28.8.06

O felino faz jus à alcunha


Se me permitem, uma deriva infantil. Fui ver o Garfield 2. Um filme para maiores de quatro anos. Diverti-me imenso! Afinal, em vez de um Garfield havia dois – o genuíno e o seu sósia, se bem que o sósia estivesse nos antípodas do comportamento do Garfield que nos foi dado a conhecer. A diferença entre a plebe e a nobreza etiquetada britânica.

Mas não é do filme que o texto de hoje trata. O filme é apenas o mote. Ao enorme gosto pessoal por gatos – e felinos de toda a espécie – corresponde a predisposição para assistir com atenção a filmes e documentários em que os felinos são protagonistas. Se nos documentários do tipo científico a seriedade da ciência cauciona um tratamento honesto para os felinos, sempre me causou estranheza o lugar menor que aos gatos era reservado no universo dos desenhos animados. Lembro-mo do Tom e Jerry e de outros desenhos animados em que o mau da fita era um gato preto e branco (cujo nome não me ocorre) e o anjinho era um pintainho amarelo sempre a escapulir-se das maldades reiteradas do gato.

E causa-me espécie quando o gato encarna a maldade e quem é elevado ao altar da bondade é um rato – respectivamente, Tom e Jerry. Passo a explicar a estranheza. O rato é um bicho asqueroso, uma fonte de sujidade e de doenças. É perseguido pela sociedade. Nem se dá o caso de haver protecção especial ao rato num lugar recôndito do planeta. As vacas são sagradas na Índia. Cirandam pelas ruas, intocáveis, como por aqui andam os cães e os gatos. Se pelo ocidente o cão ocupa um lugar de excelência como animal de companhia, em certos países asiáticos a desdita bate-lhes à porta quando são liquidados para aparecerem à mesa como iguaria. Apesar das diferenças de estatuto variarem de lugar para lugar para certos animais, o rato ocupa um lugar consensual. Em todos os lugares, vive remetido à clandestinidade. Na escuridão das caves, sempre em fuga dos humanos e dos gatos vadios que tantas vezes são tolerados pelos oportunistas humanos na sua função de exímios caçadores de ratos.

As senhoras saltam horripiladas para cima das mesas ou de muros quando deparam com um rato. Já vi um enorme grand danois a guinchar de medo quando um pequeno rato se pôs em bicos de pés, pose ameaçadora, brioso pequenote enfrentando o Golias amedrontado. As pessoas semeiam veneno para rato quando a praga destrói coisas armazenadas. Os ratos cinzentos escondidos da presença humana são criaturas feias, que causam a náusea à pessoa comum. A prova dos nove: tirando uma casta de ratinhos albinos que certas pessoas gostam de amestrar, não há notícia de ratos arregimentados como animais de companhia. São batidos aos pontos por outras espécies que com eles rivalizam pela repugnância que causam – répteis de variada espécie que existem em certos lares como animais de estimação. Em boa verdade, os ratos são dos animais mais perseguidos pela espécie humana.

E mesmo assim os desenhos animados cultivaram uma aura que subverte o estado de coisas a que estamos habituados. Há nisso uma anti-pedagogia que pode causar confusão nas crianças em formação de personalidade. Quando elas assistem a episódios do Tom e Jerry são educadas na ideia que o gato é a personagem maléfica e que o dócil ratinho é o lado bom da história. Como se não bastasse a ideia funesta de que o mundo se resume a um binómio de bons e maus – o que daria pano para mangas pela controvérsia dessa retórica – o diagnóstico piora quando a fábula corporiza um imaginário que se divorcia da realidade. A criancinha apanha um choque quando vai pela rua e vê um homem endemoninhado a correr um inocente rato à vassourada. Indignado com o perverso homem, protesta a sua queixa à progenitora. Mais admirado ficará quando a progenitora confessar o seu asco com a criatura que fugia, esbaforida, da vassourada.
Tom e Jerry são uma infelicidade em forma de desenho animado. Um contributo para a confusão mental de criancinhas em formação de personalidade. E uma subversão da realidade. Ou talvez não. Porventura estes desenhos animados estavam muito avançados para a época. Quando nem sequer se sonhava com a ideia da discriminação positiva, hoje tão em moda, Tom e Jerry lançaram as primeiras sementes para a discriminação positiva. Através dos episódios de Tom e Jerry pudemos testemunhar como a vítima da sociedade foi transformada no papel de herói. Infelizmente, à custa do gato.

Sem comentários: