alguns sonhos têm um dia aprazado para deixarem de ser sonhos. É o dia em que o sonho coincide com a vida palpável. O sonho desvanece-se como pétalas tocáveis que vêm cair no regaço do sonhador. O sonho torna-se realidade. Soam as trombetas, cantam-se loas à vivificante sensação de um sonho que deixou de o ser. O mapa dos sentidos tacteia as delícias do sonho que acabou de se fazer real. O sonhador compulsivo entra nas arcadas do deslumbramento, saciado na aprazível apoplexia de quem sabe ter dobrado a clausura dos sonhos.

E, no entanto, as sensações indizíveis de quando o sonho se perde no passado duram uns escassos instantes. O sabor do júbilo não se demora: o seu prolongamento traz a estranha sensação de perder o contacto com o encanto do sonho que se fez realidade. A afeição à embriaguez de felicidade faz perder o significado dos instantes onde só há o êxtase, onde se sente que o sonho passou para o lugar das sensações que se sentem. São breves instantes, uma intensa mas curta estrada onde os espinhos outrora cravados nas mãos, os espinhos necessários para dobrar o cabo do onírico, semearam a paisagem acalorada, verdejante, onde flutuam os odores quentes dos frutos e das flores que coincidem na transcendência do sonho que passou o limiar do sonho e se fez coisa tangível.

É então que o sonhador sente como é inútil sonhar. Como é vão ansiar pela concretização do sonho. Os difíceis degraus que levam a sair da prisão do sonho, ou os aleatórios passos para de lá escapar, são um bafo acolhedor que depressa se consome na voragem dos sentidos acalentados. Muito se idealizou, tantos foram os esforços, ou as coincidências da sorte, para depressa o concreto outrora apenas sonhado deixar de ter o valor dantes tão desejado. Como se apenas o sonho, enquanto sonhado, tivesse a fragrância que norteia os sentidos. Momento chegado em que o sonho o deixa de ser, acolhido nos louros do triunfo. Esgotam-se as recompensas nos breves instantes de embriaguez dos sentidos.

Dedilhada mais uma página, cumprido um sonho, a larga avenida surge vazia. Como vazias são as avenidas a meio da madrugada, apenas testemunhadas pelas luzes dos lampiões que oferecem guarida aos tresmalhados passeantes que se aventuram noite fora. Vazia, até que outro sonho seja idealizado, outro projecto se inscreva na agenda. Como se os sonhadores fossem macacos, de galho em galho. Sempre insatisfeitos, ávidos para descobrirem os segredos escondidos pela neblina de um sonho; ainda insaciados, quando o sonho se exangue no quadro tacteado pelos sentidos, como se a concretização do sonho afinal nada representasse.

Vão de sonho em sonho, no percurso sinuoso que é um desafio inacabado. Que nunca há-de ser acabado.

21.10.05

Silogismo

Lá fora está estacionado o carro de um vizinho brasileiro. Na traseira, um autocolante assegura que "Deus é fiel". Eu sou fiel. Serei deus?

A inesperada discriminação (sida e a ignorância de duas enfermeiras)

Pertenço a um centro de investigação que estuda as discriminações que afectam minorias (Centro de Estudos de Minorias). Sou uma espécie de pára-quedista no centro de investigação: do muito que por lá se investiga, entra em domínios que escapam aos meus conhecimentos. E não me revejo em alguma da metodologia, algum do discurso que preenche o imaginário da lógica bem pensante da protecção de supostas minorias.

Uma retórica incompreensível: estudar as causas das discriminações que condenam ao ostracismo certas franjas, daí em diante acantonadas no papel de minorias; e depois concluir que elas merecem uma compensação pelos atropelos cometidos pela História, compensação que surge com a designação de “discriminação positiva”. Não consigo aceitar esta forma de pensar: é inaceitável propor discriminações (ainda que “temperadas” com o adjectivo “positivo”) para combater discriminações que remeteram alguém à condição de “minoria”. Sejam homossexuais, mulheres, crianças, minorias religiosas, étnicas, políticas, artísticas, etc.

Em tempos pedi a demissão do centro de investigação. Não me revendo nas linhas de investigação, nem percebendo como podia dar um contributo válido para as acções de investigação escolhidas (porque escapavam aos meus conhecimentos), em nome da honestidade intelectual abdiquei. Um ano mais tarde voltei a ser convidado. Acenaram-me com um refrescamento do centro, um enxugamento das linhas de investigação (que já não era uma espécie de albergue espanhol – onde tudo lá cabia), que o centro tinha sido alargado a novos membros, reflectindo maior diversidade de conhecimentos. Convencido, reentrei. Na primeira reunião após o regresso, afinal pouco mudou. Tudo e mais alguma coisa serve para descobrir uma minoria que passa a ser alvo privilegiado de investigação do centro.

Na tal reunião, falou-se dos que são excluídos pelo sector da saúde. Outra categoria de excluídos, engrossando o catálogo de minorias. As crianças e os doentes de sida são os que sentem com maior intensidade o tratamento discriminatório. Foi aí que me recordei de um episódio vivido numa urgência de um grande hospital do Porto, há cerca de dois anos. Enquanto os meus colegas se entusiasmavam com mais uma discussão estéril, em busca do sexo dos anjos e passando ao lado do essencial, embrenhei-me nas memórias desse acontecimento.

Ao fim de longas horas de espera, deambulando pelos frios corredores da urgência do hospital, esperando pelo diagnóstico de vários exames feitos à pessoa que acompanhava, deparei com o impensável. Numa das muitas macas espalhadas pelos corredores da urgência jazia um homem esquálido, causticado por inúmeras chagas que não tinham tempo para cicatrizar. O homem gemia de dores enquanto esperava que alguém o atendesse. O que demorou tempo demais. Quando chegou a hora de ser visto por médicos, vieram duas enfermeiras – ou auxiliares, não consegui perceber – que o moveram da maca para uma cadeira de rodas. Antes de o fazerem, segredaram algo e, zelosamente, calçaram luvas. Ainda hesitaram antes de se debruçarem sobre o homem: perguntaram-se se deviam usar máscara protectora. O homem padecia de sida.

Depois de entregarem o homem aos cuidados da equipa médica, as duas enfermeiras regressaram ao corredor onde estava a maca agora desocupada. Olharam para o lençol que tinha sido o demorado leito do doente. Continuavam na dúvida: o que fazer ao lençol, como o manusear. Temiam que a mortífera doença se pudesse contagiar pela simples manipulação do lençol. Como antes haviam receado que o ar expelido pelo doente pudesse ser o foco de contágio da terrível doença (e daí a dúvida sobre as máscaras protectoras).

Este é o tipo de discriminação mais repugnante. O homem não se terá apercebido de nada, mergulhado num torpor que lhe tolhia o discernimento. Para quem estava a assistir, para quem tivesse o mínimo de conhecimentos de como se contagia a sida, a cena foi pungente. Pela ignorância que campeia entre os profissionais que lidam com estes casos, que deviam ter conhecimentos que impedissem as hesitações mostradas. Entende-se que os profissionais da saúde estejam mais expostos, que sejam uma profissão de risco. O que não chega para que estes profissionais descambem para atitudes lamentáveis como a que presenciei. Onde a ignorância arrepia caminho a doses intoleráveis de discriminação que cai, pesada, sobre quem sabe ter lavrada sentença de morte devido à doença que transporta.

20.10.05

“País”, com maiúscula?

Reparo que muitas pessoas escrevem país com maiúscula. Desconheço a regra da linguística que versa sobre o assunto. Preso ao purismo linguístico que cultivo, desobedeço a determinadas regras de forma propositada. Por exemplo, o meu ateísmo impede-me de escrever “deus” com maiúscula. Da mesma forma que o meu anti-nacionalismo me leva a desprezar a eventual regra que exige que se escreva “país” com inicial maiúscula.

Num esforço de ir às raízes do problema, há argumentos a favor dos que escrevem “País”. Da mesma forma que se escreve Portugal – ou Espanha, ou Madagáscar, ou Eritreia – e como todas estas palavras se referem a países, faz sentido que a palavra “país” apareça com inicial maiúscula. Se Portugal é um país e as regras mandam que Portugal se escreva assim, “maísculada”, sendo Portugal país logo a palavra “País” deve surgir escrita da forma que se acabou de expor.

O argumento colhia se os que insistem em colocar o “p” maiúsculo antes das letras “aís” não abdicassem da regra quando escrevem a mesma palavra por referência a um país estrangeiro. Apenas o país de que somos nacionais terá dignidade de aparecer com “P” maiúsculo; os demais países, por corporizarem o universo do estrangeiro, por não serem os territórios a quem, como nacionais, devemos lealdade, não merecem ser grafados com letra maiúscula.

Os que fazem esta distinção mergulham numa contradição insanável. Por um lado, nos tempos modernos em que se cultiva uma imagem de transnacionalidade, em que as forças da globalização cortam a eito e entram transversalmente em todos os países, deixa de fazer sentido a segmentação entre o nacional e o estrangeiro. Em segundo lugar, quem persiste na distinção de termos passa uma esponja nas lições legadas pelas duas guerras mundiais que afligiram a Europa na primeira metade do século XX. A construção de uma Europa unida é o mostruário das vontades irmanadas num frémito de paz. Paz que não se compadece com espúrias distinções entre “nós”, os nacionais, e os “outros”, os estrangeiros – sobretudo se dessa distinção resulta a discriminação dos outros.

Há uma explicação alternativa para se escrever “País”: um país é composto por pessoas, os seus nacionais e os residentes de nacionalidades estrangeiras. As pessoas têm nomes; e quando escrevemos os nomes das pessoas usamos maiúsculas – Paulo, Pedro, João, Gabriela, Leopoldina, etc. Sendo o país o somatório de nacionais e residentes, tendo todas estas pessoas nomes, empregar minúscula ao escrever “país” é um achincalhamento inadmissível das pessoas que são o substrato de qualquer país. Daí o engrandecimento da palavra “País”, que merece a excepção das poucas palavras que surgem com letra maiúscula mesmo no meio de frases. Porque o país é o prolongamento causal das pessoas que decidiriam agrupar-se num todo social que formou o país. Nesta perspectiva, empregar “País” não é uma forma de enaltecer esta forma de organização social. Trata-se, apenas, de não despersonalizar as pessoas que constituem o país.

Mesmo que se aceite a retórica justificativa da utilização de maiúscula para a palavra “país”, está-se a divinizar o país como entidade. Causa-me espécie verificar que há quem utilize indistintamente a maiúscula para as palavras “deus” e “país”. Como se uma e outra tivessem a mesma importância na condução da acção humana. Para os crentes na entidade divina, é uma blasfémia colocar ao mesmo nível semântico as palavras “deus” e “país”. Para os agnósticos e ateus que seguem a regra de grafar “país” com maiúscula, tudo se passa como se encontrassem no “País” o substituto do deus em que descrêem. Aceitar a utilização de maiúscula para a palavra “país” parece-me excessivo e injustificado. É a prova de que aceitamos, como indivíduos, a nossa pequenez perante a grandiosidade do omnipresente país. O que faz com que o país mereça a honraria de uma inicial maiúscula.

Estende-se a passadeira para diminuir o estatuto da pessoa humana, que entrega o seu destino nas mãos do magnânimo país onde ela teve a sorte de nascer. Despersonalizam-se as relações sociais, ao exagerar a importância de algo que não passa de uma ficção – o país é uma ficção, a agregação das pessoas que o decidiram criar. São as pessoas que têm carne e osso; o país é uma coisa suposta, uma imagem criada. A diferença de estatuto seria suficiente para continuar a chamar as pessoas pelos seus nomes, que se iniciam com letras maiúsculas, recusando o mesmo tratamento aos países. Daqui proponho: que “país” se escreva com minúscula, da mesma forma que portugal, espanha, madagáscar ou eritreia deviam ser escritas da forma que acabaram de ler.

19.10.05

Lema socialista: olha para o que eu digo, não para o que eu faço

Dominam grande parte do mundo. Sequelas de um sucedâneo mafioso, a Internacional Socialista. Por cá, há quem se queixe do tratamento condescendente que a comunicação social dedica aos disparates recorrentes que nascem no Largo do Rato. Lá por fora, um pouco por todo o lado, a teia estende-se, contagiante: asneiras que se viessem de outros quadrantes seriam implacavelmente censuradas, têm o beneplácito dos benfeitores que tratam o dislate socialista como se fosse coisa normal.

Exemplos não faltam. O tratamento aviltante que os emigrantes africanos têm quando chegam a Melilla e procuram dar o salto para a mirífica Espanha. Naquele enclave espanhol espetado em terras marroquinas – outro anacronismo, para mais vindo de um país que reclama a indignidade da ocupação britânica em Gibraltar – há muros que impedem a passagem dos refugiados para o sonho europeu ainda plantado em terras do norte de África. As autoridades espanholas andam a espalhar arame farpado letal para dissuadir a entrada ilegal. É um convite a uma aventura tantas vezes mortífera, quando em desespero os pretendentes a emigrantes pulam para frágeis embarcações e sulcam o curto braço de mar que os separa do oásis espanhol.

Quem tem reforçado as medidas de segurança para impedir o fluxo de emigrantes africanos é o governo de Zapatero. Esse novo herói dos socialistas românticos, que pela enésima vez se decepcionaram ao verem que o anterior herói – Blair – cometeu a vilania de alinhar ao lado dos Estados Unidos na aventura bélica do Iraque. Zapatero é a última nova esperança. A imagem da “governação nova”, progressista como convém para arrebatar o entusiasmo das franjas que alinham pelo diapasão do progressismo só porque lhes soa bem qualquer arroubo de progressismo. Esta esquerda não se cansa de apregoar a abertura de espírito aos perseguidos pelo estigma da pobreza. Na primeira oportunidade, é levada pelos imperativos do pragmatismo e fecha a porta às vãs promessas do passado. Condenando os refugiados à miséria em duplicado: à que já trazem consigo, e àquela que resulta das expectativas frustradas.

Os relatos de más condições dos “campos de acolhimento” (na fórmula eufemística das autoridades espanholas) são de agora, do consulado de Zapatero. Quando Aznar esteve à frente do governo nada disto transpirou para o exterior. Ora, com o poder que a Internacional Socialista tem, é de estranhar que a denúncia das más condições oferecidas aos refugiados africanos não tenha acontecido enquanto Aznar foi primeiro-ministro. Surpreendente é observar a emergência do assunto em pleno consulado socialista, para mais quando os socialistas espanhóis parecem estar em plena lua-de-mel governativa.

Miguel Portas, um dos paladinos nacionais das “causas justas”, fez uma visita aos “campos de acolhimento” na qualidade de parlamentar europeu. Não gostou do que viu. Sobretudo do muro de quilómetros que amputa as esperanças que fizeram deslocar tanta gente para um lugar distante da terra mãe, em busca de uma vida decente. Falou de um muro da Palestina, porque os constrangimentos ideológicos o impedem de relembrar o mais vergonhoso muro de Berlim. Para o caso, pouco interessa saber as razões da fraca memória e do viés ideológico do pateta alegre. Mais importante é ver que, descontados os naturais exageros que partem da radical figura, o governo socialista espanhol está a braços com uma empreitada que belisca a sua imagem dourada. Começa a cair a máscara das ilusões. A retórica desfaz-se contra o paredão do pragmatismo político. Zapatero e sus muchachos fazem coisas diferentes das prometidas.

Passando para o lado de cá da fronteira, mais do mesmo. Basta ver como se comportam socialistas enquanto oposição e quando ocupam o cadeirão do poder. É comparar o discurso alarmista na época de incêndios nos dois anos anteriores com o que se passou este ano; é comparar a posição dos inefáveis socialistas perante as aspirações sindicais de polícias e militares enquanto oposição e agora, no governo – condescendência, até apoio, versus autoritária negação de direitos sindicais. As mesmas pessoas que verberavam actuações do governo desastrado de Santana Lopes, agora, com responsabilidades governativas, defendem decisões idênticas. Com a mesma desfaçatez de quem se dirige à horda destituída de memória. São os branqueadores da memória colectiva, com o beneplácito da comunicação social que lhes dá guarida.

Vão sendo os inquilinos do poder, com episódicas curas de oposição. O povinho medíocre escolhe os governantes à sua imagem – elege o escol dos medíocres, escola onde os socialistas têm mister inigualável.

18.10.05

A pedagogia do lenço branco

Mandam os bons costumes: usar lenço branco, guardado num bolso das calças, para limpar as excrescências que o organismo expele para o exterior. Mandam os costumes evitar os escarros brutamente atirados para o chão. Mandam os costumes não tirar catotas do nariz. Servem os lenços, brancos ou de outra cor, que fazem parte da indumentária habitual. Para os mais tradicionalistas, lenços de tecido; para os modernaços, lenços de papel, descartáveis, sem ser necessária a lavagem que devolve a limpeza aos lenços que cumpriram a sua função. Lenços para variadas funções. Um amigo meu contou-me, em tempos, que tinha um amigo que usava dois lenços: um para as tarefas costumeiras, outro para limpar as gotas finais que ficavam a baloiçar depois de expulsa a urina!

São muitas as tarefas atribuídas aos lenços. A mais mediática dos últimos tempos é a de acenar em tom de despedida para treinadores de futebol incapazes de colocar as suas equipas na senda das vitórias. É um lugar comum, para os Gabriel Alves da modalidade, dizer que na falta de sucesso é a cabeça dos treinadores que vai para o cepo. Os adeptos são exigentes, e desfraldam os lenços brancos em sinal de desaprovação. Querem o despedimento sumário. Não interessa se há lugar a justa causa. Nem averiguar se o despedimento vai custar soma avultada aos cofres do clube. Querem, apenas, que aquela criatura deixe de ser o timoneiro da equipa da sua preferência.

Estes adeptos corporizam um fenómeno interessante. Exigem muito da equipa: não transigem com o insucesso, não compreendem que num jogo o factor aleatório da sorte é a pequena grande diferença entre os louros da vitória e o cadafalso do insucesso. Exigem dos outros, talvez porque interiorizem a complacência consigo. Porque não são capazes de exigir muito de si mesmos, exigem que os outros vão para além das suas capacidades. Transportam para os estádios as frustrações individuais. Se acaso a campanha desportiva se salda por derrotas humilhantes, adensa-se o malogro da vida que já lhes corre mal. É então que se abastecem de um lenço suplementar ao saírem para o estádio: mandam os bons costumes que não exibam o lenço conspurcado quando exigem a despedida do treinador incompetente.

Fazia sentido que fosse o lenço já gasto a ser desfraldado. Seria a ilustração de como estava gasto o tempo do timoneiro à frente da nau. É uma incongruência mostrar lenços imaculadamente lavados se queremos mandar embora alguém. Só se for em homenagem aos bons costumes, uma imagem de urbanidade, para que o vizinho não tenha que testemunhar a imundície depositada no lenço de um adepto insatisfeito. Como nisto do fervor clubista avultam os comportamentos mais exacerbados, do último fim-de-semana vem a derradeira novidade: em vez de lenços, alguns deram-se ao trabalho de trazer de casa lençóis, adivinhando a derrota inscrita na agenda. Não é um pequeno lenço que esvoaça ao vento em sinal de reprovação do treinador. É um lençol de generosas dimensões, a mensagem de que não há a mínima empatia entre o homem do leme e os adeptos.

Mergulha-se na antropologia dos lenços em campos de futebol. Os lenços agitados com frenesim são exibição tradicional em praças de touros espanholas, quando o infeliz animal recebeu a estocada final e se ajoelha no seu leito de morte. A turba animalesca vai aos bolsos e saca os lenços, entusiasmada, despedindo-se do touro que se acabou de despedir da vida. Nas arenas onde se dá a estúpida arte de tourear os bichos, lenços exibidos em uníssono representam o aplauso ao corajoso carrasco que acabou de ceifar a vida do bovino, depois de uma luta desigual. A moda foi exportada para os campos de futebol, com uma simbologia diferente: nas praças de touros, acenar lenços brancos é sinal de contentamento pelo espectáculo oferecido; nos estádios de futebol, ilustra o enfado pela inépcia de um artista mor.

O uso dos adeptos anteciparem o despedimento de um treinador através da exibição de lenços mostra a dimensão animalesca do espectáculo. Busca-se nas raízes das touradas o hábito de exibir lenços brancos. Nas arenas, os lenços dizem adeus ao bovino que feneceu instantes antes; nos estádios de futebol, os lenços exigem que se coloque a cabeça do treinador debaixo do cepo, pronta a ser guilhotinada.

O futebol é uma tourada.

17.10.05

Aniversário um – um conto evocativo

Abres os olhos pela manhã. No torpor de um sono sossegado, entrelaças os dedos enquanto vais trauteando uma cantoria. Que nos desperta. Não é choro – que esse fica guardado para as noites em que te visitam pesadelos com más personagens que, sem querer, vês na televisão. É apenas um melodiosa cantoria, a forma mais sublime de despertares os teus pais.

Espreitas entre as grades da cama. Sentes que chegámos, porque também te espreitamos em jeito de desafio. Ergues a cabeça e esboças aquele sorriso desarmante. Que cedo se faz gargalhada sonora, o teu bom dia para erguer a alvorada para um dia que se tonifica com o teu, nosso, despertar. Uma torrente de sensações que se renova a cada dia que passa, com as pequenas coisas que vais descobrindo, as pequenas coisas que nos vai oferecendo no teu desenvolvimento normal. E se antes tínhamos que te altear dos lençóis, agora pões-te em pé por nos veres à entrada do quarto.

São estes pequenos momentos que redefinem a vida. Pequenos nadas que vêm cheios de significado. É a alvura dos sentimentos que traz uma enxurrada de sensações para as quais nem todas as palavras do mundo são suficientes para encontrar descritivo. Bálsamo para os males que atormentam o espírito, a vida ávida que levas, com o pavio que não esgota naqueles momentos em que metes as pilhas novas e, esbaforida, contagias uma energia estonteante.

Momentos. Quadros que se imortalizam nas memórias. Não há fotografias que consigam captar a torrente de sensações que se destilam. Nem lapsos que a memória queira atravessar, para não escaparem esses momentos sublimes que são do tamanho do universo inteiro. Os momentos que levas para tragar um biberão, nos meus braços – os preferidos. Sofreguidão, o instinto de sobrevivência de horas a fio sem retemperar o estômago, avidez dos sentidos. Dedilhas o cabelo, o teu e o meu. As carícias que os teus carnudos dedos depositam na cara, no cabelo, pelas minhas mãos, são um mar chão de ternura que se espalha como cinzas joviais depositadas num aluvião de fertilidade. Semeiam a cumplicidade que amansa os caminhos que havemos de percorrer juntos, de mão dada, para que possas atravessar os contratempos da vida com o amparo que te é devido.

O teu crescimento é a nossa sensatez. Ver-te crescer, no dia que se segue, significa que também nós crescemos. O que aprendes nas doces veredas da curiosidade da vida são caminhos que nós palmilhamos, um trajecto onde cresceremos juntos. Os choros que soltas, as zangas que episódico mau feito semeia, os sorrisos que contagiam uma tranquilidade interior, ou quando gargalhas mostrando os tímidos dentes que se descobrem para a vida – tudo, e muito mais, uma lava incandescente que desce de um vulcão, tu, e que sacia uma fremente fome de vida de quem te trouxe para a vida.

Os aniversários hão-de suceder-se. Muitos, para deleite de quem pelo amor te contempla numa límpida câmara onde só o amor por ti existe. És a força maior desse sentimento, a sua renovação que impede que se perca no rasto das coisas que escurecem a vivência. E se momentos há em que o desencanto amargura, basta um olhar, um afago na tua pele suave, o ditongo imperceptível que comunicas, ou esse sorriso mágico com que nos agracias, para tudo voltar à sua forma original.

Renovado o espírito, então, pela aura incandescente que exalas, um frémito de vida que é o lenitivo maior quando se espalham os pós do desencanto. Ele, o desencanto, varrido pelas pétalas perfumadas aspergidas pela tua vida irradiante.

14.10.05

O estranho caso da mulher com sardas pintadas

Terá entrado na meia-idade, se as aparências não me levam no engodo. Anafada e roliça, move-se em passos pequeninos. Maneira despachada de falar, uma forma de se dirigir às pessoas que a colocam no apogeu da impertinência. Quem a ouve, no uso da palavra, dirá que é mulher cheia de certezas. Um discurso assertivo. E tem uma voz que está nos antípodas do monocórdico; antes o fosse, pois que das suas cordas vocais se soltam silvos que levantam da apatia o mais indolente monge tibetano.

No Verão vi-a desfilar longas túnicas semi-transparentes, em cores berrantes – ora um rosa choque, ora um azul-turquesa, ou um azul bebe debruado a douradas lantejoulas – ostentando uma racha escandalosa, expondo aquilo que nela menos se deseja ver. Calçava uns tamancos que deixavam à mostra os gordos dedos dos pés com umas unhas pintadas num vermelho carmim que se via à distância. As melenas loiras escorridas desembrulhavam o pormenor mais delicioso: as sardas artificiais. É verdade, coisa nunca vista, sardas pintadas, concentradas na parte superior do nariz e descendo em menor quantidade para os lóbulos mais elevados das bochechas. Pintadas a um negro vivo, a contrastar com a alvura da sua pele.

Há mulheres que se passeiam nas ruas como se fossem mostruários de cosméticos. É a base, o batom, o rímel, as sobrancelhas alvo de cuidado tratamento, sabe-se lá o que mais a indústria cosmética habilita a esconder da natural beleza que as mulheres têm. Sempre me causou espécie mulheres encharcadas em cosméticos, disfarçando rugas, salientando cores, pintando lábios de forma a fazer de conta que têm bocas mais pequenas. Há tempos recebi um e-mail que passava imagens sucessivas de beldades do cinema e da moda. Apareciam, lado a lado, duas fotografias: uma sem cosméticos, outra com a zelosa produção que transforma as divas da sétima arte e as modelos de passerelles em mulheres deslumbrantes. Que diferença! Casos havia em que a mulher ao natural não parecia o produto artificial escondido nas artes dos produtos cosméticos.

A bizarria de ver uma mulher pintar abundantes sardas é uma experiência insólita. Mais estranho ainda quando, para os padrões da “beleza normalizada”, as sardas ditam sentenças de fealdade. Das duas uma: ou aquela senhora acha que o plantio de sardas na sua face é um expediente para acentuar traços de uma beleza ausente; ou ela orienta-se por um diapasão que escapa aos cânones da normalidade, procurando acentuar a feiura com as ajardinadas sardas que lhe preenchem o rosto. Acaso aquela mulher se desliga de preocupações estéticas, ela, o paradigma da fealdade tonificada pelas sardas espalhadas nariz acima, descendo até ao ponto em que as bochechas se agigantam nas carnes abundantes.

Há meses a Dove fez campanha pela negação dos habituais padrões de feiura. Queria-nos convencer que todas as mulheres são belas. Que, acima de tudo, o oposto da beleza não existe quando olhamos para uma mulher – mas sobretudo quando uma mulher se mira atentamente ao espelho. Há antónias figuras que desmentem a táctica que intui nas mulheres uma elevada dose de auto-estima, com a chancela da aparência exterior. Antónias figuras que levitam no ridículo, deixando um rasto de bizarria por onde passam. Um rasto que é leito de pesadelos assombrosos.

Não bastasse o fermento do grotesco, adicionam-se as pitadas de uma personalidade que transgride os mais elevados limites da paciência. Muitas Marias temos entre nós. Poucas, decerto, tão únicas como esta sumidade que combina pesporrência com a garridice que se liberta dos passos da anafada criatura que mostra dificuldades em mover-se.

13.10.05

Superioridade masculina (provocação às feministas doentias)

Chegou-me aos ouvidos que alguém – possivelmente do sexo feminino – interpretou alguns dos textos que aqui escrevo como manifestações anti-femininas. Aos olhos dessa leitora, serei um exemplar do lusitano marialvismo: esses jactantes espécimes que exibem o garbo masculino nas praças de touros, destilam a superioridade máscula em cantorias com roupagem de fado assassinado, e se orgulham de uma lista infindável de conquistas entre o mulherio.

Ora, não posso responder pelos erros de hermenêutica dos outros. Talvez os meus textos não sejam tão claros como desejo. A escrita tem essa limitação: quantas vezes se idealiza uma mensagem, mas a escrita não tem a fluidez necessária para a mensagem sair com clareza? Entre a ideia inicial e o produto final, por vezes dista um fundo espaço. Noutras ocasiões, é uma leitura na diagonal que induz em erro – isso, ou a falta de compreensão de quem lê. O que basta para passar ao lado da ironia que milita nos escritos, do suave cinismo que percorre os textos, sobretudo em temas tabu para excitadas franjas que se alistam nas fileiras do exacerbado feminismo.

Adoro ironizar com coisas que são levadas muito a sério por acérrimos defensores de causas nobres. Que não haja confusões nesta manifestação de ironia: respeito as ideias de quem se alista entre a causa nobre. Posso não concordar com a causa, com as ideias, ou apenas com a forma exagerada como a causa e as ideias são defendidas. Mas o respeito mantém-se. Porventura quem esteja do outro lado da barricada entende o cinismo como exibição de desrespeito por ideias diferentes. É um equívoco: no calor de quem defende a sua dama, tolda-se a vista, enviesa-se a análise, emerge o malentendido. Mesmo na discordância, o mais importante é mostrar respeito pelas pessoas de quem discordamos. Ainda que na discordância se escrevam textos cheios de cinismo, ainda que se brinque com as coisas que para os outros são tão sérias que a ironia beija o limiar da heresia, da estupidez.

Quando por aqui escrevo textos que dão uma imagem anti-feminina, quem os lê dessa forma cai no maior dos equívocos. Quem pensar que sou da opinião que o homem é superior à mulher está enganado. Mas se é verdade que não sou anti-feminino, tenho uma certa queda para alinhavar ideias sarcásticas que aleijam as feministas. Se me quiserem apodar de anti-feminista, aceito a acusação. Anti-feminista sim, anti-feminino não.

Discutir a desigualdade do género é tarefa estéril. Parece que a natureza criou o alçapão – o enésimo alçapão – que entretém a humanidade com desinteligências cultivadas para além do razoável. Tão absurdas são as ideias dos marialvas que por aí se pavoneiam, como a frenética actividade de militantes feministas que suspeitam de tudo quanto tenha testículos. Tão extremados são os comportamentos das másculas figuras que afirmam a superioridade do homem, como as vanguardistas posições de feministas exacerbadas que querem arrepiar caminho a uma nova desigualdade – que favoreça as mulheres – como compensação dos atropelos de que a mulher foi vítima no passado.

Às fundamentalistas do feminismo digo: imprudente caminho esse, o de estar sempre a mostrar a factura do passado, reclamando novas desigualdades que são despeitadas recompensas de desigualdades idas. O futuro faz-se andando para a frente: educando, na escola e na família, para que todos compreendam que não faz sentido alimentar desigualdades espúrias entre o homem e a mulher. E entender, também, que a natureza é um obstáculo que não se pode iludir. Por mais que se queira forjar uma paridade absoluta, às vezes a natureza impede-o. Aceitá-lo pacificamente é a melhor forma de desdramatizar feminismos acalorados e de derrotar absurdas superioridades másculas.

Se por aqui aparecem textos que parecem menosprezar a mulher, desenganem-se. Nem menosprezo, que é sentimento excessivo; nem exibições que alimentam a “cultura” da superioridade masculina; apenas um apelo irresistível para parodiar uma causa defendida com unhas e dentes – o feminismo excessivo – de tal forma que, perante as propostas que raiam uma nova desigualdade, apetece engrossar as fileiras do marialvismo ibérico. A recusa vem de um exercício de racionalidade.

(Fim do texto: percebe-se agora, o título não coincide com a substância. Apenas uma artimanha para cativar a atenção das leitoras empenhadas em ler nas minhas palavras qualquer arroubo anti-feminino. Que não se esqueçam: ser anti-feminista é diferente de ser anti-feminino. E se há coisa que me intriga, é saber que as empenhadas feministas se auto-consideram minorias.)

11.10.05

Ecos de Outono

Sinais do Verão que está de partida. As primeiras tempestades estão no cardápio dos boletins meteorológicos. O vento solta-se, abre os pulmões e sopra, com toda a força. Ajuda a varrer as folhas caducas que perdem o verde efusivo, caucionando a cor acobreada que tinge as árvores com o tom outonal. Há sítios onde o chão é uma cama de húmidas folhas caídas, desordenadamente colocadas pelo capricho de rajadas de vento que esbarraram na folhagem ténue baloiçando nos galhos.

O frio está ainda longe, sem se avistar no horizonte. As tempestades de Outono trazem a fúria climática a que estávamos desabituados. De temperaturas amornadas, sinal dos ventos vindos do sul, temperados pela quentura dos trópicos, que extinguem a sua força tremenda nas terras peninsulares.

As nuvens que se acastelam no céu semeiam o breu apenas guardado na memória. Meses a fio com o sol a tinir bem alto, espalhando uma luz cristalina que, no pino do Inverno, sinaliza a bonomia dos elementos. Como é interessante sentir, findo o Verão, que o corpo anseia pela chuva impiedosa, pelo vento selvagem que dança desordenado, pelo frio que chama por agasalho. Todos os anos, a mesma sensação de cansaço quando uma estação se extingue, dando passagem à estação que vem no dobrar do calendário. A geografia e os elementos foram generosos: providenciaram a sequência de climas que não deixam instalar a rotina pelo cansaço do mesmo tipo climático.

A tempestuosa encenação dos elementos revela quadros inolvidáveis. O meu preferido é deter o olhar, por longos momentos, nas vagas alterosas que se desfasem contra os rochedos que vão até ao areal, ou contra os muros dos paredões que enfrentam a fúria marítima. As ondas chegam, encapeladas, empurradas pelo vento desabrido. Ao longe, rumo ao porto, navios desafiam o tempestuoso clima, buscando abrigo. Dançam, esforçados, tragando o ululante silvo das ondas. As gaivotas ousam bater as asas no frenético saltar das rajadas de vento. Rondam o mar mexido, sem a imprudência de nele mergulharem em busca do peixe que deve andar por águas mais profundas, decerto mais tranquilas.

O mar assim alterado pelo vento borrascoso parece uma cama agitada que não pára de se revolver sem direcção. Nem as ondas oferecem a ordenação vistosa dos dias de Verão pontuados por uma brisa refrescante. Desdobram-se em degraus deformados, sem padrão, espumando na crista, batendo fragorosamente umas nas outras, formando novas ondas que se agigantam até se despedaçarem no primeiro obstáculo terrestre que enfrentam. Rochedos, areia, paredões – parecem frágeis, desnudados perante as levas de ondas que neles perdem a vida. E, no fundo, mostram como são coriáceos, resistem estoicamente às investidas do mar bravio que só se acalma quando se desfaz nas barreiras que o acolhem numa turbulenta acalmia.

Chega o Outubro e perpassa no ar a espera das primeiras tempestades trazidas pelo Atlântico revoltado. Oceano, testemunha do cansaço da acalmia dos dias estivais. É chegado o tempo de semear a terra com as chuvas, mais bonançosas na secura prolongada. Agraciar os sentidos com a preciosa sensação de me envolver nos lençóis enquanto escuto os silvos furiosos das revoadas de vento que esbarram nas persianas fechadas. Renova-se o espírito com a chuva ventada que limpa os trejeitos instalados pelo Verão. Antes que se sedimentem, são varridos pela febril tormenta outonal que ecoa no vento desajeitado que se passeia, sem rumo definido, dobrando esquinas e ruelas.

Os ecos do Outono, presságios da rigorosa invernia que terá o seu tempo. Preparação dos dias sombrios, noites mais longas, uma escuridão que no entanto não entristece. Renova, dúctil, temperando as febris sementeiras que o estio acalentou.

10.10.05

E se o voto fosse transaccionável?

Há alguns anos, o economista Pedro Arroja chocou o pensamento politicamente correcto ao defender a possibilidade dos eleitores colocarem o voto à venda – fosse essa a sua vontade. Logo vieram os moralistas do costume, de dedo em riste, com a acusação “modelo cinco”: ideia disparatada, só possível na mente distorcida de um adepto dessa “coisa horrível” que dá pelo nome de “neo-liberalismo”. Logo vieram estas virgens, do alto da sua pudibunda pureza, reclamar contra a perversa materialização de tudo. Agora até o voto podia ser trocado por dinheiro, num convite à prostituição dos eleitores.

A ideia de Arroja era insólita no panorama nacional. Lá fora já era defendida por pensadores do liberalismo radical. Ocorreu reflectir sobre a ideia porque ontem, dia de eleições autárquicas, não hesitei ao tomar uma decisão. A ausência das mesas de voto. E daí pensar: qual seria a minha reacção se acaso um dia as mentes brilhantes que nos governam aceitassem que o voto fosse transaccionável?

Talvez não seja descabido pensar na hipótese, mais ainda para os que defendem com unhas e dentes as virtudes do sistema de voto que é o esteio (retórico) da democracia vigente. Sobretudo porque a abstenção teima em rondar cifras elevadas. Mesmo em eleições municipais, aquelas que tocam mais de perto o cidadão, a taxa de abstenção atingiu quase 40%! Quem sabe se a criação de um mercado de voto não seria a solução para empurrar a teimosa abstenção para níveis que não ponham em causa a legitimidade de quem fica com o poder nas mãos.

Como concretizar o mercado do voto? Antecipo três hipóteses: um mercado aberto, em que o voto dos abstencionistas (declarados) seria lançado no mercado e adquirido por quem estivesse disposto a licitá-lo pelo maior valor; uma variante da hipótese anterior: a diferença estaria na inexistência de licitação, para não acentuar a mercantilização do voto; e um mercado fechado, em que o pretendente a usar o voto de outrem teria que lhe fazer uma proposta de compra, num típico negócio bilateral.

As três possibilidades desfilam pela minha cabeça e não auguro grande futuro a nenhuma delas. O que é curioso, atendendo à minha predisposição para aceitar o princípio do voto transaccionável, como radical liberal que sou. Em qualquer das três modalidades equacionadas só havia transacção de voto se o abstencionista manifestasse essa vontade. Não seria aceitável utilizar automaticamente o direito de voto do abstencionista – até pela sua impraticabilidade, pois os que se recusassem a colocar o seu voto abstencionista no mercado podiam esconder a intenção de não ir às urnas.

A primeira hipótese não me seduz. Tem o risco da incerteza: se colocasse o meu voto num mercado aberto, exposto à licitação, perdia-lhe o rasto. O mais provável seria a criação de pujantes sindicatos financeiros, ligados aos partidos mais poderosos, em condições privilegiadas para arrebatar os votos colocados no mercado. Corria o risco do meu voto ser utilizado para acentuar a oligarquia do mafioso bloco central, responsável pela desgovernação que nos tem pautado.

A segunda hipótese é ainda mais aleatória. Na recusa da mercantilização do voto, havia um sorteio dos votos colocados à disposição pelos abstencionistas. Esses votos seriam rateados entre os eleitores que se propusessem a votar mais que um vez, pagando uma quantia certa pelo segundo direito de voto. O carácter aleatório é semelhante à hipótese anterior: perder o rasto do voto, com a forte probabilidade da pessoa a que calhou em sorte o exercício do meu direito de voto decidir votar num partido que execro. Podia bem acontecer que o meu voto fosse engrossar a maquia eleitoral dos deploráveis socialistas, por exemplo.

Resta a terceira hipótese, o negócio bilateral entre quem se apresta a vender o direito de voto e quem se propõe a comprá-lo. Parece a hipótese mais sedutora. Eliminava-se o risco de incerteza e a nódoa aleatória dos outros dois modelos. Persistia um problema: só estaria disposto a ceder o direito de voto na condição de saber como ele ia ser utilizado pelo comprador. Com o cepticismo metódico que conduz ao abstencionismo militante, e a recusa em votar no “mal menor”, seria impensável colocar o meu voto no mercado, ou negociá-lo directamente com um pretendente: o meu direito de voto seria usado para escolher alguém que não reconheço capacidade para ser timoneiro do nosso rumo.

Não fosse o autismo das luminárias do regime, que insistem em assobiar para o alto quando chega o momento de interpretar as elevadas taxas de abstenção, e a ideia do voto transaccionável podia arrepiar caminho para diminuir a ausência das mesas de voto. Pela parte que me toca, a ideia serve para demonstrar como o argumento típico dos anti-abstencionistas ("quem não vota permite que outros escolham por nós") é uma falácia. Afinal, isso também acontece caso o mercado do voto fosse autorizado.

7.10.05

Navio errante

Chega vindo das sete partidas do mundo. Sem aviso, de surpresa, ao anoitecer. Aporta com o silêncio dos fantasmas que o maneiam. O seu capitão, personagem austera, dá a voz de comando aos marujos obedientes. Solta-se a voz cavernosa, com a autoridade das rugas marcadas que tingem o rosto. Os marinheiros, formigas laboriosas nas suas tarefas maquinais, esperam pelo fim da jornada para irem a terra. Estão cansados de semanas de alto mar, rodeados pelas vagas alterosas que ondulam o navio e outrora foram razão para enjoos que terminaram em vómitos. Querem ir a terra, cruzar-se com caras de pessoas reais, cansados das mesmas caras, as caras uns dos outros.

O navio vagueia de porto em porto, vindo de lado algum, amanhã partindo para lado nenhum. A sua voz fantasmagórica anuncia-se quando vem atrelado no rebocador que lhe franqueia a entrada no porto. Fantasmagórica e rouca, com a rouquidão própria de uma cansada vida a sulcar oceanos, com o salitre a corroer os recantos metálicos do casco. Dir-se-ia que é um navio tresloucado pelas figuras anónimas que o povoam. Os seus marinheiros, personagens de um conto imaginado, saídos dos impermeáveis que os abrigam dos salpicos que dançam, desgovernados, por entre uma tormenta que atira o navio de um lado para o outro. Aproveitam a quietude das águas mansas do porto, a bonomia climatérica que os acolheu; desnudam os corpos enquanto labutam nas tarefas fatigantes – a limpeza do navio, os misteres do descarregamento, a que se segue o carregamento de outras mercadorias.

O navio entrega ilusões e vai carregado com outras ilusões. Esteio dos sonhos que flutuam, indeléveis, entre as vontades humanas que algum dia dependem do que vem no navio. Essas pessoas saberão alguma vez que a espera é saciada pela enésima viagem do navio, quando beija outra vez o ancoradouro envelhecido do porto? Entretidas ou distraídas, passeiam pela rua que bordeja o porto e olham com indiferença para o navio, como se fosse um fantasma bem visível, o mastro do seu desprezo. O navio erra na indiferença dos passeantes. A mesma indiferença com que o mosaico de nacionalidades que habita o navio trata as pessoas que passam lá fora, nos automóveis apressados, nos autocarros vagarosos, ou os poucos transeuntes que percorrem a pé a rua paralela ao cais. Como se o navio e os seus tripulantes e os habitantes da cidade estivessem de costas viradas.

O navio que chega sem frequência habitual pinta o quadro do porto. Ele, e tantos outros que demandam o porto, em visitas fugazes, no ritual de sempre – descarregar coisas e arrumar espaço para abrigar outras em inestéticos contentores elevados por guindastes metálicos. São peças anónimas que engrossam as fétidas águas do porto. No anonimato habitual, o navio errante parece mais indiferente que os outros que por ali aportam. Talvez por cativar a atenção de quem o observa na condição de navio fantasma, escapa à gesta indiferente, vestindo os trajes do errante que chega sabe-se lá de onde e parte em busca de refúgio não menos desconhecido.

Com a sua vagarosa marcha prossegue caminho, mar adentro, sem se amedrontar com as tempestades que lhe fustigam o casco. Os seus mastros, antenas que trazem equilíbrio ao mastodonte que desafia a cama alterosa de um mar que borbulha com o sopro endoidecido dos ventos violentos. Sem medo, avança rumo à tempestade: sabe que é o caminho mais curto para dobrar os ventos tempestuosos, as vagas alterosas que se desfasem, com estrépito, contra o casco que não se cansa de ver o mar rebentar em si. Quando chega ao outro lado da tempestade, e repousa em águas mais calmas, recompõe-se como se a tormenta tivesse sido apenas mais uma vírgula escrita no livro da sua existência.

Não há lugar à canseira. É andarilho de um lado para o outro, sem sentido inteligível. Que não seja percorrer as salgadas águas dos mares do mundo, aqui e ali tocando abrigos que saciam a sua busca de víveres. Apenas um hiato nas demoradas jornadas sem ver as cores da terra, apenas o azul sem vista, o azul do mar que o cerca, perdido no meio dos oceanos que são o seu repouso.

6.10.05

Apimbalhar, sem dar conta

Afasto-me de restaurantes brasileiros como o diabo foge da cruz. Por causa do débito de decibéis de axé, samba, outros sons afro-brasileiros repenicados, de vez em quando, com uma colherada de balofa música romântica. A fórmula tem sucesso, ao calcular os restaurantes do tipo e a clientela fiel que se alambaza com picanhas, caipirinhas e entusiasmo a rodos oferecido pelos músicos de serviço.

Aposto que a muita desta gente o ambiente é familiar: reminiscências daquelas férias no Brasil, de como vieram contagiados pelos sons pimba à brasileira. Sem darem conta, aplaudem uma modalidade de pimba e, quando olham para o lado e ecoam sons de Emanuel, Clemente, Tony Carreira e quejandos, vituperam o pimba nacional. Cada um à sua maneira, do rótulo apimbalhado não escapam. A burguesia, saudosa do clima tropical das praias brasileiras em pacotes comprados a 1000 euros por pessoa, mergulha numa vertiginosa contradição.

Dizem-me, em defesa dos ritmos que vêm do outro lado do Atlântico em doses maciças, que o pé se deixa deslizar, empurrando as ancas para um maneio ondulante. É o efeito contagiante dos ritmos dançáveis, a herança mexida que os escravos africanos deixaram na miscigenação cultural do Brasil. Os sons entram pelos tímpanos, colonizam os neurónios com aptidões dançantes, tomam conta do resto do corpo. Que obedece como um autómato, enchendo-se de boa disposição e alegria. Isto da música brasileira é uma bebedeira de alegria. O mostruário de como um povo cercado pela miséria se pode enganar a si mesmo, viver engarrafado em doses ilusórias de alegria enquanto vai penando na carência de bem-estar. A versão acabada de como o Homem se pode entregar à plenitude da alegria na desmaterialização da vida. Um alento para os últimos românticos, que persistem na utopia da não materialização da vida.

Também aqui o par não dança a um ritmo compassado. A vida trilhada pelo brasileiro médio está longe da fartança material do protótipo de burguês lusitano que se banha nas águas tépidas das praias do Brasil. Os nativos refugiam-se nas batidas tropicais da música parola exportada com sucesso para o mercado português. Fazem-no como tónico para esquecer as necessidades que não conseguem satisfazer, o muito que fica por cumprir. Os burgueses arrevesados que vão em hordas salpicadas de felicidade arrebatadora em charters duvidosos para o Brasil, vêm de lá como embaixadores destes sons. Não alinham pelo mesmo diapasão do nativo: os ritmos alegres não são a cortina de fumo onde se escondem as mágoas da escassez material. Não é de carências materiais que se fala ao olhar para o turista vindo do Brasil, quando espera pelas malas no aeroporto, acabado de desembarcar das férias sonhadas.

A História, por vezes, inverte o sentido dos ponteiros à sua clepsidra. Outrora, a gesta de conquistadores lusitanos deu a conhecer as terras brasileiras ao mundo. Povoámos o Brasil, lá fomos fazendo a civilização. Cedo tiveram carta de alforria – e Napoleão terá sido o inspirador indirecto da emancipação do Brasil. Séculos mais tarde, é o Brasil que influencia os anteriores conquistadores. Das novelas que são um must, à música variada que empesta a comida servida em restaurantes brasileiros. Alinha-se a fasquia por uma bitola inferior. Quem não conhece o Brasil fica com a impressão que o país é a imagem vendida por cá, em restaurantes brasileiros. Curiosamente, uma imagem campestre, a ruralização do Brasil. Nem aí a burguesia que continua a ir, plácida, a banhos para o Brasil compreende a incoerência em que gravita. Por cá desdenha, com um esgar irónico, tudo quanto cheire a ruralidade. Sem compreender que o Brasil que importa é a mesma ruralidade pacóvia, nos antípodas da estética.

Não esquecer: esta burguesia não tem aspirações elitistas. Gostam dos “artistas” brasileiros que são o expoente brega, ícones da poluição sonora que se sente por aí. Verberam a música pimba com rótulo nacional. Não gostam do folclore português, com destaque para o pior entre o mau – o folclore minhoto. Desconhecem a analogia que irmana os estilos separados pelas águas atlânticas. Por hipocrisia ou ignorância. Não se lhes pode exigir o que não têm para dar.

5.10.05

Afinal também há notícias boas!

Inveja por não ser polaco - porque inventaram o que seria o meu tiro ao alvo preferido

Há tempos soube que uma empresa polaca inventou o papel higiénico timbrado com caras de distintas figuras políticas locais. As novidades por terras polacas não cessam de surpreender. Ontem tomei conhecimento (via BdE II) que alguém veio para a rua com uma iniciativa que faria corar de vergonha os artistas mais empreendedores quando toca a medir parâmetros de imaginação: os polacos são convidados a entrar num site, a pegar em armas e disparar para um alvo onde está a cara daquele político que o armeiro de ocasião escolhe como odiozinho de estimação.

Rezam as notícias que a iniciativa é um sucesso. Pena que esteja a ser desvirtuada: alguns políticos encartados têm desaguado no local e armam-se de setas que são disparadas em direcção dos rivais. Compreendo que no mundo igualitário em que vivemos não seja de bom-tom vedar o acesso de figurões políticos a uma iniciativa que, afinal, deles desdenha. Passando por cima desta necessidade igualitária, os mentores da iniciativa deviam bloquear o acesso aos políticos. Ou então deviam-lhes fazer ver que se prestam a uma figura ridícula. Se hoje lá vão para destilar ódios e recalcamentos contra um rival que os derrotou, amanhã serão eles os visados pela fúria de um cidadão que os coloca no altar do desagrado.

Como temos um farto apetite para importar o que se faz lá fora, que bom seria se o exercício de relaxamento encontrasse um empreendedor local que o montasse. Acredito que seria um sucesso, a olhar para a taxa de abstenção que não deixa de aumentar a cada eleição que passa, a acreditar na insatisfação que alastra mesmo entre os que se resignam ao imperioso voto. Pode ser um lugar-comum, mas a classe política anda pelas ruas da amargura. O que se nota mais ainda em época de campanha eleitoral. O triste cenário atinge proporções épicas quando se aproximam as eleições autárquicas. Saltam da toca caciques locais, figuras impensáveis, actores das piores historietas que se pode imaginar.

Invejo os polacos. Se tivesse a oportunidade de me assear a papel higiénico com caras de políticos desconfiáveis, ou o ensejo de descomprimir do stress diário com uma besta arpoada de setas apontadas às caras cansativas dos políticos que povoam os ódios de estimação pessoais, conseguia rivalizar com os crentes de religiões várias que encontram nos seus credos a redenção interior. Aposto que me convertia em archeiro de excelência. E como são tantas as personagens que por aí andam em bicos de pés quando as câmaras da televisão fazem “on”, tantos os que merecem uma ferroada certeira, havia pano para mangas até me cansar deste delicioso desporto. Caras haveria que receberiam por mais que uma vez as setas do meu descontentamento. O catálogo de figurões merecedores do louvor tem tantas páginas que levaria muito tempo até esgotar o stock de setas.

Já que desfigurar cartazes que enxameiam as ruas em tempo de campanha eleitoral é crime com punição severa, devia existir alternativa. De vez em quando damos de caras com cartazes transfigurados, com as caras dos políticos enfeitadas com apêndices vários – desde barbichas de belzebu, a corninhos que ornamentam a testa do candidato, a pichagens ofensivas, de tudo um pouco. Manifestações de desprazer popular, boicote de adversários políticos que convivem mal com a democracia, ou simples brincadeiras de jovens inconsequentes, de tudo um pouco, decerto. Mas sempre pela calada da noite, sem que ninguém testemunhe a adulteração dos cartazes, não vá a delação funcionar como pretexto para a perseguição da justiça. O concurso de setas importado da Polónia resolvia esta salutar tendência para “delinquir”.

É caso para dizer: na Polónia andam a gozar com a cara dos políticos – é o papel higiénico que mostra as caras que servem para propósitos escatológicos, são essas e outras caras que servem para cidadãos insatisfeitos libertarem a fúria nos alvos que recebem prazenteiramente as setas disparadas. Andam a gozar com a cara dos políticos. Literalmente.

4.10.05

Proíbam-se os Porsches!

Sem ilusões: não consegui renegar o vício da luxúria automóvel. O pé direito mantém-se quente, a verve da adrenalina em chama ardente. O sonho persiste bem alto, apenas no firmamento do onírico: lutar com os cavalos excitantes de um Porsche, apanhar pontapés nas costas a cada pisadela a fundo no acelerador. Perdoe-se-me a futilidade – mas que as não tem, nem que escondidas debaixo de um lençol envergonhado, as futilidades?

Quando escrevia o texto de ontem sobre Vatanen, vieram à memória recordações de uma conversa com um colega de trabalho muito dado à defesa do ambiente. Sem saber como, o tema foi desaguar em automóveis. E, sem me lembrar como veio à baila, disse que tinha ficado fascinado com uma curta experiência ao volante de um Porsche. O que fui dizer! O ecologista marcou o terreno, com a moralidade dos que têm sempre a noção de estarem embebidos de certeza quando opinam.

O meu crime – e, supõe-se, o de todos os exibicionistas que se passeiam de Porsche: espezinhar um princípio linear da protecção do ambiente: aqueles carros gastam imenso combustível, logo contribuem para a poluição atmosférica em muito maior medida do que os democráticos veículos utilitários. O meu colega não o disse, apenas o adivinhei nas entrelinhas: não viria grande mal ao mundo se Porsches e outros cavalos de sangue puro fossem proibidos. Pelo grande dano que provocam no meio ambiente, essa vaca sagrada.

Sou sensível ao ambientalismo. Desde que não descaia para excessos. Amiúde, os que se apregoam defensores do ambiente deixam-se invadir pela cegueira. Sejam os verdes-por-fora-vermelhos-por-dentro (o partido ecologista “os verdes”, aninhado no “democrático” PCP), sejam os ambientalistas profissionais que gravitam em torno da Quercus e outras associações de defesa do ambiente menos conhecidas; é raro observar um militante da causa ambientalista que seja moderado nas reivindicações. Dirão que a estratégia se justifica num mundo carente de sensibilidade ambiental: que só uma terapia de choque pode despertar da incultura ambiental tanta gente que por lá anda (ainda há pouco, a passear a cadela para o xixi da praxe, reparei em pensos higiénicos e tampões femininos a jazer no jardim, atirados sabe-se lá de que andar…).

Já várias vezes discordei do princípio – tão mourinho, tão em moda – de que todos os meios justificam os fins. Estamos pouco acima da idade da pedra quando se mede o pulso à educação ambiental. Contudo, os devotos ambientalistas exageram em diagnósticos – e mais tarde confessam-no –, construindo um mundo enegrecido, pronto a ser tragado pela ferocidade animalesca do Homem que fecha os olhos à preservação do meio ambiente. São os dedicados servidores de um exército já numeroso, que faz muito ruído. Um exército que usa as armas do fundamentalismo, arrastando-se para a falta de objectividade que compromete a sua causa, afasta pessoas com escassa sensibilidade ambiental, pessoas a quem fere a intrusão e as verdades feitas dos arautos do ambientalismo.

Foi assim que me senti quando escutei a sentença do colega amigo do ambiente. Incompreensível a existência de Porsches e outros carros desportivos, são muito gastadores de combustível. Não lhe perguntei, porque não gosto de entrar em arengas com sacerdotes de nenhum tipo de fundamentalismo; mas apetecia perguntar: a solução, decretar a proibição destes carros?

Terão razão os seguidores da causa ambiental quando acusam a vetusta indústria automóvel, hoje como há mais de cem anos movida a motores que persistem nos mesmos princípios de antanho. E têm razão quando incriminam a indústria automóvel por apostar pouco em investigação que procure motores movidos a energias alternativas aos combustíveis fósseis. Há tímidos esforços para inverter o ciclo: automóveis híbridos, que combinam o motor a combustão com um motor eléctrico que serve para poupar gasolina.

Por maior que seja a prioridade na salvaguarda do ambiente, atitudes como a deixada nas entrelinhas – a proibição de Porsches – são uma intolerável distorção de vontades individuais que se encontram num mercado que existe para este tipo de automóvel. Que uns confundam isto com lamentável inveja – o terrível estigma que pesa sobre os endinheirados, vindo de que o não é –, doença incurável que não interessa estudar. Mais preocupantes são os que se cegam pela fobia ambientalista e que não hesitam em silenciar as vontades individuais sempre que, do alto da sua sapiência incontestável, sentenciarem que elas lesam o sacrossanto ambiente.

3.10.05

Vatanen, o euro deputado voador

Foram as façanhas do jovem finlandês, há vinte e cinco anos, que me fizeram despertar para o meu desporto favorito. Alto e loiro, como quase todos os ases de ralis do viveiro finlandês, Vatanen era o mais jovem dos destemidos que voavam nas estradas florestais em derrapagens infindáveis. Os pilotos que vinham das terras frias tinham o sangue quente. Malabaristas, atirando os carros para as curvas, dando a impressão que não as conseguiam dobrar. E eis senão quando, com um golpe de asa, num truque só ao alcance de predestinados, iam em demanda da curva seguinte, para a próxima derrapagem que fazia trinar de entusiasmo os adeptos que se colocavam loucamente nas bermas das estradas de terra.

Ari Vatanen era o delfim. Na idade tenra da carreira, tinha que mostrar serviço. Se os outros nórdicos asseguravam espectáculo estrada fora, Vatanen era o mais esperado pelas loucuras que fazia ao volante, com o volante. O Ford Escort era um brinquedo nas mãos dos rivais; nas mãos do virtuoso Vatanen era uma miragem que transcendia o limiar do possível. Tinha uma tendência irreprimível para estragar a lide, entregando nas mãos de um rival a vitória que parecia certa. Porque Vatanen não se entregava à frieza do resultado; porfiava ir mais além, teimando nos malabarismos que faziam desfraldar aplausos acalorados. Até transigir no exagero, e desnudava-se perante a sua condição de simples mortal. Ficava-lhe o amargo de boca de uma vitória desbaratada. Aos adeptos, uma entronização no lugar mais alto dos preferidos.

Vatanen envelheceu. Os automóveis brutalizaram-se numa escalada de potência, ficaram indomáveis. Mesmo para os eleitos, para aqueles que percorriam estradas na tranquilidade de um pai de família domingueiro, quando afinal arriscavam a cada centímetro tragando a poeira vomitada para os adeptos que reincidiam em não descolar das bermas. Os carros passaram a ser adamastores sem freio, e Vatanen pagou pela ousadia de os querer vergar. Dois graves acidentes, num dos quais esteve nos beirais da morte, temperaram o endiabrado Vatanen. Amadureceu com o estigma da morte que pesou sobre ele, nos tempos que esteve em coma depois de um assustador acidente na Argentina. Acalmou, congelou as tropelias diabólicas. Domesticou os instintos, entrando na recta final da sua carreira – uma carreira que merecia ter brilhado mais, não tivesse o jovem Vatanen estropiado tantas vitórias em nome da adrenalina. Da sua, e da de milhões de espectadores que foram testemunhas dos seus feitos.

Quis uma reforma dourada: deixou os ralis, cada vez mais para jovens tresloucados, e refugiou-se na acalmia dos Paris-Dakar. E ganhou uns tantos, sem correr os riscos que o faziam tão admirado pelos adeptos da pureza dos ralis. Até que se cansou de correr atrás da vida à velocidade que só está ao alcance dos destemidos. Deixou o vício da velocidade, estacionou o fato de competição, possuiu-se pelo vício da política. É deputado ao Parlamento Europeu há cerca de dez anos. Agora está na ribalta – não pelos dotes de quem dominava uma fera cheia de cavalos, mas como parlamentar que quer mostrar serviço.

Ari Vatenen, no sossego dos seus cinquenta e poucos anos, dá a cara por uma campanha de segurança rodoviária. O que parece um paradoxo, olhando para o final da década de setenta e para estes anos que inauguram o século XXI. Outrora, a imagem de um louco agarrado ao volante, inspiração para anónimos destemperados que queriam imitar nas estradas as façanhas dos ases dos ralis. Muitas vezes pagando a audácia com a própria vida. Agora, como se estivesse entregue a um descomplexado exercício de introversão, feitor da segurança nas estradas, convencendo os automobilistas que é estúpido colocar o pescoço no cadafalso quando vão ao volante.

Lá virão as virgens negras da desgraça alheia, de braço dado com preconceituosos ambientalistas, aproveitar-se do exemplo de Vatanen para asseverar a estupidez das competições automóveis. Tremendo erro de análise: o empenhamento de Vatanen não é a negação do seu passado. Nem Vatanten, o euro deputado, alguma vez renegou o seu passado de piloto de ralis. Desenganem-se os que acreditam que a causa eleita pelo euro deputado finlandês será o opróbrio dos ralis. A mensagem é outra: façam ralis no local próprio, em vez de semearem loucura estrada fora. E sejam os adeptos da modalidade os expoentes do bom exemplo, bofetada de luva branca aos que teimam em ver a realidade desfocada.

Ninguém os obriga a tecer loas aos loucos do volante que deixam um rasto de poeira. Mas que deixem em paz os lunáticos que se deliciam a ver carros à beira do desgoverno numa correria contra o relógio.