11.5.06

Os riscos de uma vida asséptica


Quando um médico dispara o interrogatório clínico, pouco falta para arrebatar o campeonato das virtudes. Nada de tabaco, drogas, doenças, agora nem sequer consumo de bebidas alcoólicas. Faço muito exercício físico. Não tenho inestéticas adiposidades a adejar o corpo. Concedo, podia a alimentação ser melhor – se engrossar o coro dos que ensinam que cozidos e grelhados, legumes abundantes e pouca carne vermelha, são ingredientes de uma alimentação saudável. Descontando o ligeiro deslize alimentar, levo vida regrada.

E, no entanto, não sinto que seja motivo para me gabar. Todas as opções de vida são conscientes. Nunca fumei, nunca experimentei o alucinante mundo dos estupefacientes, agora até sou abstémio. Nunca foram opções determinadas pelo exterior. Sempre respostas instintivas quando era colocado perante a opção de fumar, de embarcar com amigos e vizinhos na espiral das drogas, agora até de não beber álcool. Nunca impus sacrifícios para não fumar, para não me drogar. Já tenho mais dificuldade em levar uma alimentação equilibrada, porque as demoníacas tentações da gula estão à espreita. É difícil resistir-lhes. A mais recente “virtude” é a abstémia alcoólica. E vale a pena tanta virtude junta, tanta vida regrada, se acaso a disciplinada forma de viver se aproxima de uma asséptica vida?

Os prazeres da vida têm preços proibitivos. Os fumadores compulsivos arriscam-se a morrer pela nicotina que envenena os pulmões. Os bebedores afamados prestam contas às cirroses que destroem o fígado. Os amantes da boa mesa, de petiscos descuidados com carradas de gordura poli-saturada, debatem-se com o colesterol, sentem a ameaça de ataques cardíacos ou tromboses que, quando não ceifam a vida, findam o bem-estar que ela merece. As drogas diversas causam a dependência consabida. E pergunto-me se, afinal, todos os casos não serão drogas.

Quando vejo tantas doenças que minam a saúde pública e detecto a relação causal entre estes vícios privados e as maleitas que se deitam nas pessoas, meio caminho andado para um amante da vida se entregar no desvelo da vida regrada. Emerge um dilema, porém: o prolongamento da vida merece o preço a pagar pela vida asséptica que anda de braço dado com a vida regrada? Abdicamos desses prazeres e entramos num deserto dos sentidos, numa redução do bem-estar pessoal que tabaco, drogas, álcool, gastronomia significam? Onde pára o fiel da balança: viver pouco e muito, intensamente, retirando cada grama incomensurável dos prazeres proibidos pelos guardiães da saúde pública? Ou deixar a “boa consciência falar”, entrar na espiral da moderada forma de viver, esticar a vida até mais tarde, ainda que ela perca o sal e a pimenta que a condimentam?

O dilema cresce quando a reflexão parte de um agnóstico, para quem a vida se consome com a passagem pela dimensão terrena. A angústia da morte é um convite à limpeza dos “maus hábitos”, o escadote para o lado de lá da margem, onde está à espera a promessa de vida longa e desencontrada de enfermidades. Haverá para os agnósticos militantes um sucedâneo de deus, o estigma da vida regrada que extingue as tentações que levam ao definhamento?

Debruço-me nestes dilemas, agora que decidi deixar de beber – e não que a bebida fosse companhia assídua, que apenas me visitava em ocasiões solenes, em jantares opíparos, ou na cerveja de Verão que ajuda a refrescar o corpo do calor sentido. Depois de dar este passo, olhei para trás e parei no apeadeiro da reflexão. Dei comigo um passo mais adiante na “purificação de hábitos”. Para alguns, um exemplo invejável – sem tabaco, drogas, álcool, com muito exercício físico, vá lá, com uma alimentação a melhorar. Não me orgulho do “feito”. De repente, apetece voltar atrás com a palavra firmada com a consciência. Regressar à cerveja que acompanha um dia de calor, ao vinho tinto companhia ideal de um manjar de deleites. Sinto-me dividido. Temo entrar no albergue da vida asséptica, longe dos prazeres dos sabores, longe do júbilo e do desembaraço esfusiante que vem com a etilização.

De momento, é mais forte o lado da recusa. Vinga a rejeição do mau estar que chega depois do álcool – se ele chega ao sangue em quantidades que proíbem deitar ao volante. Será esta a espontaneidade que me conduziu à abstémia? Será espontaneidade, de todo? Acaso seja o instinto a falar mais alto, há lugar à perplexidade se sentir que me aproximo de uma vida asséptica? Para o bem-estar só contam estes prazeres que se materializam? Não há outras fugas que compensem a expurgação de “maus hábitos”?

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