26.4.06

Também não trazia cravo à lapela. Serei um ominoso “fascista”?




Traje especial para ocasiões solenes – ensinam-nos na meninice. Excelsa fatiota para dias de festança rija. Acompanhando o ritual, sinais que demarcam festividades espalhadas pelo calendário. Para as esquerdas, sempre bem pensantes, o cravo à lapela é um must de cada vez que se soleniza o 25 de Abril. E lá os vemos, uns por convicção, outros por colagem oportunista. Os primeiros, ainda convencidos que são a caução do genuíno 25 de Abril (comunistas e abencerragens). Os segundos (socialistas) percebem que ser de esquerda está na moda, percebem que o sinal identitário do 25 de Abril é o cravo e embarcam no folclore que dá rios de dinheiro às floristas.

Pela primeira vez, um presidente da república que não chegou a Belém vindo de um apeadeiro da tradicional esquerda. Especulava-se: irá o algarvio professor de finanças romper com a tradição dos antecessores? Nunca se lhe vira cravo à lapela, o que logo o conota com essa coisa nefanda, a direita. Havia uma certeza: qualquer que fosse a decisão de sua excelência, teríamos ruptura com o passado. Envergando o cravo, rompia com os hábitos da “família política” onde fez tirocínio; acaso aparecesse sem o apêndice floral ao lado da gravata, rompia com o hábito a que os anteriores presidentes nos habituaram.

Cavaco não contribuiu para a lucrativa actividade das floristas. Para desconforto da esquerda que penhorou, como exclusivo seu, as comemorações da revolução de Abril. Mesmo que essas esquerdas não tenham percebido (ou não tenha sido conveniente perceber) que o discurso do senhor presidente ressoou a Sampaio (sem o sampaiês). Um discurso que qualquer esquerdista moderado não teria pejo em aplaudir de pé. Acaso ainda tivesse dúvidas no momento da votação, desfazia-as ontem, ao escutar as palavras de Cavaco. Certifiquei-me que não poderia votar numa pessoa de esquerda.

Incomoda-me o unanimismo forçado que voa desde certos quadrantes. Convencionou-se que só de cravo à lapela é que se presta homenagem à revolução de Abril. Os dissidentes do apêndice floral são apontados a dedo, subtilmente denunciados como saudosistas do passado que cessou em 25 de Abril de 1974. É curioso que sejam as mesmas pessoas que zombam do acidental Bush Jr., os mesmos que denunciaram o simplismo da dicotomia pregada após os ataques do 11 de Setembro. Na ocasião, Bush Jr. sentenciou: “quem não está connosco (no combate ao terrorismo) está contra nós”. As vozes que se ergueram contra o simplismo de Bush Jr. tinham razão. Só se lamenta que escorreguem na casca da banana da incoerência e tenham o mesmo raciocínio a propósito do 25 de Abril. É lapidar a imagem que passam: quem trouxer cravos à lapela homenageia a revolução (dita dos cravos); quem o não fizer é um saudosista do “fascismo”. Parece que não há meio-termo.

E ele existe. Há quem seja cultor da liberdade (a liberty, na tradição liberal que distingue liberty de freedom) e não se reveja no artificialismo serôdio do símbolo do cravo. Como há quem se recuse a dar para o peditório de folclóricas manifestações – como a “obrigação” de mostrar um farfalhudo e garrido cravo pregado à lapela. É sintomática a reacção de desaprovação das esquerdas mais radicais, quando olham de soslaio para os que não envergam cravo. Sintomática do seu entendimento de liberdade, revelado na falta de tolerância em relação aos que dissidem da folclórica manifestação.

A simbologia do cravo vem acompanhada de outros comportamentos forçados, uma espécie de código de conduta para o bien faire dos sucessivos 25 de Abril. O que seria de alguém que propusesse o fim das bafientas comemorações da revolução? Teria às costas o pesado fardo fascizante, quando muito não se livrava da acusação de branqueamento do passado que merece enaltecimento, de passar uma esponja pela memória que cimenta a identidade colectiva, da desvalorização de uma revolução que marcou o reencontro com a liberdade. O sentir pessoal: é repetitivo assistir, nem que seja por breves minutos – os da distracção do olhar que escorrega para a televisão –, ao ritual de sempre: discursos solenes, a louvação da liberdade em termos tais que até parece que o fantasma do “fascismo” está ali à esquina, as patéticas caminhadas pela Avenida da Liberdade entoando os pregões da ordem, palavras poluídas vindas de quem não sabe praticar a liberdade.

Tenho para mim que elogiar a liberdade restituída pelo 25 de Abril, a cada 25 de Abril que passa, é um exercício de vacuidade. Chega o dia e o sentir colectivo é relembrado nas homenagens que devemos prestar aos arquitectos da revolução. Depois andamos trezentos e sessenta e quatro dias a atropelar – dia sim, dia não – a liberdade dos outros. O 25 de Abril de todos os anos parece uma catarse colectiva, uma expiação das escorregadelas para a intolerância nos outros trezentos e sessenta e quatro dias.

Sem comentários: