2.8.06

Dedo médio espetado


Enclausurado na carrinha celular que o levava do tribunal onde foi julgado. Acusado do assassínio de um transexual, com requintes de malvadez. Valeu-lhe a menoridade para o juiz, brandamente, sentenciar onze meses de internamento num centro de acolhimento de jovens transviados. À saída do tribunal, dentro do carro celular, o jovem refugiou-se das indiscretas câmaras fotográficas dos jornalistas espetando o dedo médio enquanto recolhia os demais. Sabemos o significado da mensagem gestual.
Ontem vi a reportagem pela televisão. Dois ilustres advogados dos acusados são entrevistados. Ambos jovens. Ambos transpiravam tanta inexperiência como suor no pino do calor de um dia de Agosto. A advogada, com a verborreia tão típica dos causídicos, embrulhando palavras caras que, bem espremidas, dizem pouco. De sorriso de orelha a orelha, diz-se contente com a sentença. Acha que foi feita justiça com o seu jovem cliente. No íntimo rejubila de contentamento: o seu momento de glória, à frente das câmaras da televisão.
O colega masculino, advogado de outro jovem meliante, exala a arrogância que personifica jovens advogados de cueiros. Acabadinhos de sair dos bancos da universidade e, contudo, passeiam triunfantes a sua sapiência inigualável. Sem sorrisos, porque o que ele tinha a dizer revestia-se de tamanha gravidade que a postura não era compatível com o esgar de felicidade interior da colega que acabara de ser entrevistada. Ao jeito de bom vendedor de banha da cobra, o jovem advogado protestou a inocência do seu cliente. Anunciou recurso. Não satisfeito, avisou que ia processar o Estado, a Oficina de S. José (onde os jovens assassinos estavam hospedados à data do crime) e até o município do Porto.
Vai longe, o jovem causídico. Augura-se-lhe um futuro brilhante: a defender o indefensável, a empatar a justiça com manobras dilatórias, especialista em desembrulhar expedientes que amarram as mãos da justiça. Para gáudio dos aprendizes do crime que ele há-de patrocinar, o que coincide com o prolongamento da angústia das vítimas dos crimes. Entretanto há-de enriquecer. E subir na escala da fama entre o escol dos malandros encartados. De boca em boca hão-de passar a palavra. Aquele senhor doutor é um enganador da justiça. Ludibria os juízes com artes de prestidigitação dignas de Houdini. Faz-se pagar principescamente. Mas a liberdade não tem preço - mais ainda quando a liberdade se encarece depois da prática de crimes vários.
A reportagem findava com a revelação que todos os jovens que puseram fim à vida do transexual tinham em comum um passado de abandono pelas respectivas famílias. Hoje leio que as mesmas famílias que nunca quiseram saber daqueles infelizes jovens verteram lágrimas ao tomarem conhecimento da sentença. Acham-na injusta. Eu acho que essas são lágrimas de crocodilo. Uma dessas famílias está bem entregue: nas mãos daquele espampanante advogado que prometeu processar tudo e todos, como se tudo e todos tivessem manobrado a vontade do jovem quando decidiu, com os comparsas, praticar as sevícias que terminaram na morte do transexual. Família covarde escondida nas lágrimas de crocodilo e advogado que nos quer convencer que o tratante por ele defendido é a vítima, não o agressor.
Se por um momento admitirmos que o Estado somos todos nós (asserção contestável), então todos nós temos um quinhão da responsabilidade pelas sevícias que o jovenzinho imberbe cometeu. Afiança o patético advogado. Tudo isto me repugna. A família que sempre esteve nas tintas para o jovem, e nós todos, que nem sequer o conhecíamos, a sermos chamados à pedra. É a negação dos mínimos de bom-senso. Com o alto patrocínio do perverso advogado que quer mostrar serviço para a posteridade. Está pouco interessado no destino do jovem assassino que acabou de defender em julgamento. Está mais interessado em cultivar a sua imagem de advogado capaz de defender com unhas e dentes o biltre acusado do crime mais hediondo. A classe do crime anotou o nome daquele advogado. Ele há-de ser requisitado quando o próximo criminoso cometer acto que lhe pode desgraçar a vida. A menos que o patético advogado consiga descobrir interpretações fantasiosas da lei, com o predicado de devolver o meliante à liberdade.
Esta casta de advogados mal cheirosos intelectualmente trouxe-me mais recordações dos tempos inglórios do estágio de advocacia. Parece que o estado da arte continua a nivelar-se por uma bitola muito baixa. Depois os advogados ficam admirados quando a sua reputação, como classe, anda pelas ruas da amargura. Lamentável é que não existam meios para suspender endiabrados advogados que se enlameiam em expedientes que negam a justiça. Era o mínimo que aquele aprendiz de feiticeiro merecia. Teria, pelo menos, a virtude pedagógica de impedir a insolência de toda uma horda de advogados que empesta a profissão.
Porque isso está fora das cogitações, sirvo-me do gesto do jovem sentenciado, retratado nas páginas dos jornais, e endereço-o ao obnóxio advogado que prometeu um vendaval para repor a injustiça.

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