1.2.06

O que pode o hooliganismo

(Advertência à legião dos meus admiradores “tunos” espalhados pelo país: este texto – como o texto “Desnudamento” – não vos é dedicado. Não enfiem a carapuça.)

Surpresa pelo acto de barbárie contra o treinador do FC Porto? Só para os distraídos. A inquietação, essa, em crescendo. O fervor clubista alimenta-se de uma escalada de ódios contra os adversários – que agora surgem como “inimigos”, na palavra sempre sábia do presidente daquele clube. E como a reprovação seria geral caso as traulitadas caíssem sobre o “inimigo”, destila-se o fel no treinador da própria equipa, quando as coisas não correm de acordo com as exigentes expectativas dos energúmenos.

Para quem esteja a leste do cosmos do futebol, o episódio é mais perturbante ao dar uma vista de olhos à classificação. A equipa treinada pela vítima da violência covarde está destacada no primeiro lugar, com quatro pontos de avanço em relação ao “inimigo”. É caso para imaginar o que podia acontecer ao holandês caso a equipa andasse perdida num lugar qualquer que não o primeiro.

São os ódios futebolísticos que fermentam a violência intolerável. Os adeptos ainda não se converteram à nova realidade. Vivem no tempo do amor à camisola. Ignoram que o futebol é uma indústria, um mercado como qualquer outro mercado (descontando o perverso hábito dos agentes de futebol, que se consideram um caso especial para tantas coisas, como se fossem um país dentro do país – basta recordar inúmeros regimes de excepção que beneficiam o futebol). Os adeptos ainda acreditam que eles são os genuínos detentores do clube. Na era das sociedades anónimas desportivas (SAD), não há lugar a estes laivos de emotividade. Os adeptos são, quando muito, sócios que pagam para terem o lugar anual na cadeirinha no estádio. Não são accionistas – se o são, tão minoritários que não têm voz audível nas decisões tomadas.

Para estes adeptos, tantas vezes arregimentados nas claques organizadas, o futebol ocupa vinte e quatro horas diárias da sua vida. É mais importante que o achaque da mulher, o insucesso escolar dos petizes, a desgovernação costumeira. Quando o clube enche as vitrinas de taças, enobrece-se o ego. Andam altivos, como se atingissem o zénite de uma vida inteira. Quando as coisas descambam querem cabeças no cadafalso. E se a cabeça dos culpados não é ceifada por quem de direito, faça-se justiça pelas próprias mãos. A populaça grotesca em todo o seu esplendor. Os mesmos que cercam as portas de um tribunal, na ânsia de fazer “justiça popular” a um arguido acusado do mais tenebroso crime.

A escalada de violência só pode intrigar quem passe ao lado das tricas entre dirigentes do futebol. Põem-se em bicos de pés, roubando protagonismo aos artistas que jogam o jogo no relvado. Alguns, arrivistas, entram no futebol para o estrelato. Outros servem-se do futebol para sedimentar negociatas. Em tempos houve quem usasse o dirigismo no futebol como trampolim para a carreira política. Mas há quem sirva com dedicação a causa. E seja endeusado por um séquito de fiéis seguidores (que não dão conta que a fidelidade é canina, sem desprimor para os canídeos), que se entusiasma com declarações inflamadas que incendeiam o ódio pelo “inimigo”. Numa permanente teoria da conspiração que vê em tudo e em todos uma perseguição para impedir as vitórias de um clube que se afunda, por iniciativa sua, no espartilho do regionalismo saloio.

Estes dirigentes têm nos fundamentalistas e violentos apaniguados das claques organizadas um sustentáculo oportuno. Acontece no FC Porto, como no Benfica, no Sporting ou mesmo noutros clubes onde as claques já têm atingiram alguma organização. Os apoios são generosos, a caução aos desmandos que fazem nunca findou (acaso alguma vez o FC Porto censurou os actos de pilhagem em estações de serviço nas auto-estradas, por exemplo?). Enquanto as cumplicidades se mantiverem, enquanto estes grunhos sentirem que têm as costas quentes pelos silêncios complacentes dos dirigentes do clube, o terror há-de continuar a ser espalhado. Ao menos louve-se a intenção dos dirigentes do FC Porto para incriminar quem tentou atentar contra a vida do treinador (ou não foi isso que esteve em causa, quando uma besta disparou um very light contra o automóvel do treinador?).

As virgens ofendidas costumam acusar o toque, argumentar que o futebol move multidões. Que não se deve mexer com as tradições assimiladas. Este argumento das tradições soa à mais pura irracionalidade. Quem ousa desalinhar das tradições apanha com a artilharia pesada, como se fosse um herege a quem deve ser dedicado um tratamento bem ao jeito da inquisição. É só ver como reage a trupe do futebol quando alguém põe em causa as benesses por onde o futebol navega.

Entretanto, fazem-se estudos antropológicos acerca de claques de futebol. Coisa que me causa espécie: a antropologia estuda o comportamento humano, não o comportamento animal.

5 comentários:

Anónimo disse...

«(Advertência à legião dos meus admiradores “tunos” espalhados pelo país: este texto – como o texto “Desnudamento” – não vos é dedicado. Não enfiem a carapuça.)»

Esquizofrenia galopante, ou doença bipolar, por certo.

Cara excelência
Não o entendo. Mea culpa.
Os comentários no "desnudamento" foram resposta ao seu acólito Ponte Vasco da Gama.
Cá para mim, que sou um zé-ninguém, quem enfiou a carapuça foi o senhor professor felino. E até aos bigodes.
Afinal o "desnudamento" não era um "lavar de alma", qual pedido de clemência. Pois.

Parque das Nações

P.S. Isto está-me a parecer uma birrinha de miúdo, em que, mesmo percebendo a sua falta de razão, gosta sempre de ter a última palavra. Cá estaremos para o impedir, a bem da pedagogia...

Anónimo disse...

Exmº Sr. Professor Doutor:

Não enfiamos a carapuça. Gostei do seu artigo. Como vê, somos nós, Tunos, gente normalíssima que quando gosta, gosta e diz; quando não gosta, não gosta e diz também.

Continuação de boa escrita!

Anónimo disse...

Resta aguardar pela legião de fãs "sócios" que porventura aparecerão aqui no blog a manifestar o seu desagrado pelo texto em questão!

Isto para quem não tinha comentários nos tópicos, devagar tornar-se-á no blog mais falado do país!

O povo gosta é da má língua....

...e é tão fácil criticar.

Aguardo um tópico sobre a qualidade do ensino universitário. Se é que ainda não foi escrito.

Anónimo disse...

Peço imensa desculpa por invadir um tema alheio ás tunas, mas parece ser a única forma de "acreditar" que prestará atenção.

Dizer-lhe que continuo à espera de ver respondidas as minhas perguntas!

O dever de quem é profesor (e diferencio-o de "educador", que é coisa diferente) é esclarecer e ensinar. De bom grado desço uns degraus e me coloco na posição de aluno para "ouvir", a si e seu assistente, senhor Carter.
Releia, senhor Paulo, as minhas intervenções e pedidos de esclarecimento que lhe faço, extensivelmente ao senhor Carter, de preferência sem insultos ou ironias escusas que não tenho idade para infantilidades ou má criadagem.

Anónimo disse...

Este artigo é digno merecedor do Prémio: A Mais Óbvia Constatação do Evidente Possível 2006.