23.1.06

Decadência (ou os mitos também se abatem)

Fim da linha. Há homens providenciais que se extinguem ainda antes do decesso. Figuras que se fizeram emblemáticas, cultoras de uma superioridade que fez dos outros gentios vassalos. Um cocktail de cultura democrática e tolerância, mas nada mais do que truques de retórica. Um longo historial de maquinações, de intolerância destilada em doses generosas para os que ousavam dissidir. Um constante achincalhamento dos adversários, acusados do crime de lesa-majestade de lhe surgirem pela frente como adversários. Ainda assim, o paladino da democracia. Vergado à humilhante derrota, pela democracia que tanto enaltece.

Tempo de epitáfios. Involuntariamente, os que sempre o coroaram num estatuto sobre-humano farão o seu epitáfio. Na contrariedade da derrota, começarão a disparar em todas as direcções. Para aquietar consciências. E para que o sumo patriarca durma o sono dos justos, ciente que cumpriu história e teve coragem de avançar para a derrota que levita a sua carreira política para a terra das lápides.

Foi emproado mito, personificação de uma providencial aura que dele fazia um acima dos demais. Um timoneiro, sempre com uma corte bem comportada a fazer de pajens, num nunca escondido paradoxo de querer ser rei de uma república. Dos anais, a versão oficial: a ele se deve a democracia, ele que deu o peito contra os totalitarismos de extrema-esquerda que ameaçavam suceder-se à ditadura deposta. Somos educados nas verdades que convêm. Nem hesitamos em as absorver, como se fossem verdades inquestionáveis. E contudo, não o são.

Aprendemos com a história a vangloriar personagens como se elas fossem arquitectas únicas dos feitos. Esquecendo a mole humana invisível, mas determinante, a trave mestra das proezas. O mesmo com a consolidação da democracia. Não é a ele que me considero devedor da liberdade que tenho. Não é ele o penhor das nossas liberdades. Não foi ele que afastou os ventos de uma ditadura comunista. Foram os eleitores que o escolheram, através dele dizendo não ao totalitarismo orquestrado por comunistas e militares sedentos de protagonismo.

O cadáver político ainda está quente. As cerimónias fúnebres terão lugar nos dias que se seguem, com manifestações de pesar, a convocação da memória para o derradeiro tributo ao suposto “pai da democracia”. Não irão faltar engenhosas teorias que desprezam o povo eleitor, incapaz de perceber a superioridade da candidatura que se estatelou na derrota. O intelectualmente indigente povo será acusado de não fazer justiça a quem tanto deu de si pelas liberdades. Como se isso bastasse para caucionar a vitória de uma candidatura. Como se o passado fosse o fiel da balança onde se pesa o tempo que há-de vir.

Sinais de um processo de crescimento. A emancipação de amarras que foram sendo tecidas pela oligarquia dominante. Aplaudidos os que não se deixaram quebrar pelo ferrolho da disciplina imposta pelos seus pares. Uma figura humana deificada, nos seus pés-de-barro, perde a aura divina e morre aos pés frios de um povo cansado de viver agrilhoado ao tempo que passou. Desafortunado destino de uma carreira terminada com a suprema humilhação de uma derrota sem mácula. Para uns restarão as memórias do animal político que tantas vitórias granjeou. Ou o gosto sublime de resguardar as imagens de um homem despido das seus vestes divinas, com os pés já despidos do barro feito em pedaços. Um cadáver político, enfim!

Ocorre-me dizer, a concluir, que não devia ter escrito este texto. Diz o povo que não é de bom-tom “bater em mortos” – tarefa que aqui se cumpriu. Dirão alguns que é sinal de desrespeito por quem o merece, mau grado a derrota devastadora. Contra as compungidas almas, direi que são os mistérios da antipatia pessoal por alguém que pairou tempo demais como condutor dos nossos destinos. Se hoje somos o que somos, se tantas lamúrias levitam pela crise de onde não conseguimos escapar, a ele muito devemos. E ao que o derrotou e que foi coroado. Sinal de uma tendência irreprimível para premiar os medíocres.

9 comentários:

Anónimo disse...

Por estúpido que pareça, fiquei a admirar mais o Sócrates. O tipo não é parvo. Aposto que ele não votou no Soares, nem no Alegre, embora nunca o admita... talvez nas suas memórias daqui a muitos anos.
E daqui a uns tempos já não se fala nisto... e o Sócrates já não tem quem o chateie no PS. Inteligente, sem dúvida.
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Não estou de acordo. Sócrates perdeu porque o candidato que ele e o PS apoiavam ficou em terceiro lugar, com uns míseros 14%. Sócrates perdeu porque agora tem que conviver com o fantasma de Alegre – e convém não esquecer que Sócrates foi eleito líder do PS contra o M. Alegre e o Soares Jr. Além disso, Sócrates terá um cenário cheio de nuvens negras: imaginar um conclave socialista em que cada militante olha, desconfiado, para o militante do lado, perguntando aos seus botões: “terás sido tu um dos traidores, um dos que votou em M. Alegre?”. Em suma, um partido minado!
Paulo

Anónimo disse...

O futuro dirá quem tem razão. Eu aposto que tudo isto agora vai dar para se vender mais uns jornaizitos e abrir telejornais, mas daqui a 6 meses (se tanto), já se fala noutra coisa.
O Sócrates terá a maioria absoluta que o PS nunca teve, o Alegre será uma figura simpática e mais respeitada (mas nunca uma ameaça) e os verdadeiros "inimigos" internos (Família Soares, Carrilhos...) estarão na sua longa travessia do deserto.
Um governo socialista maioritário, com um presidente social democrata e 3 anos e meio sem eleições, são a receita para que só haja contestação das minorias. "Os cães vão ladrar, mas a caravana vai passar".
Se isto será bom? É outra questão. Aqui não faço apostas.
Mas que o Sócrates está delirante por dentro, não tenho dúvidas. Tudo o resto é representação.

Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Se este diagnóstico se confirmar, é o bloco central no seu esplendor. Uma receita que, pessoalmente, me desagrada…

Paulo

Anónimo disse...

Só mais uma coisa, os 20% do Alegre, não são 20% dos votos a apoiar o Alegre. São votos contra o PS, contra "o sistema", a favor de uma maior intervenção da população na vida política (sem ser através dos partidos).
Claro que o Alegre vai querer tirar partido deste espectacular resultado, mas não passa disto mesmo, uma bofetada no sistema.
Se estivessem marcadas eleições para este ano até podia haver reflexos... mas não. É o Paraíso para o Sócrates!

Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Não percebo como se pode argumentar que o voto em Alegre é um voto contra o sistema de partidocracia apodrecido. Alegre só deixou de ser uma peça do sistema quando o PS e o patriarca lhe tiraram o tapete. Até então Alegre era mais uma peça desse puzzle bafiento que é o sistema partidário.

Paulo

Anónimo disse...

Exactamente por isso. Ao puxar-lhe o tapete, o partido colocou-o fora do sistema. Soares, o apoiado pelo "aparelho" socialista; Alegre, o regeitado pelo "aparelho".
Já devias saber que em política o que se fez há uns anos, ou que se fará daqui a uns anos, é irrelevante para eleições.
PVG

PVM disse...

Percebo a lógica do raciocínio. Só que existe um erro de casting para os que defendem Alegre como o candidato anti-sistema. Alegre tem todo um passado ligado ao PS, ao pior que o PS tem. E, que se saiba, ele não vai abdicar da militância no PS nem das sinecuras que o PS lhe oferece (deputado, por exemplo). Por conseguinte, um falso candidato anti-sistema. Um verdadeiro candidato anti-sistema seria alguém desligado de um passado partidário, realmente independente. Por isso não concordo com certas análises que interpetam os 20% de votos em Alegre como uma manifestação contra o sistema partidário e os seus tentáculos.

Paulo

Anónimo disse...

Para mim, o Alegre REPRESENTA o candidato anti-sistema (pelas razões que expus), se o é, ou não, é irrelevante.
Mas o que dizes só reforça "o esquema do Sócrates": no final, ele será o grande beneficiado de tudo isto. Já disse que esta "vitória" do Alegre não vai dar em nada, mas foi importante.
PVG