9.5.06

Optimismo europeísta

No dia da Europa, faz sentido (a quem é convictamente europeísta) dar o seu testemunho do optimismo na construção europeia. Até para, em continuação do texto de ontem, onde (mais uma vez) ficou patente a descrença nacional do autor, não ficar a imagem de um niilista sem redenção. Que é como quem diz: desmotivado português, entusiasmado europeu. Por uma vez, palavras construtivas por aqui.

É redundante lembrar como a construção europeia foi um legado inestimável para as gerações futuras. A Europa estava a sarar as feridas de duas sangrentas guerras mundiais. O mostruário da estupidez humana em toda a sua potência. A ilusão do nacionalismo, de como as arreigadas convicções patrióticas levam os povos ao abismo. Esses conflitos mostraram, acaso ainda fosse necessário numa era tributária da “modernidade”, que a entrega de vidas humanas no altar de valores tão incertos como a defesa do país era um absurdo.

Milhões de mortos depois, tanta terra queimada pelas bombas que consumiram espuriamente recursos económicos, os líderes dos principais países europeus compreenderam que tinha chegado o momento de mudar de vida. Abria-se o caminho a um futuro em conjunto, uma soberania que ia ser partilhada entre todos. E todos sentiram a necessidade de encontrar soluções conjuntas para os problemas que sentiam. Os países soltavam-se das fronteiras, das amarras pútridas do nacionalismo. Entrava-se na “pós-modernidade”, o supranacional a ganhar terreno ao nacional.

Há muitas maneiras de encarar a construção europeia. Há os que a renegam, saudosistas do umbiguismo nacional, como se ainda fosse possível cada país viver mergulhado no isolamento. Ou os que a renegam por desavenças ideológicas, porque a União Europeia foi traçando opções que se encontram nos antípodas das escolhas ideológicas destes sectores. Depois há os cépticos: condescendem com a construção europeia, mas temem que venha a nascer algo parecido com os Estados Unidos da Europa, o aniquilamento dos Estados-nação, uma esponja sobre o passado comum cimentado em séculos de história a ferro e fogo, muito sangue derramado. Há os realistas, para quem a União Europeia é um processo onde os Estados são os protagonistas (porque as grandes decisões exigem o seu consentimento), reconhecendo que o tempo trouxe evoluções que diminuíram a margem de manobra dos países. No fim da escala, os “euro-entusiastas” e os “eurofilos”. Distingue-os o tipo de compromisso à construção europeia. Os primeiros concordam com todos os passos dados pela União, professando uma crença inabalável em todas as decisões tomadas. Os segundos acusam a União de pecar por defeito, de falta de ambição. Gostariam de ver a União assemelhar-se a um super Estado, uma federação com forte centralização de poderes.

Onde me situo? Algures entre os euro-entusiastas e os eurofilos. Não partilho do entusiasmo militante dos devotos da construção europeia. Há avanços que aplaudo, outros que significam uma deriva social-democrata desnecessária. Retrocessos que ilustram a falta de coragem dos Estados, sequiosos do poder que temem perder para uma União na qual a sua mão controladora vai perdendo eficácia. Não sou eurofilo. Recuso ver a União transformada num super-Estado europeu. Os eurofilos desejam replicar na União o modelo do Estado que está em avançada decadência. Ignoram que o poder pode ser exercido de outras formas, que não apenas a tradicional soberania estadual.

Há opções que tomamos que são o produto de um oportunismo estratégico. (Sem que a palavra “oportunismo” assuma aqui a conotação negativa que costuma ter.) Estando a meio caminho entre os euro-entusiastas e os eurofilos, admito que a construção europeia é um instrumento para a diminuição de importância da nacionalidade (no que me interessa, da nacionalidade portuguesa). Duas são as motivações: o anarquismo ideológico que me influencia; e a descrença na qualidade dos políticos nacionais para levar a nau por boas águas.

Para um anarquista, menos Estado é uma excelente notícia. Interpreto a construção europeia como um caminho que enfraquece os Estados sem representar, ao mesmo tempo, um correspondente engordar da União. Aqui não há um jogo de soma zero: o que é perdido pelos Estados não é sinónimo de conquista de poderes pela União. Aprofundar a construção da União Europeia emagrece os Estados – o que me basta para ser adepto da construção europeia. Por outro lado, a soberania partilhada implica que menos sejam os assuntos decididos a sós pela casta de políticos nacionais. É sintoma do avanço de que somos testemunhas. Se continuássemos entregues aos devaneios e incompetências dos políticos domésticos, acaso teríamos inflação onde está, ou taxas de juro tão favoráveis? O bom da União Europeia é que amarra as mãos e os pés das autoridades de Lisboa (e dos outros Estados, mas com isso não me importo – não é aí que vivo). O belo da construção europeia é a sua natureza transnacional. Muitas pessoas nem percebem que são governadas, cada vez mais, de fora para dentro (da União para Portugal). O que faz dos políticos nacionais meros verbos de encher.

A União Europeia foi o golpe fatal (e final) no sebastianismo que, como peça da idiossincrasia nacional, nos mergulha na nostalgia e afocinha numa esperança nebulosa que está para vir mas nunca mais chega. Se soubermos mudar a agulha, se soubermos ser optimistas europeus e enterrar os laivos de sebastianismo que ainda perduram, quem sabe se ainda temos futuro. Há quem veja nisto uma manifestação pós-moderna de lealdade política, não apenas jurada ao país onde se arregimentou nacionalidade. Chamam-lhe um “patriotismo europeu”. A palavra “patriotismo” causa-me comichão. Prefiro falar do “optimismo europeísta”.

Há uma grande dose de oportunismo nesta visão pessoal da construção europeia. Sou adepto da União Europeia porque continuar a construir o edifício da União representa o emagrecimento de Portugal. Nisso, concedo, perdura uma linha niilista.

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