18.8.06

Terrorismo intelectual


Ou já perdi a capacidade de me surpreender com o insólito, ou o mundo está tão louco que já não há nada que seja insólito. Ontem escutei, à hora do jantar, gravações de telefonemas feitos por pessoas que estavam presas no alto das torres gémeas em Nova Iorque, depois de atingidas pelos aviões comandados por radicais islâmicos. As autoridades dos Estados Unidos resolveram tornar públicos alguns desses telefonemas por razões pedagógicas: ensinar ao público o que não fazer em ocasiões semelhantes, para não ocupar demoradamente as linhas dos serviços de emergência em situações de catástrofe.

E ali estávamos, à hora da refeição, a escutar as palavras dilaceradas de uma mulher, as suas derradeiras palavras momentos antes do edifício se desmoronar. A ouvir o clamor desesperado da mulher, angustiada por demorar a ajuda para a resgatar daquele inferno. Como complemento da refeição, serviram-nos palavras doloridas: “vou morrer, não vou?”, perguntava à socorrista, do outro lado da linha. Que, com a frieza típica do treino que os socorristas recebem, tratava de antecipar a extrema-unção da mulher: “faça as suas orações”, decerto já com informações do destino inevitável que esperava as pessoas aprisionadas nas torres gémeas.

Interrogo-me da necessidade de divulgar estas gravações. Não vou no engodo das explicações oficiais. Dizem-nos que houve gente que se pendurou tempo demais no 911 (o 112 deles), levando ao entupimento das linhas, absorvendo recursos que podiam ser destinados a outros locais onde o socorro pudesse chegar em tempo útil. O diálogo servido em bandeja, ontem à noite, era o mostruário do que não se deve fazer em condições semelhantes. Quem doravante vier a estar em situação parecida, que não se agarre desesperadamente ao telefone com uma operadora do 911, como se fosse a confessora que escuta as derradeiras palavras de quem se apresta a deixar a vida.

Desconfiado do propósito da manobra, pergunto-me: não chegava passar a mensagem sem tornar públicas as gravações que ontem se ouviram? Havia necessidade de abrir feridas que ainda não cicatrizaram? Por um momento, tento-me colocar na pele de familiar de uma das vítimas dos execráveis atentados. Ainda que a voz escutada não fosse do ente querido perdido no desabamento das torres gémeas, o simples ecoar daquelas palavras desesperadas trariam a evocação da aflição, do sofrimento que o familiar teria sentido no fatídico 11 de Setembro de 2001. Chama-se a isto terrorismo intelectual. Brincar com os sentimentos das pessoas que mais de perto sofreram com os atentados.

Depois há quem queira traçar uma linha de fronteira entre a avançada civilização ocidental e a barbárie civilizacional dos árabes – numa dicotomia embebida no simplismo das generalizações com a falácia do “we, the good guys; them, the bad guys”. Estes moralistas insurgem-se contra imagens árabes que mostram ao mundo corpos despedaçados, de preferência crianças, depois de um ataque da aviação israelita. Não é que os ditos moralistas não tenham razão. O espectáculo dos corpos esventrados é um cortejo lamentável de inanidade, como se a orgia de sangue e pedaços de carne recolhidos para invadirem a nossa boa consciência não fosse torpe. Têm razão, porque tão indigno como um acto bélico que ceifa vidas inocentes é mostrar ao mundo esses corpos já sem vida, como se desfilassem num palco fétido. É indigno para as vítimas da barbárie. Não bastava terem perdido a vida num acto em si indigno, ainda sofrem a indignidade adicional de desfilarem, já cadáveres, perante os olhos da opinião pública mundial.
Um lamento: esses moralistas apressam-se a denunciar aquela sordidez, mas não usam a mesma bitola quando outro tipo de indignidades acontece do seu lado. Os mesmos moralistas que reprovam o cortejo repugnante de cadáveres das vítimas dos ataques da aviação de Israel nada dirão ao ouvir as palavras aflitas daquela mulher, refém das torres à beira da destruição, que sabia que em poucos minutos iria deixar o mundo dos vivos. Não sei se por distracção, ou apenas porque no tão civilizado ocidente gostamos de ser voyeurs da desgraça alheia, sem que esse voyeurismo seja manifestação de baixeza de espírito. Dois pesos, duas medidas.

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