17.3.06

A teta dos agricultores

É recorrente: os agricultores saem dos campos e enxameiam as estradas com os seus tractores a passo de caracol, engrossando as filas de trânsito que se acumulam atrás. Nas praças, estacionam à frente da representação local do ministério da agricultura, o eterno patrono. Tiram os megafones da algibeira e começam a vozearia. Sempre que há retirada de “direitos adquiridos” (subsídios que mais nenhuma actividade tem) unem forças e deixam os pulmões falar em voz alta, com a amplificação sonora dos megafones. No mapa são poucos, mas falam como se fossem uma imensa maioria.

Há sempre um agricultor empertigado que protesta. O choradinho da praxe: vivem à míngua, são uns desgraçados, a “Comunidade Europeia” é o seu túmulo, os espanhóis fazem concorrência desleal, os consumidores lusos ingratos que preferem géneros agrícolas de outros países. Quando há notícia de que os subsídios vão descer, ou que uma das incontáveis modalidades de pagamentos-para-isto-e-para-aquilo fica retida nos cofres do Estado, pedem a cabeça do ministro da agricultura. Há dias ouvi o protesto excitado de um agricultor. Encavalitado em cima de um tractor, empunhando o megafone, o agricultor bradava as palavras de protesto:

Um ministro da agricultura deve defender em Bruxelas os interesses dos agricultores portugueses. Um ministro da agricultura deve lutar por mais dinheiro da Europa para os agricultores portugueses.

E como o ministro terá esquecido uma promessa que fez há meses, agora leva com o rótulo de mentiroso, coisa pouco simpática de se ouvir. Não estou aqui pelas promessas que o ministro terá esquecido. Estou pelo comportamento imutável dos agricultores, sempre de mão estendida à espera de receber mais um subsídio-para-tudo-e-mais-alguma-coisa. E se a corporação se queixa do mal que a União Europeia lhes fez, estão no exercício gratuito da ingratidão: não dizem que a União é mais uma fonte de subsídios.

Quando vejo um agricultor em Montemor-o-Velho a exigir que o Estado lhe entregue mais dinheiro, cheira-me a pornografia barata. Um vómito em cima de quem paga os impostos e não tem válvula de escape. Os que contemporizam com os generosos subsídios que servem de segurança social e tudo o resto aos agricultores, ou são ingénuos ou não curam das suas próprias carteiras. Poderão dizer que a agricultura é uma actividade específica, com grandes riscos devido à incerteza climática e atmosférica, que num instante pode levar o esforço de meses a fio. É para isso que existem seguros.

Não compreendo porque devemos ser todos nós, pagadores de impostos, forçados a mostrar solidariedade para com a corporação de agricultores. Já não basta sermos obrigados a pagar preços exorbitantes pelo que comemos? E, há que o recordar, vão-nos ao bolso porque os nossos agricultores não conseguem ser competitivos. Como se fosse um prémio pelo mau desempenho, sobre eles chove uma enxurrada de subsídios.

Mais perplexo fico quando olho para os exemplares da corporação agrícola que desfilam em sucessivos protestos. Não têm a aparência de agricultores pobres, nem sequer remediados. Têm a aparência de senhores bem postos na vida, cultores da ruralidade que tem um travo da qualidade de vida que não está acessível aos que mergulham no bulício das cidades. Têm o aspecto de quem se faz passear em jipes de dezenas de milhar de euros. São eles que exigem mais paternalismo do Estado, que a torneira dos subsídios permaneça aberta. Desviam dinheiros que podiam ter utilização mais produtiva. Ou, na linguagem dos que são atreitos ao fenómeno, “dinheiros com utilidade social”.

Por cada euro que lhes seja distribuído, encarece o preço da comida. Menos é o dinheiro disponível para os que são verdadeiramente pobres ou remediados, a quem não resta outra opção senão pagar caro pelo que têm que comer. Se já não bastasse a duvidosa opção de exigir à imensa maioria (consumidores) que sustentem uma escassa e improdutiva minoria (os agricultores), adiciona-se o absurdo de retirar aos pobres para garantir a sobrevivência de uma casta que se sabe manter de pé porque pode contar com a generosidade de quem faz a gestão dos impostos que pagamos. Robin dos Bosques não gostaria de saber que o Estado Social tem estas derivas…

Há algo que me intriga em tudo isto: a desfaçatez dos ricos agricultores que aparecem de mão estendida, sempre a pedinchar. Tento-me colocar no seu lugar. E não me consigo ver na pusilanimidade de estar sempre a receber esmola do paternal Estado. Até pela incómoda sensação de me saber sustentado por uma imensa mole que paga impostos. Todavia, há quem goste de fazer o papel de pedinte e se sinta orgulhoso da condição. Mesmo que no limiar da abastança, entre os nenúfares da incapacidade para a produção, cuspam intermináveis ofensas à imensa maioria que os sustenta.

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