5.5.06

Portugal futuro, máquina de fazer meninos

Por momentos pensei que o Eng. Guterres ainda fosse primeiro-ministro. O homem engravatado que falava para as câmaras era um zeloso orador da Opus Dei, enaltecendo as virtudes da família, só da família, como cada cidadão deve contribuir para a renovação da população. Afinal o Eng. era outro. Descobriu as delícias das famílias rodeadas de um rebanho de filhos. Será conhecido como o arquitecto de nova teoria demográfica, que combate a tendência de envelhecimento da população que ameaça destruir pela raiz um dos esteios dessa coisa tão bela que se chama “modelo social europeu” – as pensões de reforma.

O primeiro-ministro foi o porta-voz da ideia inusitada. Está-se a ver, para o futuro, os seus colegas dos outros países europeus a cumprimentarem-no efusivamente pela descoberta da pólvora. Seremos conhecidos como o país que mostrou ao mundo o caminho a percorrer. Depois de Vasco da Gama, o Sócrates das reformas dos velhinhos.

O líder deste governo veio anunciar, com uma candura que se mistura com indisfarçáveis laivos de arrogância de quem governa com maioria absoluta: quem for prolífico na reprodução da espécie será premiado quando chegar o momento de calcular a reforma. Os outros – os que não conseguiram o feito de multiplicarem a prole, os que padecerem de problemas de infertilidade, os que tentarem a adopção mas esbarrarem na monstruosa burocracia, os que forem homossexuais – serão “ligeiramente penalizados”, nas palavras do socialista que nos governa. Chegarão mais tarde à idade de reforma, ou terão que aumentar os seus descontos se quiserem atingir a reforma ao mesmo tempo dos que se fartaram de produzir filhos para a reposição demográfica.

Há ideias que podem ser boas no papel, ou nos insondáveis corredores das mentes que se acotovelam em gabinetes esconsos. É pena que estes planificadores não tentem descer do pedestal e procurem perceber como funcionam as teorias quando entram na vida real das pessoas. Este governo está a enviar uma mensagem clara: portugueses, reproduzam-se com fartura. Para aqueles que cumprirem este novo “desígnio nacional” (como se diria em bom sampaiês), o generoso e paternalista Estado está atento com regalias avantajadas. Se isto não é uma interferência nas escolhas pessoais de cada um, então já não percebo nada.

Faço um esforço para perceber a ideia mirabolante. Vejo duas explicações. Primeira, o governo foi infectado pelo vírus Mourinho – todos os meios são legítimos para atingir os fins. Que interessa se a decisão de diferenciar o acesso à reforma em função da produção de crianças é uma intrusão no livre arbítrio de cada pessoa, ou uma clara desigualdade? Há que não esquecer, estamos na presença de socialistas, mestres na arte de fazer engenharia social, pródigos em interferir na vida pessoal por ninharias. É a finalidade que interessa (contribuir para a diminuição do envelhecimento da população). Como se lá chega, pouco importa. Segunda explicação: até faz sentido recompensar os progenitores que se desmultiplicaram em filhos vários. Deram um inestimável contributo à sociedade. Esta reconhece-o, premiando aqueles que tiveram a canseira de se esforçar até à exaustão para alcançar o enésimo filho. O prémio chega com a reforma antecipada. É o descanso dos guerreiros.

Não me comovem as explicações que vou buscar ao baú do inexplicável. Não há semana sem medidas que vêm interferir mais na nossa vida. É o Estado socialista, versão vigilante, que nos cerca por todos os lados, num acantonamento que ameaça diluir o livre arbítrio em nada. Para não se pensar que apenas enveredo pela crítica destrutiva, deixo aqui três sugestões (portanto, um laivo de construtivismo). Por um lado, proibir a venda de qualquer tipo de contraceptivo. É garantido o sucesso quando se ambiciona aumentar a taxa de natalidade. Ao mesmo tempo, a igreja agradecia o aliado inesperado (quem sabe se Sócrates, como Guterres, também é Opus Dei…). Segunda medida: esqueçam a tontice da liberalização do aborto, que está prestes a ir a referendo (outra vez). Pode ser uma bandeira política que arregimenta fidelidades sectoriais. Contudo, o objectivo prioritário (a linha de montagem em série das criancinhas) não permite que se desperdice um único feto. Finalmente, o governo deve premiar os angariadores de mulheres estrangeiras que são espalhadas pelas casas de alterne de norte a sul. À sua maneira, estes empreendedores dão um contributo valioso para a reposição da população.

Quando vejo as sucessivas intromissões na esfera pessoal, quando vejo o plácido Sócrates a avisar-nos que devemos procriar até à exaustão, apetece-me, de repente, não ter mais filhos.

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