3.7.06

Cinco minutos de fama (e a incomparável democracia do futebol)

Costuma-se dizer que toda a gente tem direito aos seus cinco minutos de fama. O cidadão anónimo vê chegar o dia em que sai do anonimato. A câmara apontada na sua direcção, o microfone espetado para captar as suas sábias palavras, o anónimo cidadão exulta de alegria. Vai aparecer na televisão. Quando é em directo, telefona à família e amigos para testemunharem a façanha. É vê-los a passearem-se atrás da câmara, empunhando o telemóvel que avisa a família para ligar a televisão no canal y, que lá estará a sua pessoa em garboso desfile para o país ver. Se a aparição é gravada, ficam de plantão aos noticiários – o transeunte entrevistado e um exército composto por família, amigos e colegas de trabalho – até passar a reportagem mais importante da sua vida.

De repente, apercebi-me que o futebol sublima a democracia. As façanhas desportivas trazem febril a nação. O arrebatamento pelas vitórias põe a populaça nas ruas, em comemorações efusivas. As televisões têm que reportar o evento. Espalham-se pelas avenidas onde se reúne o ajuntamento. Os repórteres são instruídos para ouvirem a voz do povo, a quintessência da democracia. A escolha é aleatória, por entre o ajuntamento que espreita para, do outro lado, as suas caras larocas serem vistas. Quando o microfone é posto na boca do espécime escolhido, não são os tais cinco minutos de fama – que o tempo é escasso e precioso. Serão trinta segundos, um pouco menos, um pouco mais. Uns escassos segundos de glória com predicados terapêuticos: semeiam dias, meses de contentamento inigualável para o espécime que acabou de ser entrevistado.

Eis porque o futebol exalta a democracia no seu esplendor. A palavra ao povo. Que interessa se há um desfile de ideias sem sentido, entusiasmo desregrado que leva as pessoas a dizerem coisas incompreensíveis, inúmeros pontapés na gramática? O que importa é dar a voz ao povo, que nisso consiste a democracia. E é ainda mais democrático porque os êxitos desportivos espalham o bem-estar de norte a sul. É a auto-estima que se eleva a níveis impossíveis de alcançar noutros domínios: não o será a política, ou o desempenho económico, ou a posição perante o mundo atendendo à exiguidade que nos remete para o papel de vírgula do mundo, nem serão as artes.

(Nem nas artes: o prémio Nobel da literatura não foi celebrado com uma milésima parte do entusiasmo empregue nas comemorações dos êxitos do futebol. O que confirma o diagnóstico sombrio das elites culturais: somos um povo embrutecido, incapaz de aplaudir a façanha do escritor que recebe um prémio Nobel como gritamos os golos e as vitórias do futebol.)

Os políticos devem estar roídos de inveja. Pelas ruas enchem-se cortejos que deificam os bravos que têm capturado o perfume da vitória em estádios alemães. A malta da bola é um bálsamo para um povo deprimido. Retira-o da depressão, ainda que seja por umas escassas semanas. Um oásis de temperança. Assim se acentua a faceta democrática do futebol nacional no certame em curso: pelos resultados, que é assim que a democracia deve ser avaliada. Pela felicidade aspergida pelos dedos mágicos dos artistas que lutam contra o inimigo que veste a bandeira do outro país. Um acto de generosidade que não é mensurável.

É verdade que o povo vem para a rua gastar gasolina nos cortejos ruidosos que percorrem as ruas e avenidas. É verdade que a gasolina está pela hora da morte. Houvesse quem calculasse estes efeitos e decerto a conclusão seria lapidar: a compensação pela felicidade semeada em cada espécime com o coração arrebatado pelas conquistas lusas ultrapassa o dispêndio do combustível, coisa espúria ao pé da auto-estima inflacionada. Democracia é trazer um povo feliz. O futebol dá o exemplo a políticos, repito, corroídos de inveja (que, como se não bastasse, se colam às façanhas, como se tivessem algo a ver com elas – oportunistamente). E os Pachecos Pereiras remetidos às catacumbas onde destilam o seu fel pela incapacidade para vencermos outras olimpíadas mais importantes (nas artes, na ciência, na tecnologia, no xadrez…).
Em nós, um novo Brasil (que julgou a sua falsa grandeza pelo incomparável desempenho no mundo do futebol)?

Sem comentários: