16.5.06

Obra colectiva

Tinha parado na fila para o semáforo, diante de um infantário. Os olhos desviaram-se para a direita, para as cores garridas que debruavam a parede do infantário. Era um quadro grande, com pinceladas esparsas. O contributo das crianças de três, quatro e cinco anos do infantário – a mensagem encimava a tela. Lamentei não trazer a máquina fotográfica para guardar a imagem do quadro.

Nos instantes que estive ali parado, os olhos passearam-se pela tela das cores garridas. Pelo tamanho do quadro, diria que emoldurava as impressões digitais de mais de vinte crianças. A obra colectiva no aprumo do esforço individual. O acervo de personalidades que se formam, as maneiras diferentes de retratar o imperceptível que lhes percorre a mente. Uns escolheram o vermelho vivo, esgravataram pinceladas sem nexo. Outros quiseram pintar em tons de azul mais calmo. Houve alguns que optaram pelo amarelo, em pinceladas revolvidas. Os verdes também marcavam presença na policromia da tela. Nuns casos, pinceladas redondas, com aprumo. Noutros, pinceladas desorganizadas, rebeldes. Tudo junto, numa federação de vontades individuais tão diferentes. A tela era a casa onde todos eles, diferentes, se mostravam irmanados numa causa comum.

A imagem povoou largos momentos do dia. Os pormenores da tela iam-se perdendo à medida que me tentava lembrar dela. Tinham sido uns escassos momentos a observá-la. A imagem da obra comum exposta aos transeuntes era a mensagem sublime do infantário para o mundo dos adultos. Uma lição para os adultos que fazem de divergências irremissíveis desavenças. Lançando a rede da especulação, a adivinhação de que havia ali meninos de outras nacionalidades, para perceber como há coisas tão mais importantes do que o bilhete de identidade que revela o país de onde somos. No infantário mais próximo, caso fosse mostrada tela com as pinceladas das crianças que lá habitam, a policromia seria diferente, as formas seriam diferentes. Não é preciso pular a fronteira para descobrir matizes diferentes nas obras colectivas legadas pelos infantários espalhados pelo mundo. A diversidade está nas diferenças entre duas crianças, mesmo que vivam porta com porta.

Naquela tela, onde uma embriaguez de cores e desenhos disformes falava bem alto, estavam universos pessoais tão díspares. Influências que já se notam, nos genes como na educação que vai sendo assimilada. O que me despertou a curiosidade foi esboçar outro exercício de adivinhação: tentar saber como seria a tela pintada pelas mesmas crianças daqui a cinco anos, daqui a quinze anos, daqui a trinta anos. E colocar os quatro quadros lado a lado, em sequência cronológica, sem identificação pessoal dos artistas que contribuíram para a obra colectiva. Só para perceber como evoluem as cores e as formas, o que é retratado ao longo da evolução que os encaminha para o amadurecimento. Quem sabe, para observar o escurecimento das cores, o entristecimento das formas, nuns casos o lugar para mais espaços vazios, noutros casos o preenchimento do espaço com traços vigorosos mas enegrecidos pelas vicissitudes da vida.

Aquela vintena de crianças é penhor do seu futuro. Por um momento, comovido pela tela que se oferecia diante dos meus olhos, apeteceu-me ter o dom da ubiquidade para acompanhar o crescimento daquela vintena de crianças. Perceber os caminhos gizados, alegrias recebidas, tristezas calcorreadas. Para saber como crescem. E depois desafiá-las para repetirem o esboço da obra em comum. Só para ver até que ponto crescem em uníssono, ou se as veredas diferentes por onde andam as levam a dobrar esquinas que se opõem nas recompensas que trazem. Seria apenas um vigilante não interventivo, um curador sem acção no percurso destas crianças. Para, daqui a uns anos, elas voltarem a expor a sua obra colectiva, serem as testemunhas do passado que assimilaram.

É pena que as crianças cresçam. Que se façam adultos. Que percam a ingenuidade de quem não percebe a perfídia do mundo das pessoas que cativam responsabilidade para decidir irresponsáveis coisas.

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