3.8.06

Sai uma peça de teatro infantil cheia de palavras caras


Há tempos, nos jardins de Serralves, fui espectador de uma peça de teatro infantil. Um Woodstock em pequena escala: a pequenada e os progenitores em comunhão na relva, muito xanato à mistura. Só faltavam os charros e o amor livre entre os progenitores. O espírito livre é o melhor legado desses tempos loucos vividos em 1968 – daí que alguma loucura tenha tocado quem nasceu nesse ano…Fico inebriado com os vapores saudosistas resgatados da moldura dos tempos idos, mesmo quando a nostalgia vem perfumada com a maresia do patético.

Começa a função. Três jovens artistas puxam as vozes das entranhas, mercê da ausência de microfones. Manipulam objectos inanimados, dão-lhes vida. Onomatopeias tentam cativar a atenção dos mais pequenos. Como é inevitável, entoação apatetada; como se as crianças fossem atrasadas mentais para quem as macacadas são imperativas. Não demorou a instalar-se a surpresa: por entre a mímica e a entoação que supõem um profundo atraso mental da audiência infantil, algumas palavras difíceis. Poéticas, sem dúvida. Estirpe literária de elevado calibre. Desconfiei logo ali que a mensagem se evaporava no éter antes de chegar ao destinatário. Haveriam as crianças de decifrar o significado daquelas palavras hermeticamente seladas num sentido incompreendido?

De regresso a casa, continuei a pensar no assunto. Ensaiei uma resposta: as esquerdas são esclarecidas, elas sabem sempre o que fazem. E sabem que a educação dos petizes exige a utilização de palavras caras. Mesmo que eles ainda mal dominem os rudimentos do idioma. Que interessa se a pequenada só agora começa a saber articular três palavras seguidas? Há que entrar a matar, com termos complicados. Porventura, palavras que nem os progenitores conhecem – ou se as conhecem, por as terem lido ou escutado, a preguiça mental deixou os dicionários empoeirados, ainda virgens, na ignorância do significado dessas palavras. Naquela peça de quinze minutos, dei conta de cinco palavras fora do alcance de qualquer criança que estava na audiência. Se as crianças estão atentas às pantomimas, as palavras ecoam indistintas. Não fazem mossa, quaisquer que sejam as palavras tecidas como substrato das pantomimas. Acaso algumas crianças tomam atenção ao que é dito pelos artistas, será que conseguem captar toda a mensagem se há meia dúzia de palavras que soam incompreensíveis?

Sei que na ciência da pedagogia pululam por aí umas vanguardas que defendem coisas esquisitas. Há os que cultivam o auto-ensino (suspeito que são amigos dos sindicatos dos professores, num conluio para aligeirar a função da docência). Outros deixam passar em branco os erros ortográficos que as crianças de tenra idade começam a dar na escola primária. Depois vão por aí fora, do ensino secundário até às universidades, com um rol de erros ortográficos que faria corar os linguistas. Esses pedagogos iluminados serão os mesmos que abençoam a linguagem hermética que pontifica nas peças teatrais infantis, mesmo em alguns desenhos animados que tenho visto nos últimos tempos (noblesse oblige…).

Esboço uma tentativa de explicação: os pequenos serão estimulados, pelas palavras caras matraqueadas a toda a hora, a mergulhar no dicionário. Para rectificarem a dúvida que os assaltou quando as escutaram pela primeira vez. E depois os mais novos farão as vezes de professores dos seus pais, imersos na indolente ignorância, incapazes de satisfazerem a dúvida que assaltara os filhos quando deram de caras com a palavra incompreensível. Só teremos a agradecer aos pedagogos da vanguarda, numa aliança com encenadores de teatro infantil: numa saudável inversão da educação, os filhos professores dos pais!
Louve-se a bondade do rasgo intelectual da aliança. Permito-me o cepticismo: acometido pelas saudades de Vasco Granja e dos desenhos animados que, apesar de virem sempre do lado de lá da cortina de ferro (ainda hoje estou para saber se havia ali algum viés ideológico), eram deliciosos, com os ditongos sussurrados numa linguagem inventada que fazia as delícias pela melodia cómica. Não havia mensagem subliminar, nem moralidades impingidas por sumidades num acto de sacrifício pedagógico. Apenas entretenimento puro. Para a idade da audiência, exigir mais é uma inconsequência.

3 comentários:

Anónimo disse...

Finalmente, vejo uma posta que não é de pescada. Estou a ser mauzinho. Já aqui havia lido uma ou outra que não o era. Mas esta acerta bem no fulcro.

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Se está para saber, pois eu digo-lhe. O Vasco Granja era assumidamente comunista. Por isso não há surpresa nenhuma dos pacotes de desenhos animados polacos e checos que nos entravam pelo televisor a preto e branco.
Mas também é verdade que com a idade que viamos o "Cinema de Animação", nenhuma ideologia conseguia ser incutida. Graças a Deus

Anónimo disse...

putasss