12.4.06

De repente, acordei marxista?


Não, não foi mais uma crónica de J. C. Espada que me transformou num marxista. Nem sequer as patetices de um Berlusconi blasé cheio de incontinência verbal. Ou as beatices de João César das Neves. Ou as manhas da direita trauliteira, saudosa dos tempos do salazarismo, daquela direita que convive mal com um regime multipartidário. Ou ainda deploráveis declarações de um ignaro patrão da indústria nacional, daqueles que ao abrir a boca me fazem perceber porque existem sindicatos. Nem sequer despertei de um sono tranquilo sabendo-me, subitamente, um marxista dos sete costados (nesse caso estaria a despertar de um sono para mergulhar num pesadelo).

Já não é a primeira vez que me provocam, sugerindo que utilizo uma retórica própria do marxismo. Em tempos uma colega advertiu-me: “Paulo, olhe que “mais-valia” é um termo típico da linguagem marxista”. Fiquei atónito. Sem saber, estava a empregar palavras que fazem parte do catálogo marxista. Para quem se situa nos antípodas do marxismo, era sintoma preocupante. Inscrevi o esclarecimento na agenda mental onde arrumamos as tarefas para o futuro. Queria-me informar se “mais-valia” é um legado do marxismo. Outras tarefas tiveram prioridade. Aquela ficou esquecida na poeira do tempo. Nunca tirei a limpo se andava, sem saber, a falar o idioma do marxismo. Ou se era apenas uma provocação de alguém que sabia a minha exuberância na antítese do marxismo.

Há dias, novo episódio. Numa troca de e-mails com outra colega – também ela ciente que, para mim, Marx está na prateleira das personalidades dispensáveis. Pedia-me para dar opinião sobre um certo assunto (sem relação com a história das ideias políticas). Respondi com a opinião do momento. Como ela rematava o e-mail pedindo “diga o que achar melhor! E não faça ao contrário só porque percebeu o que eu acho melhor”, retorqui, num esboço falhado de ironia, “esta é mesmo a minha opinião, que até coincide com a sua (nada mau, para quem tem um aguçado espírito de contradição...)”. Na volta do correio, fui confrontando com o seguinte: “e quem tinha “espírito de contradição” não era o Marx? Depois conversaremos para acertar estratégias; ou fazer a síntese, para manter a toada marxista...Boa noite”.

Fui-me deitar com os fantasmas. Não fosse o sono o sagrado altar do descanso e andaria embrulhado nos lençóis, imerso numa terrível insónia, tentando perceber a contradição interna em que estava agrilhoado. Percebi que não havia motivos de preocupação. Não era um marxista retardado. Ou um marxista sem o saber. Tudo não passava de um chiste provocatório, de pessoas que sabem a urticária que Marx e seus apóstolos me causam.

Mesmo assim quis apaziguar a consciência. Não fossem todos estes anos de azia anti-marxista um equívoco. Não fosse ter acordado para o mundo disposto a vê-lo de outro ângulo, um ângulo diametralmente oposto àquele que por tanto tempo habitei. Fiquei inquieto. Teria feito uma travessia no deserto, convencido de certas ideias – as ideias que fui cultivando, com as inspirações de certas leituras e o afastamento de ideias veiculadas noutras leituras – para acordar para uma forma diferente de ver o mundo? Seria uma viragem de cento e oitenta graus, de que há exemplo em personalidades afamadas como Durão Barroso, Pacheco Pereira, o director do Público, José Manuel Fernandes, J. C. Espada ou, num percurso oposto, Freitas do Amaral?

Desenganei-me, sem precisar de consultar a bola de cristal. Acredito nas minhas colegas, quando advertem que certos termos me fizeram resvalar para a retórica marxista. Não é o hábito que faz o monge, nestas coisas das ideias políticas. Elas terão lido Marx. Eu conheço Marx por portas travessas – que não me dei ao trabalho de ler “O Capital”. O que aconteceria se todos fôssemos levados a pesar, ao milímetro, as palavras que usamos?

Continuo, teimoso, a discordar de Marx. Louvo a sua existência como teorizador. Não dou para o peditório que o quer elevar ao Olimpo das personalidades que enriqueceram o património da humanidade. Com a chancela da sua inspiração intelectual foram cometidas muitas atrocidades. Marx tem o seu lugar no meu imaginário: é o ponto cardeal que me indica o caminho a não percorrer.

Sem comentários: