29.9.06

Aquelas escadas, desconhecidas


Cinco minutos parado à frente daquelas escadas. Há mais de dez anos habituado a subir e descer os degraus, maquinalmente. E cinco minutos diante das escadas trouxeram uma estranha sensação de desconhecido. Bastou demorar os olhos nos degraus, no corrimão, na cor das escadas e, de repente, foi como se estivesse num lugar estranho, nunca visitado. As pessoas que subiam e desciam os degraus eram apenas vultos indiferenciados, não contavam na demanda pela desconhecida escadaria.


O paradoxo da rotina. Os lugares familiares tornam-se estranhos santuários que povoam o imaginário do nunca visitado, assim que os olhos se desprendem do colete-de-forças dos rituais rotineiros. Logo que os sentidos se emancipam dos gestos instintivos, mecânicos, robotizados, as portas abrem-se a um lado incógnito que, contudo, sempre esteve ali parado diante dos olhos. Os sentidos andaram vendados todos esses anos. Em todo esse tempo, os lugares habituais, as coisas mais insignificantes, até mesmo as pessoas, são sítios diferentes dos que foram construídos no imaginário das coisas rotineiras.


O tempo da redescoberta exige um mergulho na letargia. É estranho que seja em letargia que o espírito se liberta das amarras do quotidiano e parte em busca dos pormenores escondidos. Ao mesmo tempo, instala-se uma estranha sensação quando esses pequenos nadas são descobertos: é o súbito entranhar de um lugar estranho, e no entanto tão enraizado na vista educada para nem se deter nesses lugares. Uma erupção dos sentidos anuncia a estranheza dos lugares, das coisas, das pessoas. Um vulto invade os poros e diz que somos estranhos em lugares que julgamos conhecidos.


Os sentidos reagem como se estivessem a visitar um lugar desconhecido. Os olhos detêm-se demoradamente na vista geral do quadro defronte da vista. Depois a cabeça ondeia em redor, para que os olhos possam capturar os pormenores que andaram anos a fio ofuscados pela névoa da rotina. Tudo se passa como se o corpo fizesse uma viagem sem sair do sítio. Chega a um lugar estranho. Naquele momento em que fitava a escadaria de repente desconhecida, uma erupção de sentimentos contraditórios: a estranha sensação de um lugar familiar que afinal deixava de o ser; a recompensa de desvendar um sítio despercebido há tanto tempo.


Nem sequer conhecemos os lugares, as coisas, as pessoas que estão por dentro da nossa rotina. Por estarmos aprisionados na indolência da rotina, prisioneiros dos rituais que apascentam os dias que vão sendo dobrados no calendário, todos iguais. Uma acomodação que adormece o espírito. E se julgamos que é urgente conhecer outras paragens, distantes ou não, para cultivar o espírito ávido de descobrir o mundo, escapa-nos que nem os lugares conhecidos o são verdadeiramente. Seres desorientados, desenraizados, ou apenas o sinal da habituação a lugares que se visitam com a frequência que a rotina obriga?


Não há drama em saber que somos estranhos nos lugares que julgamos conhecer como as palmas das mãos. Nem que sejam os microscópicos detalhes que escapam à vista desatenta, há um ângulo diferente, um recanto escondido, ou até o plano geral, mais demorado, que desnudam o lugar desconhecido aos olhos. Tanto por revelar. Apenas um breve momento de espera, aparentemente desligado do mundo, basta para empenhar o julgamento dos lugares conhecidos.


Aquelas escadas percorridas milhares de vezes, afinal escadas tão desconhecidas. Intrigante caminho revelado em todo o seu desconhecimento, o plano do desprendimento dos lugares, das coisas, das pessoas que julgamos serem tão familiares, sem segredos por revelar. É então que se revelam bem além da película que os envolve, a superficial capa que nos é dada a conhecer. Só uma demorada dissecação dos lugares, das coisas, das pessoas, nos traz toda a sua essência. Mas então damos conta do tempo que não há para conhecermos o desconhecido que navega no fundo do que julgamos conhecido.

28.9.06

Os empresários não podem, ou não devem, estar na política?


Que mais não fosse, a segunda reunião do “Compromisso Portugal” teve o mérito de tirar da toca muitas virgens ofendidas que logo vieram sentenciar a impossibilidade daquilo que genericamente apelidam de “medidas neoliberais”. (“Neoliberais” merecia ser grafado ao quadrado: é daqueles chavões que entrou na linguagem politicamente correcta que designa a eito tudo o que deve ser diabolizado. Rivaliza com “fascismo”.)


Não venho aqui em defesa dos mentores da reunião do Convento do Beato. As beatíficas personagens do meio empresarial inspiraram um texto a explicar a missão pouco convincente com que apareceram perante o público (escrevi-o em 11 de Fevereiro de 2004). Lá irei, mas por outros motivos: apreciar a oportunidade da agenda política de alguns empresários do “Compromisso Portugal”. Para começar, alguma atenção à muita tinta escorrida, adicionada de carradas de fel, pelos críticos da iniciativa.


Nuns casos, palavras contra o teor das propostas: tidas como excessivamente “neoliberais”, merecem a reprovação dos eternos defensores da vaca sagrada chamada Estado. Pelo menos têm o mérito de mergulhar nas ideias veiculadas no Convento do Beato. Em alguns casos nota-se um juízo preso a preconceitos ideológicos. Por exemplo, Vital Moreira argumenta deste modo, em defesa da impossibilidade de privatizar certas infra-estruturas detidas pelo Estado: “porque se trata de “monopólios naturais”, por definição fora do mercado e da concorrência”. Como quem diz: porque sim. Mais perturbantes são as apreciações negativas que contestam a tentativa de intrusão dos empresários na política. O raciocínio é lapidar: são empresários, limitem-se a gerir as suas empresas. Que não tentem meter a pata na política, pois querem usufruir das benesses que o Estado lhes pode dar para agigantar os insidiosos lucros que os desumanizam.


Acho retumbante a argumentação. Primeiro, porque a iniciativa privada deve ficar excluída dos negócios da política, como se o Estado não estivesse todos os dias a interferir com os negócios dos privados. Ah, já me esquecia, para estas mentes iluminadas ao Estado tudo é permitido e às empresas apenas algumas coisas são consentidas. Em segundo lugar, é admirável a tolerância destes democratas. Como se julgam os juízes superiores da moralidade colectiva, disparando a verdade incontestável: sendo empresários, não podem entrar na política. Quanto mais não seja, para evitar a confusão de interesses (públicos e privados) que detectam. Pesam-lhes muito dois fantasmas: o episódio lamentável de Berlusconi, temendo a “berlusconização” da política nacional; e o mero preconceito ideológico que lhes tolda a vista.


Houve quem ousasse asseverar (lamento não ter anotado quem o fez) que os empresários não são gente recomendável para os negócios do Estado. Tentavam demonstrar que é fraca a qualidade de gestão das empresas de alguns dos participantes da iniciativa no Convento do Beato. Este argumento é espantoso. Acaso não estivessem com as ideias vendadas pelo preconceito ideológico, poderiam ler os números que todos os anos são publicados nos relatórios de contas de tais empresas. O cinismo que os críticos destilam volta-se contra eles próprios: se lhes incomoda tanto os lucros tão gordos que as grandes empresas registam, como vêm depois argumentar que estas empresas são mal geridas? Algo não bate certo.


O que me incomoda é defender-se a ideia que os empresários têm (e sublinho o imperativo verbal) que ficar fora da política. A categoria de empresário seria condição de exclusão da vida política. Já agora, porque não propor, por lei, que lhes seja retirado o direito de voto? Ah, que saudades dos tempos das nacionalizações em catadupa!


Noutro plano de análise surge esta interrogação: e devem os empresários entrar no mundo da política? Acho que não; por pudor, devem ficar à margem da política. Já basta a cumplicidade dúplice que estabelecem com os poderes públicos: hoje a denunciar os obstáculos que o Estado coloca às empresas, amanhã de mão estendida em demanda do subsídio público quando a crise bate à porta. Não é comportamento que contribua para a credibilidade dos empresários nacionais. Nem faz jus ao nome “iniciativa privada”.


Parece inequívoco que certos empresários que deram a cara pelo “Compromisso Portugal” têm uma agenda política própria. Alguém duvida que o presidente da Vodafone aspira a ser candidato a D. Sebastião do PSD? A ideia incomoda-me, pessoalmente. Mas o homem não pode ter as suas ambições políticas? É crime? Parece que entendo a exaltação dos críticos: temem que a “direita” (porque continuo a recusar ver no PSD qualquer semelhança com a “direita”) ganhe trunfos poderosos com a entrada de alguns destes empresários na vida política.


E já que não quero ser advogado de defesa do “Compromisso Portugal”, aqui vai uma ajuda aos que se desdobraram em críticas à iniciativa: denunciem-na pela colagem a economistas do PSD (e um independente que aceitou ser ministro de Guterres) que têm grande responsabilidade no estado pré-comatoso a que chegámos.

27.9.06

Gato preto




De casa até ao destino cruzei-me com três gatos pretos. Confundiam-se com a noite que teimava em retardar a alvorada. Eram os únicos inquilinos das ruas desertas. Vi o primeiro gato, depois o segundo, mais tarde o terceiro. Interroguei-me porque tanta gente tem a mania de azarar os gatos pretos, como se eles fossem demoníacas personagens que existem para espalhar desgraças pelas pessoas que se cruzam no seu caminho.



A pesquisa forneceu pistas interessantes: “a superstição teve origem na Idade Média, quando se acreditava que os felinos, devido a seus hábitos nocturnos, tinham parte com o demónio – e se o bichano era da cor negra, habitualmente associada às trevas, pior ainda para ele. No imaginário medieval, o gato preto tornou-se tão inseparável da mística figura da feiticeira quanto a vassoura voadora. No século XV, o papa Inocêncio VIII (1432-1492) chegou a incluir o pequeno animal na lista de perseguidos pela inquisição. Nessa tentativa de combater o paganismo, a inquisição inverteu uma tradição milenar, pois os gatos eram reverenciados como divindades, principalmente entre os antigos egípcios”.



Sou parcial na análise. Os gatos pretos exercem fascínio sobre mim. Há algo de misterioso nos gatos pretos, fugidios, parecendo que sabem que são perseguidos pelas pessoas atreitas à irracionalidade das superstições. O gato preto é o expoente mais alto da beleza felina, no contraste do pelo negro com os olhos verdes que se esbugalham no meio da sua face. Só a ignorância do povo, por crendices patéticas, ao supor que o gato era a encarnação de bruxas malévolas, explica o passado lamentável que juntou as peças para o imaginário – também ignorantemente popular – que associa o gato preto ao azar.



O povo é pródigo em inventar superstições que se afastam do domínio do razoável. Ele bate três vezes na madeira quando invoca algo que, a dar-se, traria o pior dos azares. Recusa-se a passar debaixo de escadas, porque o azar terá encontro marcado ao dobrar de uma esquina. Sacrifica galos negros na crendice de que o sangue derramado afugenta os espíritos maléficos que atemorizam as criancinhas. Não gosta do treze, o convencionado número do azar. Se os caprichos do calendário fazem coincidir o dia treze com uma sexta-feira, é o cúmulo do azar. Com bruxas montadas em vassouras supersónicas à mistura, as bruxas horrendas, sempre com uma inestética verruga no nariz, nascidas para distribuir maldade pelas pessoas todas bondosas espalhadas pelo planeta.



Estas crendices populares, destituídas de racionalidade, são o maior adversário do catolicismo. A hierarquia eclesiástica devia estar menos preocupada com a violência dos radicais islâmicos; o “inimigo” está entre os crentes que vão, religiosamente, à missa dominical, baptizam os petizes (não vá o demo desviá-los pelos maus caminhos), casam-se aos olhos de deus fazendo juras que sabem que não vão ser cumpridas, e depois entregam-se nos braços de bruxarias e superstições que negam os dogmas da igreja que velam.



O problema está nas incoerências que nos assaltam. Se parar dois segundos para interrogar se sou supersticioso, espontaneamente digo que não. E desdenho de certas crendices que se misturam com superstições, pelo patético que delas transpira. Todavia, há certos rituais que me levam a perguntar se não fazem parte do supersticioso. Quando me visto, dou primazia à peúga direita, à manga direita da camisa; a perna direita entra em primeiro lugar nas calças, primeiro calço o sapato direito. Não sou daqueles que “entra com o pé direito” como sinal que convoca a sorte dos deuses. Mas não será esta mania de dar primazia ao hemisfério direito do corpo, nas várias peças de vestuário e calçado que impedem a nudez, uma manifestação de superstição?



Um dia destes vou fazer a experiência. Inverter hábitos no desafio à superstição recalcada (que, contudo, não tenho a certeza que o seja), começar pelo lado esquerdo do corpo nas peças de vestuário e de calçado. Porque a superstição é irracional. É uma demissão do indivíduo, que se entrega nos braços dessa coisa inominável que se convencionou chamar “destino”. Como se o “destino” de cada pessoa não fosse um trajecto escolhido pelo próprio, sem a interferência de superstições absurdas que teimam em convencer-nos que as encruzilhadas que aparecem pela frente são o produto de decisões alheias.




A superstição é uma tirania que asfixia a liberdade individual. Com vítimas colaterais geradas pela estupidez humana. Os gatos pretos são vítimas maiores da irracionalidade humana dedicada a explicar azares com as manobras conspirativas das bruxas que se apoderaram do seu corpo. É o habitual: a demissão da responsabilidade individual. É preferível sacudir o ónus para acções alheias. É a enraizada mania de fazer a culpa morrer em celibato, ou atribui-la aos outros pelas acções que só dizem respeito ao indivíduo.

26.9.06

Sair deste filme

Apetece desligar da corrente, como se fosse possível ir beber oxigénio para um lugar escondido. Onde não houvesse imperativo de fumegar as desventuras que sombreiam a respiração. Apetece andar desatento do mundo, olhar para o lado contrário àquele de onde chegam as notícias. Não ler jornais, não ouvir estações de rádio com noticiários à hora certa, não acompanhar a refeição com os serviços noticiosos das televisões.

Anseio pela busca de um exílio. O exílio do mundo que teimo em conhecer. Um refúgio que me faça ser como o avestruz. Apenas uma fuga, sem curar de saber para que lugar é o degredo. Nem que seja um caminho errante. Saber apenas que é um lugar diferente do miradouro de onde me é dado a observar o mundo. Cansado de tropeçar em arbustos rasteiros, espinhosos, pestilentos, que laceram a pele, semeiam a dor que se demora a despedir do corpo. Lá fora, por onde a vista se habituou a repousar, detenho-me no opróbrio que adeja sobre figuras emproadas do alto da desfaçatez maior. Pedem a passadeira para desfilar a empanturrada desvergonha. Riem-se dos que lêem por outra cartilha. E cantam: a honestidade é pena para os fracos de espírito.

A enxurrada de notícias é uma doença que deixa feridas abertas, a carne viva exposta a todas as inclemências dos elementos, até dos parasitas que aí se saciam. É errada a ideia dos abutres necrófagos; eles pairam sobre corpos ainda quentes, distantes do encontro com a morte. E não são só os abutres corpulentos com garras afiadas que se deitam nas carcaças que ainda o não são. Alindam-se nos seus fatos negros mas não conseguem disfarçar o cheiro intenso à naftalina dos carrascos, estas sentinelas da decência alheia. Pede-se-lhes a árdua tarefa de sentenciarem a moral dos desalinhados, com o dedo espetado de quem espera fazer sangue para aplauso da turba.

As notícias são uma indústria fétida, um sarcófago de onde se libertam as excrescências que impossibilitam a tranquilidade. Há dias em que desespero por não conseguir iludir as algemas que prendem ao mundo de que me tornei viciosamente dependente. É como se fosse uma droga, dura. Sei o mal que me faz. E, contudo, não há meio de quebrar o elo com as fontes das notícias que são o sabor amargo e ácido do mundo na sua faceta real. O choque é maior porque percebo como vivo enclausurado nas teias da ingenuidade. E se as coisas se mostram em toda a sua diferença, comparadas com a ingénua pureza com que as idealizo, há a urgência de uma carapaça. Com ela nasce a insensibilidade pelo grotesco, o embrutecimento que reage à brutalidade ímpar.

Quero ter a coragem de ser acometido pela adocicada hipocrisia. A hipocrisia de fugir para um lugar diferente do miradouro de onde contemplo a vista turva que queima as pálpebras. A hipocrisia de fazer de conta que tudo é simulado, ou uma gigantesca encenação que faz parte de um demorado pesadelo que impede a revelação da alvorada. Queria ter a coragem de ser hipócrita para ignorar que há notícias, que há mundo – pelo menos o mundo que os olhos discernem como real.

Queria que essa covardia me trouxesse o perfume da tanta poesia agendada para os anos vindouros, que vão sendo poeira do passado sem que as páginas dos poetas sejam sequer dedilhadas. Queria descobrir a poesia, e a música, e os filmes, os quadros que não conheço. Procurar outro zénite onde a alma por fim houvesse de se encontrar com a revigorante liberdade. Sem as amarras do mundo que me circunda, ou as verdades imperativas do credo social. Um sonho que seja, tão demorado como o pesadelo plúmbeo que asfixia a temperança interior.
É mais forte que os desejos que formulados num momento de lucidez. Suspeito que as sinuosas curvas do caminho por diante escondem as pedras traiçoeiras de uma estrada apoderada pelo nevoeiro. Tudo deixa de ser nítido, quando a busca de explicações para o inexplicável turva o discernimento. É então que um súbito raio promissor irrompe entre o nevoeiro que deixou de ser impenetrável. Vem dizer, o raio translúcido, que as novas que me chegam são só a aparência que os pesadelos teimam em desnudar. O mundo que interessa está fora da estrada sinuosa, escorregadia, tornada baça pela cortina de nevoeiro. À distância de um pequeno passo que pode levar tão longe.

25.9.06

A censura democrática


Há censuras boas, legítimas, balsâmicas? Nos tempos que correm, sente-se a formatação das mentes para o aviltante registo da História, quando resgata a repressão das ditaduras. E, no entanto, é constante o atropelo de “democratas” de diversa filiação, que não hesitam em exercer uma discreta censura em relação ao que incomoda o seu magistério. Por discreta que seja, de censura se trata. Não fica a democracia maculada com a sombra da censura?


Os exemplos sucedem-se. Lembro-me da notícia que dá conta que Rui Rio decidiu condicionar os subsídios à produção cinematográfica local: os criadores que concorrem aos dinheiros municipais comprometem-se a não passar uma imagem desagradável do Porto. Chama-se a isto condicionamento da liberdade de criação. Já estou a adivinhar que alguns acharão que Rio está no seu direito: perguntarão se não faz sentido que um filme ou um documentário subsidiado pela câmara municipal deva desfazer-se em elogios à cidade. Os atónitos com a minha denúncia culminarão com o aforismo popular que envolve um prato de sopa e cuspidelas. E darão conta da hipocrisia do artista que, recebendo dinheiros camarários, produz obra pouco simpática para o burgo que o subsidiou.


São objecções irrelevantes perante o desrespeito de um princípio maior que, talvez esteja enganado, é axial para a democracia. Podem vir com aquelas indignações, situando-se ao lado de Rui Rio, que o atropelo da pré-censura não se apaga. E a menos que tenham dado nova roupagem ao que se entende por democracia (descaindo para um relativismo que não se cansam, noutras arenas, de criticar), continuo ser perceber como tolerar qualquer manifestação de censura, mesmo das mais subtis, num regime que se afirma democrático. Porventura, é só a ingenuidade que me consome.


Podíamos indagar das razões de Rio. Podíamos perceber que Rio convive mal com a crítica que lhe é endereçada. Não está sozinho. Tem rivais que lhe levam a palma, neste pérfido campeonato nacional das figuras públicas que pregam a tolerância para os outros e se esquecem de a praticar em si mesmos; o primeiro-ministro é figura maior no certame. Podíamos descobrir que o presidente da câmara do Porto teme que os documentários ou filmes subsidiados sejam arma de arremesso contra a sua obra. Rio sabe que os artistas da área têm o hábito de refulgir à esquerda, são sensíveis à politização da obra que criam. Há que o impedir, por via contratual. Nem que seja ao arrepio de um dos baluartes da democracia, a mesma democracia que sancionou a eleição do autarca.


Não poderei eu, suposto criador da área, passar através da lente uma imagem menos simpática da cidade que me viu nascer e onde, apesar de tudo, gosto de viver? Temos que ruminar no silêncio do unanimismo forçado, como se o sítio onde vivemos fosse o prometido paraíso celestial? Haverá algum problema de um filme ou um documentário sobre o Porto mostrar o lado menos bom da cidade? Os podres devem ficar escondidos detrás dos subsídios municipais que dão alvará à criação artística? Pode ser problema meu, mas sempre que alguém tenta divulgar paraísos, imunes a vícios ou defeitos, é quando mais depressa apetece vasculhar por todo o lado para encontrar pequenas (que sejam) sementes da antítese da perfeição.


Alguém que se serviu das mordomias da democracia (pois foi eleito pelo voto popular) vai praticando o seu contrário. No tempo do “tenebroso fascismo” o lápis azul riscava do mapa as coisas feitas que não interessava divulgar, por temor que abalassem os alicerces da ditadura estabelecida. Agora o cutelo funciona antes do tempo (e não depois do acto criador, como outrora). É uma espada ameaçadora que pesa sobre a cabeça dos criadores que anseiam pelo mecenato camarário, cientes que ou o guião é generoso para a cidade ou a resposta é um não liminar.


Infalíveis, os simples mortais possuídos por uma aura mística que os eleva acima dos demais. A prova da inerrância é a censura sobre os que ousam dissidir. São fautores de uma empobrecida democracia, que tantas vezes se limita à roupagem formal de um regime que busca no voto dos eleitores a autorização para os atropelos necessários até a um novo sufrágio. Desconfio desta democracia e dos seus actores menores que não honram o regime que os escolheu. Não me inspira tranquilidade.

22.9.06

Opúsculo (semi) vegetariano


Um rebate de consciência, um golpe virulento que a despertou para o desconforto pessoal de comer carne. Já andava a prometer a mim mesmo, há algum tempo: parar de ingerir carne. Passaria a ser semi-vegetariano. Continuaria a comer peixe, ainda arriscando uma incoerência fatal para quem se socorre dos imperativos da consciência para parar de ingerir carne. (Há sempre um argumento a jeito: digo que os peixes são anónimas criaturas, escondidas nas águas profundas, sem possibilidade de nos cruzarmos com eles quando andamos num bucólico passeio pela paisagem rural.)


Não consegui prolongar a agonia da alma. Será que magoo outras partes do meu ser? Haverá violência na decisão de deixar de comer carne? São os instintos amordaçados por levar quase um mês sem deglutir uma peça de carne? É pouco o tempo para respostas definitivas. Por ora, não sinto que esteja a forçar a mim mesmo uma decisão violentadora dos instintos. Ter parado de comer carne não me fez esbugalhar os olhos e ficar de água na boca quando, num restaurante, vejo aterrar no prato da pessoa amesendada ao lado um naco alto e tenro de carne suculenta. É um teste que me imponho propositadamente. E concluo que é apenas um teste, não uma provação.


Da memória resgato uma música dos Smiths: “Meat is murder”. Sem um acesso de exaltação ambientalista que anda de mão dada com o slogan, foi uma espécie de objecção de consciência similar que me levou a tomar a decisão de mudar de hábitos alimentares, erguendo um sinal proibido às carnes extraídas de cadáveres de animais. Há uma diferença importante: os que desfraldam cartazes em manifestações folclóricas, denunciando “meat is murder”, empenham-se na militância por uma causa colectiva. A minha objecção de consciência à ingestão de carne é isso mesmo, uma objecção de consciência, com o travo individualista que ela carrega. Não quero saber de movimentos que pregam uma espécie de moral ambientalista que aponta o caminho necessário de uma alimentação vegetariana. Só me interessam os desafios da minha consciência, sem me alistar em causas adjacentes.


Andei bastante tempo numa luta interior de mentalização para a decisão que acabaria de tomar. Ia adiando, por comodismo, por esquecimento, por conveniências alheias de quem tinha a ingrata tarefa de esculpir os cardápios diários. Tinha momentos em que a objecção de consciência começava a aflorar com intensidade. Lembrava-me de documentários ou notícias que mostravam o terror de um matadouro. Passava nos campos e sentia-me hipócrita ao ver a vaquinha ternurenta a pastar, no seu lento ruminar, sabendo que dias mais tarde podia repousar no meu prato. O sentimento de repulsa ia tomando conta da consciência, ia segredando o imperativo de cessar com o incómodo sentimento de hipocrisia com que terminava um lauto repasto composto por uma viçosa e mal passada peça de carne.


A última estadia nas ilhas britânicas deu-me o motivo para liquidar as hesitações. Um dia, antes de me deitar, passava os olhos pela televisão. Num canal deparei com um documentário sobre um trabalhador de um matadouro. O seu dia-a-dia. Quando estacionou o carro à entrada do matadouro, tive o impulso de desligar a televisão. Senti uma força mais poderosa que me paralisou a mão onde estava o comando. Fui espectador do documentário até ao fim. Estarrecido com os pormenores macabros dos últimos momentos de vida de um bovino, que acabou esquartejado pelo anónimo personagem que envergava um ensanguentado oleado enquanto se entretinha, com uma frieza impressionante, a desmembrar a rês.


Era o passo que me faltava para deixar falar mais alto a objecção de consciência. Na viagem de regresso, na altitude supersónica do avião, não conseguia deixar de parar de pensar na barbárie do matadouro antes de sermos agraciados com repastos que sagram a carne de animais diversos. Ainda fui tomado por um desejo de visitar um matadouro. Até conheço um veterinário que trabalha num. Não seria difícil arranjar, através dele, uma visita para ser testemunha presencial daquilo que me torturou a vista através das imagens da televisão. Não foi necessário. Tinha tomado a decisão. E, no fundo, nem seria difícil fazer vingá-la: em boa verdade, só ingeria dois tipos de carne – porco e vaca.


Os dias que estão para vir dirão se a ausência de carne confirma a teoria que assim a dieta alimentar é mais saudável. Para já, contento-me com o apaziguamento da consciência.

21.9.06

Os políticos e as mentiras necessárias


O caos desceu às ruas de Budapeste. Por mistérios insondáveis, veio a público a gravação de uma reunião quase clandestina da irmandade socialista húngara, onde o primeiro-ministro disse, com todas as letras, que tinha mentido à população. “Mentimos descaradamente”, terá dito. E confessou que se não o tivesse feito, ele e a trupe nunca teriam ganho as eleições. Os manifestantes prometem prolongar os protestos, até que o descarado primeiro-ministro tenha vergonha na cara e peça a demissão e desculpa ao povo enganado. Enquanto esperam pelo desfecho desejado, os guerreiros de rua acampam pela luz do dia. Recarregam as forças para voltar a espalhar a confusão quando a noite tomar o seu lugar.


Quando li os pormenores do episódio, fiquei dividido na reacção. Havia metade de mim que reagia desta forma: fosse a Hungria uma democracia madura, e no instante imediato à revelação das palavras do primeiro-ministro não lhe restava outra solução senão a demissão. Esta seria a atitude óbvia em democracias amadurecidas, onde o escrutínio popular dos governantes é mais apertado. Da outra metade de mim – a parte mais racional, despida de emotividade – emergia outra reacção. Indagava acerca do sentido da verdade nas afirmações dos políticos (em democracias adolescentes, ou em democracias de idade vetusta). Quantas vezes o que nos impingem como verdade insofismável é uma mentira desbragada? Não são os políticos pródigos em mentiras necessárias que, por o serem, acabam por ver atenuada a mácula da mentira?


O episódio húngaro é diferente apenas porque a honestidade desarmante do primeiro-ministro foi revelada, quando se supunha que aquelas palavras não sairiam da quase clandestinidade da reunião dos militantes do partido. Nestes casos, não interessa saber quem traiu a causa, quem divulgou a gravação, nem tão pouco por que motivo o fez. O que seria deste episódio se, como acontece habitualmente, as palavras que contam a verdade só sabida por um núcleo restrito nunca tivessem vindo a público? A verdade é muito relativa. E quando fica escondida no recato de uma sala de reuniões tomada pelas camadas de fumo de tabaco que estimulam a imaginação decisória, as massas só têm direito à verdade conveniente. Ainda que a verdade conveniente seja uma mentira redonda.


Ser político é tarefa ingrata. O primeiro-ministro húngaro confessou que se não tivessem engendrado a mentira nunca teriam saboreado a vitória eleitoral. Disse-o para os apaniguados reunidos à laia de sociedade secreta. Com o escândalo na rua, deu a cara às câmaras da televisão para contar uma versão diferente: que a situação da Hungria era tão difícil que só uma terapia de choque, tão impopular, acalentava esperanças de trazer o país para o bom caminho. Só que o público não podia saber que a terapia de choque seria prescrita. Caso contrário não teria escolhido a salvífica personagem para liderar a nau. Conclusão: na política há mentiras necessárias que ganham estatuto de verdade.


Agora que reflicto no episódio, sou acometido por um estranho sentimento de solidariedade em relação ao primeiro-ministro húngaro (o que é inusitado, sendo ele um socialista e sabendo-se a minha antipatia congénita pela espécie). Há que explicar esta anómala solidariedade. Ele foi apanhado numa armadilha que raras vezes atraiçoa a classe política. Teve azar. Quantas vezes os políticos só confessam em privado as mentiras necessárias que nunca chegam ao conhecimento do público? Entro no domínio da especulação, sem poder provar a desfaçatez da classe política, pródiga em contar em público uma história pincelada a cor-de-rosa, enquanto em privado desnudam as cores enegrecidas que exibem a realidade. O primeiro-ministro húngaro caiu no alçapão que lhe foi aberto por alguém que seria seu indefectível. O mundo é um lodaçal de traições. E foi uma traição que armadilhou o caminho ao primeiro-ministro da Hungria. O que nunca poderia ter dito em público acabou por desaguar nas mãos do público. Que agora quer sangue.


De repente olho para trás, para o comportamento habitual da classe política que faz o jogo da democracia. Há uma enxurrada de promessas feitas em tempo de campanha eleitoral. Mais tarde, a governação é a negação dessas promessas. Os eleitores, alegremente enganados, como se fossem a mulher traída que assobia para o alto fazendo de conta que nada acontece. E não vejo a diferença entre os políticos que olvidam as suas promessas eleitorais e este episódio do primeiro-ministro húngaro. A certa altura, já nem sei quem revela mais imaturidade democrática: se os ambiciosos políticos e a sua sede de poder pessoal, apanhados na rede da mentira; se o povo que se exalta com o que não deve e deixa passar em branco o essencial.

20.9.06

Do “fascismo social”





Há algo de encantador na capacidade imaginativa do ser humano. Como ele reinventa acontecimentos, revisita expressões que passam a estar possuídas de um novo significado. A modernidade atravessa essa reinvenção dos termos. Por hoje, há palavras que só não são banidas do léxico porque convêm para lembrar a perfídia que se apodera de certas pessoas. Como se fosse sempre urgente enfatizar a antítese do caminho correcto, uma virtude social e de ideias que não merece contestação. Aos dissidentes, chega-se-lhes com a acusação de “fascista”.

Há tempos deparei com a revisitação da palavra, numa insólita associação ao “social”. Alguém (cuja identidade não me recordo) fazia o obituário do Independente. Sem saudades do legado deixado pelo semanário que espalhou tanta rebeldia nos anos iniciais, essa pessoa acusava o Independente de “fascismo social”. Dava exemplos: a sanha persecutória a Macário Correia, com o desdém que Miguel Esteves Cardoso soube exprimir; as resistências exibidas aos arrivistas vindos do nada e que tentavam fazer carreira política, subindo a pulso, vindos da província; até Cavaco não escapou às manifestações de “fascismo social” – ele mais os seguidores que, na altura, foram alvo da chacota estética do semanário por abusarem das peúgas brancas como complemento do fato e da gravata.

Fico perplexo com a acusação fácil que tenta denegrir, definitivamente e sem contestação, aqueles de que não gostamos. Podemos não concordar com a crítica fácil do Independente, com a perseguição que o jornal fez a certas personagens que pairavam na paisagem política doméstica. Mas daí a destapar a acusação de “fascismo social”, só o despautério de quem não tem argumentos para combater os alvos da crítica. Pensam os críticos que o rótulo “fascismo social” é tão poderoso que encerra qualquer hipótese de discussão subsequente. E assim fica provada a enorme tolerância democrática destes arautos da moralidade que, à falta de melhor, lançam a âncora do “fascismo social”. Os alvos da crítica não têm o direito de zombar com quem lhes apeteça. A moralidade dos sacerdotes impede-o – pudessem eles ser entronizados nesse papel, e decerto a mordaça soltar-se-ia com assiduidade.

Há quem se tenha revisto na crítica a Macário Correia, a Cavaco, aos deputados e ministros PSD que abusavam da peúga branca, aos arrivistas chegados da província que se punham em bicos de pés quando a ribalta batia à porta. Há quem discorde do método, quem tenha lamentado a exuberância elitista de uma casta lisbonense que não admite a invasão de pacóvios que tentam a sua sorte no turbilhão da grande urbe. São os mesmos que, atirando o “fascismo social” como acusação, censuram a atitude de quem acha que Lisboa é uma coutada reservada aos que já lá estão, vedando o acesso aos saloios que desembarcam na capital à procura da exposição que a província não permite.

Isto é o “fascismo social”? Os lisboetas de gema, que usam as páginas de um jornal para ensaiar a sobranceria pelos forasteiros que ousam competir pelas sinecuras que julgavam reservadas aos seus pares, podem ser acusados de “fascismo social”? Há aqui uma confusão fácil de conceitos. Que o Independente tenha praticado amiúde a “exclusão social”, através do elitismo que não escondia das suas páginas, parece-me pacífico. Ora as palavras existem com um certo sentido. Por mais que a certas pessoas seja conveniente distorcer palavras e acontecimentos, só aos mais distraídos o rótulo de “fascismo social” tem as propriedades do cimento. Por este andar, todas as formas de exclusão se encaixam num fascismo qualquer. Que tenham cuidado os seus arautos: saudosistas de um império extinto (o soviético), alguém lhes virá lembrar que nesse império havia “fascismos” recorrentes…

Por estes dias, a palavra “fascismo” é uma espécie de albergue espanhol onde cabem todas as situações que, subjectivamente, deploramos. É o patinho feio das palavras, um termo sarnento que retrata o hediondo que se lastima. Já agora, proponho que se autorize a mutação etimológica da palavra. Modificava-se o dicionário. “Fascismo” deixaria de ser o “sistema instituído por Mussolini, em Itália, caracterizado pela defesa de um nacionalismo exacerbado e pelo exercício de um poder centralizado e ditatorial baseado na repressão de qualquer forma de oposição.” E passaria a ter o seguinte significado: “qualquer atitude ou comportamento que se encontra nos antípodas daquilo que uma pessoa defende”. “Fascismo” seria tudo aquilo que o Homem quisesse, na censura do outro.

E, então, todos seremos fascistas (aos olhos do outro).

19.9.06

Os jeovás e o mafarrico fornicador


Hoje a caixa do correio albergava um pasquim que se dava a conhecer como “Folha de Portugal”. Nome enganador. Ao lado do título, uma cruz pespegada evocava os feitos da gesta de navegantes que andou em descoberta das sete partidas do mundo. Desprevenido, diria que era uma folha a destilar propaganda a um grupelho de extrema-direita.


Os olhos de curiosidade aguçada empurraram as mãos para dedilhar as páginas do periódico. Breves segundos para desmascarar o logro. À espera de ler páginas debruadas com a jactante escrita dos saudosistas da portugalidade de antanho agora reduzida à sua mais ínfima expressão, grotescos dislates contra os emigrantes e loas aos ditadores que permanecem fantasmas ameaçadores na memória das gerações mais velhas. Desencantados, os olhos deram de caras com um pasquim de uma daquelas igrejas marginais (no bom sentido da palavra – de franjas, minoritária) que se dão a conhecer pela bizarria do culto e pela entrega (no sentido material do termo) dos crentes. Demorei mais tempo a passar da página um para a página dois que a percorrer as restantes catorze páginas, tal o interesse do ardil que desfolhava à minha frente.


Fixei o olhar na página doze, na coluna que preenchia o lateral direito. Rezava o seguinte: “a redescoberta começa pela obediência a Deus”. Cartão de convite para nem ler o conteúdo da “notícia”. Mas não pude resistir a deter-me demoradamente na mensagem. Sobretudo na parte que proclama a “obediência a Deus”. A frase soa a impossível para o agnóstico. Não lhe deixa imparcialidade para abordar com distância a entrega obediente dos súbditos à divina entidade que adoram. Mas como os crentes de qualquer religião estão desapossados da mesma imparcialidade – quer para ajuizarem em causa própria, quer para apreciarem as religiões dos outros – a imparcialidade é ofício impossível no domínio. Problema que não se coloca para quem está fora do terreno sagrado da metafísica.


Hei-de continuar a não perceber as religiões que falam de entrega e obediência ao seu deus. Por um momento, imagino-me destinatário daquela mensagem imperativa: que se impõe a obediência a deus. Sem tergiversações. Deus comanda e o Homem limita-se a obedecer. Sem nunca questionar os comandos divinos, a sua justeza. Quando se apela à obediência molda-se um rebanho de amansadas ovelhas, certeiras rezes que ouvem as ordens e delas não duvidam por um segundo que seja. O deus é bondoso, magnânimo, omnisciente, omnipresente, e tantos outros predicados fora do alcance da humanidade. Chega para não ser contestado. Apenas obedecido. No rescaldo de tão passiva atitude, um deus, uma religião – as religiões – que condenam a humanidade a ser refém das deificadas entidades por ela inventadas. É o Homem com necessidade da transcendência para explicar o que os sentidos e a razão se demitem de explicar.


À memória vem um episódio com mais de quinze anos. Ainda estudante, entretido com a tarefa espinhosa de estudar para os exames. Tocou a campainha. O pretexto para uma pausa no estudo. Do outro lado estava um casal com o ar do que eram: beatos impenitentes, confissão jeová. A ocasião para os escutar por uns momentos. Não estava interessado em aderir à causa. Queria ser benzido com a retórica dos pregadores jeovás, para descomprimir de algumas horas seguidas de estudo. Um momento lúdico, portanto.


O sujeito atarracado soltou as palavras, que saíam apressadas, algumas vezes encavalitadas. Começou a ruborizar, o que se devia em parte à quase perda de fôlego e, noutra parte, à excitação da prédica. Falava vezes sem conta no “mafarrico fornicador”. A certa altura já nem me detinha no resto da mensagem. Só estava à espera da próxima vez que o “mafarrico fornicador” entrava em cena. A senhora de meia-idade e pernas arqueadas como um homem do futebol só acenava em sinal de concordância veemente. Não lhe ouvi a voz. O pregador de Jeová era o seu herói.


A meio da profusa pregação, comecei a perder a paciência. Interrompi o artista: estava muito ocupado, tinha que retomar as minhas tarefas – disse-lhe. Indignado, questionou-me que tarefas eram. Apanhou-me sem reacção por uns instantes, tamanha a audácia. Ao “com licença” seguiu-se a porta fechada na cara do indivíduo que não parava de gesticular enquanto despachava as palavras mecânicas que lhe tinham instruído na formação especializada e tentava entregar em mão um folheto com o roteiro para a “verdade”. Como sempre desconfiei de castradoras personagens que se nobilitam pela pregação da moral aos outros (que é sempre mais fácil que praticar em si mesmo essa moral…), percebi que a parceira de difusão religiosa, pelo ar embevecido com que contemplava o sermão, teria sido a vítima do mafarrico fornicador que vivia enclausurado dentro da acanhada personagem a quem tinha acabado de cortar a palavra.

18.9.06

Marcha pelo desemprego

Do Público (link não gratuito): "Bloco de Esquerda defende fins-de-semana de três dias. A deputada do Bloco de Esquerda (BE) Helena Pinto defendeu ontem uma nova organização da semana de trabalho, com a redução do horário laboral para 36 horas, distribuídas por quatro dias, deixando mais um dia livre."

Cansaço das religiões


Cansado. De ver como as pessoas reagem quando a sua religião é beliscada. Normalmente quando a ofensa parte de crentes de uma religião rival. E de observar como há devotos de uma religião que ajuízam os deméritos de religiões que não são a sua. É o poderoso fermento da discórdia. Coloca a humanidade na senda da auto-negação. Há nesta voragem auto-destrutiva uma bestialidade singular. Porventura as guerras que se fazem em nome da religião serão a negação das divindades representadas. A crer no dogma de que os deuses são bons.


O mundo ferve em pouca água quando há ofensas cruzadas entre diferentes crenças. O ponto de ebulição é surpreendentemente baixo: basta que umas palavras inábeis sejam amplificadas no seu sentido por aqueles que se julgam alvos da acusação. Convém contextualizar: o Papa proferiu lição académica numa universidade alemã. Recuou aos tempos de professor de teologia nessa universidade e dissertou sobre a violência do islão. Tocou numa ferida que nunca há-de cicatrizar. Do outro lado – ou em todo o lado da diáspora islâmica – vieram reacções incendiadas. Exigiram-se desculpas ao Papa pela ofensa proferida. O Papa limitou-se a explicar o contexto e o significado das suas palavras, sem que se ouvisse, por uma só vez, o perdão tão típico do catecismo católico.


Agora o mundo anda entretido com as promessas de sangue derramado para vingar o islão ofendido. Do outro lado, a defesa da liberdade de expressão que não pode negar ao Papa a emissão da sua opinião. Cava-se o fosso entre duas civilizações. Haveremos de perceber que a humanidade assim sitiada nos braços tentaculares das religiões é uma humanidade agrilhoada, alijada da sua autonomia, carente de liberdade. Há-de ser este o abismo que nos empurra para mais conflitos, mais teorias defendidas em voz alta, com as emoções desfraldadas no alto do mastro; a antítese da razão. Algures no tempo, mais cordeiros sacrificiais, apenas pessoas desprezadas em nome das religiões que se combatem.


Para um agnóstico falta a imparcialidade para ajuizar o melindre das ofensas dos islâmicos ou o direito dos católicos fazerem a sua interpretação da história das religiões. O mesmo agnóstico, todavia, sedimenta o agnosticismo ao deparar com as reacções exacerbadas que semeiam fundamentalismos de parte a parte. Se é verdade que o fundamentalismo dos islâmicos aparece com maior nitidez, que não se ignore o fundamentalismo suavizado dos católicos.


Não se devia exigir mais cautela ao sumo-sacerdote do catolicismo? Não é verdade que a diplomacia exige contenção verbal quando se quer evitar a erupção de convulsões desnecessárias? O Papa foi inábil na utilização da palavra. Não que a sua liberdade de expressão deva ser cerceada, para não haver capitulação perante o garrote que os islâmicos querem impor no ocidente. Por vezes convém perceber de táctica: neste caso, seria difícil antecipar que o mundo islâmico – fundamentalista ou não – viria gritar o seu protesto em uníssono? Às vezes, com os nossos actos e palavras empossamos o adversário de trunfos difíceis de rebater. E a menos que haja quem deste lado anseie por um conflito ainda mais aberto com o islamismo, não consigo perceber nem a trapalhada do Papa nem as virgens pudicas que vieram em sua defesa, com a oportunista invocação da liberdade de expressão como argumento incontestável.


E sim, é verdade que há reacções exageradas entre os islâmicos. Ou porque lhes convém, para passarem para o lado de cá a ideia de que são alvo de vitupério que os desrespeita. Ou porque é destas oferendas que os seus sacerdotes necessitam para arregimentarem em seu redor uma turba ainda maior de indefectíveis seguidores. Sem o saberem, os clérigos católicos que amparam as imprudentes declarações do Papa contribuem para a formação de mais mártires em nome de Alá. Mais terror espalhado, com a chancela indirecta de quem tutela o catolicismo.


Não fosse agnóstico por ausência de fé e a irracionalidade crescente das religiões em permanente confronto era motivo bastante para nutrir o agnosticismo. É desta estrada paralela que vejo o Homem suicidário com a ânsia de ver respeitadas as suas crenças, pronto a entregar a vida em nome dos seus deuses. À deriva, num ensandecimento colectivo que empurra para um turbilhão irreprimível. Ou os deuses não se fazem compreender por quem os representa na terra; ou os homens não estão à altura dos deuses, incapazes de corporizarem a mensagem de paz e de amor que os deuses, diz-se, ensinam; ou os deuses, responsáveis últimos pela autofágica destruição da humanidade, serão os seus maiores inimigos.

15.9.06

E os toureiros descobriram as "dinastias"


Estudei na escola que as dinastias eram coisa de reis, do tempo em que a História era feita de grandes feitos, quando tínhamos a aura da grandiosidade agora enclausurada num curto rectângulo escondido no fim da Europa. Falava-se da dinastia dos Braganças, dos Aviz – como hoje ainda se fazem alusões, Europa fora onde subsistem monarquias, às dinastias dos Habsburgo, dos Grimaldi, dos Bourbon.


Há tempos descobri, outra vez com a ajuda da prestimosa RTP, que as dinastias vão além da realeza. Na tourada há a “dinastia Ribeiro Teles” (ou Telles, com dois “l”, pois as famílias brasonadas distinguem-se da ralé por os seus nomes acrescentarem sempre uma letra à forma corriqueira como são escritos na língua nativa). A televisão que pagamos com os nossos impostos decidiu fazer festa de homenagem à linhagem (preferia chamar-lhe assim) dos toureiros Ribeiro Teles (ou Telles). O anúncio de promoção à grandiosa corrida de touros com a participação do avô, do filho, do neto, do primo Ribeiro Teles (ou Telles) enfatizava uma e outra vez a palavra: dinastia.


Estamos sempre a aprender. É das coisas mais belas que a viagem pela vida nos lega. Estava eu convencido que as dinastias eram prerrogativa da realeza, e eis que afinal há outras dinastias. A etimologia dá uma ajuda preciosa. O dicionário é a muleta necessária. Digito a palavra dinastia e surge a explicação. A palavra oferece dois possíveis significados, dependendo do contexto em que surge. Primeiro significado: “Política, História: série de soberanos pertencentes ao mesmo tronco genealógico”. Segundo significado, o da palavra despida daquele contexto particular: “série de pessoas célebres da mesma família”. O dicionário envia os sinais claros que o anúncio da RTP não era tolo, como ao início pensei. Afinal a dinastia Ribeiro Teles (ou Telles) é mesmo uma dinastia. Presumindo que se trata de “pessoas célebres da mesma família”.


Apesar da ajuda do dicionário, continuo a ver na palavra o seu contexto histórico e político. Daí à imagem apatetada, escondida detrás da pretensa grandiosidade da família Ribeiro Teles (ou Telles), como se todos gostássemos de ser um bocadinho familiares dos Ribeiro Teles (ou Telles). Confesso o meu desconhecimento pela “arte” do toureio. Nunca na vida ouvi falar dos toureiros daquela família. Ribeiro Teles (ou Telles) remete-me para o arquitecto e político que liderou o PPM, e para um advogado que foi dirigente do Sporting. A minha estranheza pelo alarido, com a bênção dos nossos impostos, em redor de uma festança que tem o travo de celebração privada, para um punhado de aficionados das lides tauromáquicas e para os mais chegados ao clã Ribeiro Teles (ou Telles). A RTP deu-se ao trabalho (e não olhou a gastos) para dar dimensão nacional ao evento.


Ficámos a saber que há uma linhagem de Ribeiro Teles (ou Telles) toureiros: o avô, patriarca, ainda monta a cavalo e tem energia para espetar umas bandarilhas, decerto num touro a arrastar forças exangues. Depois vem o filho, já com idade suficiente para apresentar o neto do patriarca. A descendência toda a cavalo na arte deveras corajosa de, lá do alto, munidos de farpas decoradas com papelinhos de cores garridas, maltratarem um animal numa luta entre desiguais.


Se a RTP é serviço público, é de duvidoso gosto patrocinar eventos que dizem muito a um punhado de pessoas e nada à esmagadora maioria dos espectadores e contribuintes que a sustentam. Gostava de ter acesso a estudos de audiências dessa tourada. E de outras touradas. Que fossem disponibilizados estudos que revelam a dimensão do público-alvo da tauromaquia. Para perceber como pode uma televisão pública, mantida também com os nossos impostos, dar privilégios a uma manifestação que apraz minorias. Não é do canal 2 que se fala, esse sim vocacionado para ir ao encontro das muitas minorias que há. A festarola da “dinastia” Ribeiro Teles (ou Telles) teve honras de transmissão no canal 1.


Não é difícil descobrir o contexto. Um poderoso da televisão pública deve nutrir simpatia pessoal pela “dinastia” Ribeiro Teles (ou Telles). Daí ao tapete estendido para uma festa que pôs nos píncaros uma família de toureiros que porventura é muito conhecida em Cascais, um singelo passo. Uma confusão entre a esfera pessoal e o domínio público. Como alguém com poder de decisão na televisão pública contagiou as suas preferências individuais para a programação, sem reflexo nos gostos da maioria dos espectadores.


Não estou a fazer a apologia das decrépitas rivais da RTP, que produzem o mais impensável lixo televisivo por saberem que é disso que o público javardo gosta. Passar de um extremo ao outro, da programação que “o povo gosta” para um programa que revela as preferências pessoais de alguém na RTP, só mostra como a televisão bateu no fundo. Quanto ao mais, à utilização da palavra “dinastia” em associação aos Ribeiro Teles (ou Telles) que maltratam touros, apenas uma sonora gargalhada pelo ridículo.

14.9.06

O inimigo público

Miguel Cadilhe, no Expresso do passado sábado:

Social-democrata e monetarista? No longo prazo diria que sim, um sim oco de real alcance (sic). Releio, a propósito, os magníficos ‘Essays in Persuasion’, de Keynes. Começo pelo economista. 1933: Deve equilibrar-se o orçamento do Estado à custa de mais depressão? Não, nunca. É o contrário. É com a economia a crescer que se equilibra o orçamento. Passo pelo filósofo. 1925: “Am I a liberal?”. Sim, ele era um liberal atento à vida. Depois, liberais e monetaristas, de braço dado, antagonizaram keynesianos, filhos do liberal e da grande depressão. Parafraseio e pergunto-me, sou monetarista? Hoje, quem o não é? Não sou. Como os monetaristas, detesto o despesismo do Estado, as derrapagens e indisciplinas orçamentais, as burocracias, as sobrecargas fiscais, as péssimas afectações de recursos. Algo diferente deles, porém, rejeito todo e qualquer prociclicismo político nos ciclos económicos, por exemplo, subir impostos ou cortar investimentos numa depressão. E sempre admiti três boas causas de défice público num país como o nosso: bom investimento; boa reforma estrutural; má recessão (reforçando os estabilizadores automáticos). Por isso, saudei o novo Pacto europeu de 2005 e estive contra o velho Pacto de 1997.

Hoje apeteceu-me dar tempo de antena a palavras imbecis. Mas aposto que o presidente da república terá aplaudido este artigo tão oco. Ele e o articulista do Expresso – que se auto-avalia como messiânica figura da paróquia de Bragança a Sagres – rezam pela mesma cartilha. (E mais não bastasse, menos se percebe a animosidade deste Messias contra quem lhe deu o efémero cargo de ministro das finanças, ainda que tivesse sido um erro de casting).

Delírios doentios

Cheguei a isto através do artigo de opinião de Augusto M. Seabra, na edição de hoje do Público (link só disponível para assinantes). O naco de prosa que segue é da autoria de uma senhora chamada Anabela Fino. Deu à estampa no Avante da semana passada.

É de presumir que o mais importante sobre o 11 de Setembro de 2001 fique por dizer. Falamos das teses que os média dominante denominam por “teorias da conspiração” e que, no essencial, questionam a “verdade oficial” servida à escala planetária como sendo o que de facto aconteceu, ou seja, que os atentados foram planeados e levados a cabo pela Al-Qaeda de Bin Laden, com tanto saber e mestria que apanharam completamente desprevenidos a maior potência militar do mundo. (...) Investigações independentes que têm vindo a ser desenvolvidas nos EUA e na Grã-Bretanha, sobretudo, dão conta que o Pentágono foi atingido por um míssil e não por um Boeing 757; que nenhum caça da U.S. Air Force decolou (sic) para tentar interceptar os aviões sequestrados; que as Torres Gémeas vieram abaixo por implosão (demolição controlada com explosivos pré-posicionados) e não devido a choques de aviões, tal como de resto o Edifício 7 que não foi atingido por nenhum avião; e que as contradições da versão oficial são tantas que não resistem a uma análise desapaixonada dos factos. Silenciando estas investigações ou remetendo-as para as “teorias da conspiração”, os média dominantes – e dominados – cumprem o seu papel. São a voz do dono. Não será por aí que se chegará à verdade. Pode não se acreditar em bruxas nem em conspirações, mas lá que elas existem, existem.

A voz do dono, diz ela. A ver-se ao espelho?

Devemos ter pena de todos nós, dominados pelos “media dominantes”. O que os olhos viram foi uma ilusão da realidade. As câmaras que tudo filmaram estavam aldrabadas.

Nem sei: se hei-de dizer “coitada” da plumitiva, ou sugerir o empacotamento para Cuba ou para a Coreia do Norte, onde elucubrações conspirativas vertidas em letra de imprensa, desde que contrárias às teses oficiais do “partido”, têm a condenação que se sabe.Que ela possa beber, por muitos e longos anos, todas as gotas do cálice da liberdade de imprensa!

Excessos de imagem (ou: há males que vêm por bem)


A RTP devia ser privatizada. Não me convence o argumento do serviço público de televisão, como se fosse um imperativo para temperar os exageros das estações privadas. Sei que a SIC e a TVI são as responsáveis pelo nivelamento por baixo da qualidade televisiva – ele é o lixo televisivo em forma de talk shows pirosos, os programas onde o insólito convive de mão dada com o mau gosto, a informação incendiária. Muitos não perdem um segundo para diagnosticar o problema: a culpa é da abertura do espaço televisivo à iniciativa privada.


O problema não é esse. Só os saudosistas de um período revolucionário que não passou da fase embrionária (o Verão quente com os ensaios de totalitarismo de esquerda) se agarram à certeza dos malefícios da televisão privada. Hoje como então, parece que continuam a padecer de um velho estigma da portugalidade divina: orgulhosamente sós. Se por todo o lado a televisão se dinamizou com a abertura à iniciativa privada, porque haveríamos de ser uma excepção?


Vem isto a propósito da existência de um canal público e de como todos os governos – todos, sem excepção – caem na tentação de o instrumentalizar. Fôssemos uma democracia já amadurecida e os governantes, de um e do outro lado do bloco central, saber-se-iam comportar como, por exemplo, no Reino Unido. Lá a BBC mantém-se na esfera pública. Porém, continua a ser independente do poder político. É um princípio de não intromissão que os políticos respeitam. Um pudor que os jornalistas dão como adquirido. Por cá a democracia está ainda nos alvores da adolescência. Com as erupções cutâneas tão típicas dos adolescentes, aqui na forma de constantes intromissões na arte de informar, fazendo da informação do canal público uma correia de transmissão dos interesses partidários de quem ocupa o poder.


O bloco central – a razão de estarmos tão para trás, quando poderíamos ter progredido como a Irlanda, houvesse competência no bloco central – tem telhados de vidro na matéria. Os comportamentos são indiferenciados. Quando um dos partidos governa não se coíbe de manobrar a RTP, seja de forma descarada ou mais discretamente. O partido que está na oposição não se cansa de protestar contra a instrumentalização governamental da televisão do Estado. Só à espera da alternância para, assim que se entroniza no poder, logo fazer o que tempos antes criticava com indignação. A desvergonha no seu expoente mais elevado.


A arte de meter a pata na informação que chega aos ecrãs: há uns que são mestres, outros que foram desastrados. O anterior governo era tão inábil que nem sequer sabia manipular a televisão. Era um elefante em loja de cristais. O actual governo quis entrar de mansinho. É o que sucede sempre que os partidos do bloco central alternam no poder. O que chega ao poder promete romper com os hábitos estabelecidos. Como vinha de uma retórica de protesto contra a manipulação da RTP pelo antecessor, fica-lhe mal entrar a matar, fazendo aquilo que tão asperamente criticava enquanto esteve na cura de oposição. O tempo vai passando, a poeira assentando, e tudo regressa à forma original. Aos poucos, as interferências vão-se notando.


O fenómeno repete-se, cansativo. É uma enfermidade da nossa democracia ainda jovem. Dir-se-ia, uma doença sintomática da juventude. Quando este governo conquistou o poder, esperava que mais tarde ou mais cedo a instrumentalização desavergonhada da televisão viesse ao de cima. As suspeitas adensavam-se pela personagem escolhida para tutelar a comunicação social. Alguém lhe chamou, em tempos, o “sapo com óculos”. É alguém que defende, com a maior desfaçatez, o que só ele – e os militantes possuídos de cegueira – consegue ver. Depois de uma entrada de sendeiro, a manipulação está em grande. Desde há meses, não há um único dia, um único noticiário, em que a RTP surja como curadora da imagem do governo. Com o primeiro-ministro à cabeça, ele que se preocupa mais com o acessório (as questões de imagem, o prolongamento no poder sem qualquer projecto que não seja uma agenda pessoal), mestre na difusão de uma imagem que remete para plano secundário o essencial (a substância da governação). Há outros ministros que merecem os diligentes favores da RTP: o Costa dos incêndios e o arrogante da saúde levam a palma.


Quando a coisa é excessiva, tem efeitos contraproducentes. Acho bem que este governo leve ao extremo a instrumentalização da RTP. De tanto cuidar da imagem, de tanto passar a imagem de que este é um governo feito de pessoas só com virtudes, o público há-de cair em si, cansado de homens tão perfeitos. Então, desmascarados, serão vítimas da sua fobia pela imagem. Daí à desgraça, um simples passo. Com a inestimável ajuda da RTP.

13.9.06

O que fazer com o outro eu?

Há momentos em que paramos para pensar se um outro eu, asfixiado pelos sedimentos densos do eu que damos a conhecer, não devia irromper à superfície. A introspecção necessária. Em busca dos pontos cardeais, na sugestão de que o caminho empoeirado que estava a ser percorrido nos guiou a uma encruzilhada obscura. Pode acontecer que não gostemos do eu que conhecemos. Cansados de ser o que somos. Começa um turbilhão cansativo, indagamos se não escondemos outro eu debaixo da forte carapaça em que fomos alojando o eu que somos.


Vamos presumir que há outro eu dentro de nós. Ou vários eus alternativos, que podemos escolher ao jeito de cardápio gastronómico. Chegada a introspecção, grita bem alto a urgência de mudar – hábitos, personalidade, mudar de vida, muito mais que uma simples operação de cosmética. O espelho que reflecte a nossa existência mostra uma imagem cansada, as olheiras bem carregadas, o olhar tristonho, um desaustinado ser que sublinha o lado cinzento das coisas. Incapaz de ver a face colorida dos elementos que o rodeiam, e como as cores garridas perfumam a sua vida com a leveza das pétalas que flutuam empurradas pela brisa refrescante. Ou descobrir, debaixo da carregada manta escura que teimamos ser, que há umas pequenas sementes à espera de serem lançadas ao solo. Basta que as mãos as recolham, espalhando-as pelo solo, para que o tempo se encarregue de fazer o resto.


Há este caminho que pede indulgência ao eu reprimido. Se as voltas da vida levaram a um beco sem retorno, a única saída que se alcança é trepar a parede diante de nós. Por sabermos que do outro lado há um outro eu à espera de ser abraçado. As incógnitas tomam o seu lugar. O eu escondido, o eu de que partimos em demanda, pode trazer dissabores. Se o eu alternativo encerra uma faceta pior que a conhecida do eu já familiar, a troca leva-nos de mal para pior. O risco compensará para aqueles que façam uma auto-avaliação carregada de nuvens negras. O cansaço de si será tanto que a disposição para abraçarem outro eu coincide com a ausência de hesitações. O novo eu não pode ser pior do que o eu de que se despedem.


Outros casos há em que a busca do eu escondido não significa que a exegese de si se salde pelo descontentamento. A auto-crítica pode não ser contemplativa com a heroicidade do eu que fomos. Mas não chega a ser devastadora. A dúvida do eu passado, que faz parar no tempo e interrogar o devir, não se compadece com a incógnita do eu desconhecido que procuramos alcançar. E se o novo eu espalha mais descontentamento que o eu já habitual? E se o percurso não tiver retorno? E se o outro eu alcançado se enraizar de tal forma que regressar ao eu de antanho é impossível?


Também se pode dar o caso do pressuposto estar errado. Pode ser que sejamos um e só um eu. Que as buscas por outros eus adormecidos, qual peregrinação interior, sejam um exercício fátuo. Apenas um sinal do descontentamento, das frustrações, tantas vezes condicionadas por actos que nos são exteriores, ditados por outros eus que vivem fora de nós. Faz sentido a demanda do eu alternativo quando os outros, fora do nosso eu, são as espadas desembainhadas que interferem no nosso devir? Não será uma falácia partir em demanda de um novo eu quando os descaminhos aziagos se devem aos outros?

Regresso ao ponto de partida: deixo-me envolver pela suposição de que existe outro eu lá no fundo, num local que os demais não conseguem alcançar. Quem deve partir em sua demanda? Um exercício isolado, um mergulho na individualidade mais profunda, nos alicerces do que somos e onde podemos discernir o tal eu desconhecido, ou conhecido mas propositadamente reprimido. De contrário, enxertado contributo alheio na busca do outro eu, a revelação será a emergência de algo não genuíno. O novo eu, nascido com ajuda alheia, será um eu moldado com o contributo de um ser exterior. O novo eu nasce com a mácula dos outros, parteiros da redefinição das almas.

O que é preferível: um eu espontâneo, que seja apenas o que somos? Ou um novo homem moldado com a ajuda das voluntariosas parteiras das almas alheias, mas um eu que carece de espontaneidade?

12.9.06

Não quero ser “chipado”


Os chips, pensava na minha candura, são material informático. Ou o chip electrónico que os adeptos do tunning colocam nos seus bólides para verem aumentada a potência controlada pelo pé direito. E havia a modernice do chip implantado no cão de estimação, que localiza o canídeo na eventualidade de se perder de casa. Agora temos chips atrelados à nossa existência. É o cartão único, os passaportes biométricos, dados pessoais muito na guarda do Big Brother cada vez mais “watching us”.


Dirão os que aplaudem de pé as iniciativas tecnológicas do governo da imagem sempre branca: quem não deve não teme. Acusação empertigada, de dedo em riste e tudo, desafiando a acatar a solução em nome da segurança. O desafio não me comove. Prezo demais as liberdades individuais para aceitar que estas inovações fantásticas passem incólumes na lavagem da privacidade, doravante cada vez mais reduzida a um minúsculo território, sempre aberto às investidas do omnipresente Estado. Não devo, nem temo; é por isso mesmo que não posso permitir que os dados pessoais sejam coligidos num chip, com zelosos burocratas a terem acesso a dados que só a mim dizem respeito.


Perturba-me só a ideia de um burocrata nos tempos mortos começar a vasculhar a minha intimidade. A intimidade armazenada no chip, com dados biométricos a preceito. Lá virão alguns acusar-me de ser um velho do Restelo. Condescendentes, ou apenas iludidos com a faraónica missão do Estado que se diz nosso protector, com a sentença preparada: se zelo pela segurança – pessoal, dos entes queridos, de toda a colectividade – devia prescindir das rejeições ao cartão único, ao passaporte biométrico e a outras torrentes tecnológicas adoptadas pelo governo da imagem mais-branco-não-há. Desconfio da bondade dos nossos protectores. Suspeito que a fobia de segurança que se instalou, com os suspeitos do costume, seja o pretexto para as intromissões na esfera pessoal. Socialismo, portanto. Olho para as investidas que se encavalitam dia após dia, e não me consigo esquecer que Hitler também se inspirou no socialismo.


Tendência inexorável à vista desarmada: vivemos acossados por todos os lados, com o cruzamento de dados que a infalível informática permite. Sitiados nas masmorras bem altas, a cada passo mais altas, edificadas pelos incansáveis engenheiros sociais que se oferecem como curadores do nosso seguro destino. Se o preço a pagar é a entrega da minha privacidade nos braços de anónimos funcionários públicos, prefiro a alternativa. No fundo, a alternativa entre a fobia securitária em nome de uma aparente liberdade, e a liberdade genuína, sem paredes espinhosas levantadas pelas autoridades.


Não quero ser manobrado à distância enquanto os burocratas com a missão de olhar por nós (dir-se-ia, em homenagem ao rigor, “de olho em nós”) se entretêm a desfazer a intimidade tutelada pelos dados privados armazenados no chip. E repugna-me o convencimento destes governantes, que se deitam com a certeza que estão a fazer avançar a nau no bom sentido, convencidos que prestam um serviço inestimável. Mais me custa a turba de alienados que se convence do convencimento da casta que abocanhou o poder. Aplaudem demoradamente o legado, sem discernirem a demissão da sua privacidade, ludibriados pela arte de vender a banha da cobra.


Qualquer dia, o Estado surpreenderá os cidadãos votantes com um GPS incorporado, outro micro chip para nunca sermos dados como perdidos num ausente lugar. Misteriosos dilemas policiais seriam decifrados antes de o chegarem a ser. O benevolente chip, encravado debaixo da pele como se fosse parte da nossa carne, pronto estará para a sua missão. Com a vantagem adicional de nunca nos tentarmos por caminhos ínvios, que logo o trajecto rastreado pelo GPS chipado nos denunciará. A caminho de uma sociedade pura, casta, sem vícios privados – impossíveis pelos rastreios – imaculadamente moral.


Nesse dia, ao acordar, quero-me convencer que é apenas um terrífico pesadelo. Que os engenheiros sociais embarcaram, exilados, para espalhar a sua bonomia noutras paragens. Ou então, realizado o não pesadelo, ser eu a perguntar para que lado é o exílio, senão mesmo a apátrida condição. Temo que a febre da expansão seja congénita: outrora conquistámos outros povos; no futuro lugar às conquistas internas, pela domesticação de cada membro do rebanho, até à acefalia.

11.9.06

Os gloriosos malucos das máquinas voadoras


Red Bull: em França, é uma bebida proibida. Não se estranha, vindo de um país tão inusual. Esta bebida energética é um case study de publicidade agressiva. A expressão há que ser entendida no bom sentido, sem qualquer travo bélico que logo faria as delícias dos Rambos de serviço ao exército norte-americano. No registo de interesses pessoais que convém exarar, confesso simpatia pela empresa austríaca devido aos rios de dinheiro que investiu no desporto automóvel.


Uma das imaginativas iniciativas que divulga o nome da bebida feita com uma substância chamada taurina é um insólito concurso para sucedâneos de máquinas voadoras sem hipótese alguma de poderem voar. Os participantes são desafiados a mostrar a sua veia imaginativa, construindo máquinas que, sabe-se à vista desarmada, são incompatíveis com os requisitos da física para o voo. Estas máquinas são émulos fracassados de aviões feitos em cartolina, madeira, nos materiais e nas formas mais estapafúrdios que se possa imaginar. Tripuladas pelos seus loucos criadores, conseguem a proeza de voar uns escassos segundos. Até se estatelarem, com mais ou menos fragor, nas águas que servem de leito ao voo fracassado.


O evento tem sido organizado lá fora. Este fim-de-semana calhou a vez das águas do Tejo, junto à Torre de Belém, serem testemunhas das façanhas dos estrambólicos ensandecidos que constroem os esboços de aeronave que jamais se poderia imaginar até serem dados a conhecer. Foi a vez da excentricidade, que motiva momentos de boa disposição entre participantes e audiência, vir até Lisboa. Há malucos para tudo. O caso dos participantes não será de loucura patológica. Só de uma saudável loucura que contagia os espectadores com boa disposição, tão preciosa nos tempos que correm. Os concorrentes que se aventuravam no voo picado para as poluídas águas do Tejo sabiam que estavam a contribuir para a felicidade instantânea dos milhares que foram assistir àquele sucedâneo de doce manicómio.


Red Bull dá-te asas” – é o lema mais conhecido da bebida energética. Nada mais apropriado que um concurso onde o Homem tenta rivalizar com as aves, essas sim equipadas à nascença para bater as asas em longos voos. Na ousadia do marketing agressivo, o Red Bull arrisca-se a ser desmascarado (caso a semântica da publicidade fosse interpretada à letra): por ser verdade que o efeito voador do Red Bull se extingue em escassos segundos, derrotado pelo factor inexorável que a bebida não é capaz de vencer – a física, que actua como um íman que atrai os aventureiros para uma aterragem molhada. Nem a louca correria pelo palanque de acesso à água (seria mais apropriado chamar-lhe “pista de descolagem”?) chega para impedir a queda estrepitosa nas águas lamacentas do Tejo prestes a perder-se no Mar da Palha.


Ver as imagens do evento é um bálsamo. Não estive lá, mas ver as imagens funcionou como substituto perfeito. Pela imaginação desenfreada de quem ousou construir os esboços de aeronaves candidatas ao mergulho certo; pela boa disposição dos participantes, com uma dose de saudável loucura à mistura; e pelo ar de felicidade dos espectadores que viram a sequência de piruetas das pretensas avionetas a caminho do despenhamento nas águas calmas do Tejo. Apetece agradecer à Red Bull, que não se cansa de investir fortunas na sua arrojada campanha de publicidade para desafiar a rotina das pessoas tão cinzentas que se apascentam na quietude dos dias que se repetem, todos iguais, acéfalos.


Via as imagens dos concorrentes na sua correria desenfreada rumo ao rio. Batiam-se entre si pela queda mais artística, pelo aplauso mais sonoro da audiência. Por um momento, lembrei-me dos desenhos animados em que um batalhão de ineptos aviadores tentava capturar, sempre sem sucesso, o pombo-correio do inimigo. Por mais estratégias que congeminassem, o resultado era sempre igual: a queda livre dos ensandecidos aviadores, incapazes de deitar a mão ao pombo. Mas sempre com as gargalhadas sonoras do mais louco de todos – o cão Muttley. Eram os gloriosos malucos das máquinas voadoras.


Hoje, os gloriosos malucos das máquinas voadoras concorrem ao Red Bull Flugtag. Um hino aos anónimos fracassados, que transfiguram as fraquezas próprias nas forças dos outros.

8.9.06

“Pain in the ass” (um texto homofóbico)

Não é a primeira vez que ando às voltas com expressões em língua inglesa que, traduzidas à letra para a língua de Camões, resultam num nó difícil de desatar. Dizemos “que chato”, em linguagem cheia de vernaculidade, quando deparamos com alguém que nos provoca um longo bocejo, por ser presença desagradável. Os ingleses referem-se a essa pessoa como um “pain in the ass”. Fazendo a retroversão à letra, a personagem cuja presença se procura evitar provoca uma “dor no traseiro”.

Há expressões idiomáticas que valem mais pelo seu simbolismo do que pelo teor literal das palavras contidas. Sabemos que é verdade, quando descaímos para o calão e usamos, quase sempre inconscientemente, expressões que, fossem levadas à letra, são ofensivas a quem as dirigimos. Todavia, esta expressão vulgarizada por quem fala o idioma inglês deixa-me intrigado.
Primeiro, interrogo-mo da comparação entre o indivíduo desagradável e a dor no “dito cujo”. Como foi inventada esta expressão idiomática é um mistério que merecia trabalho de investigação demorado. Apetece mergulhar no passado, como se fosse possível viajar no tempo. Descobrir quem usou pela primeira vez esta expressão. E perguntar-lhe como teve a noção do que é sentir “pain in the ass”. Esta deriva escatológica, com laivos homossexuais, está presente noutros momentos da idiomática inglesa. Quem fala esta língua chama “ass hole” aos que passeiam a sua imbecilidade.

Em segundo lugar, esta expressão devia estar banida agora que vingou o império do pensamento politicamente correcto. Não é novidade que o politicamente correcto aconselha a não usar certas expressões, julgadas ofensivas aos costumes renovados com os traços de (pós) modernidade. Fica mal dizermos “preto”; convém referirmos “negro”. E até se dá o caso de as vanguardas do politicamente correcto nem “negro” aceitarem. Têm razão: qual a diferença entre “preto” e “negro”? Rótulo alternativo, com a macieza hipócrita: “afro-americano” (rótulo usado nos Estados Unidos). E “paneleiro”, “bicha”, “maricas” são termos com conotação ofensiva, vistos pelo tom depreciativo de quem os usa para se referir a um homossexual.

O problema da expressão “pain in the ass” é ignorar que os homossexuais masculinos não concordarão com ela. Quem a usa é fautor da discriminação sexual que remete os homossexuais para um lugar escondido da sociedade. O império do politicamente correcto ainda não terá reparado no mau gosto da expressão “pain in the ass”. Há uma maneira alternativa de fazer a hermenêutica da expressão. Ou bem que ela tem o entendimento tradicional, nitidamente homofóbico por não levar em consideração que os homossexuais masculinos valoram a coisa de forma diferente; ou então, para um homossexual, decerto um indivíduo que entre na categoria dos “pain in the ass” não é um chato, é alguém cuja presença se revela muito agradável…

Os idiomas encerram mistérios insondáveis. E quando se pensa que por cá somos uma sociedade mais conservadora, menos tolerante para formas de sexualidade alternativa, o idioma dos outros (dos países que falam inglês) desmente-o. O simples facto de estar enraizada a expressão “pain in the ass” é uma desconsideração para os homossexuais. Uma forma escondida de os remeter para as franjas da sociedade, ao ostracismo.

Há também uma maneira alternativa de encarar a problemática – que é nem sequer achar que isto é um problema. As palavras são, tantas vezes, lugares vãos onde não se abriga o sentido literal que elas encerram. Mau seria, aliás, que fosse vedado aos rezingões marialvas destas e de outras praças o direito de repudiarem as práticas homossexuais. Pelo menos no que a eles diz respeito. Daí que lhes assista o direito de dizerem “pain in the ass” quando dão de caras com um grandessíssimo chato. Este, coitado, já não bastava ser uma personagem aborrecida, ainda arrosta com o rótulo nada agradável de, com a sua presença, infligir uma “pain in the ass” aos que o suportam. Porventura sem o ser, o infeliz chato ainda tem que suportar a sugestão da sua homossexualidade escondida. E o auto-cinismo daqueles que lhe chamam “pain in the ass”: para lhe dirigirem o rótulo, fica subentendido que tiveram que suportar a tal dor…
Parece-me que os nativos que falam o idioma inglês têm um problema mal resolvido com a homossexualidade. Ou uma homossexualidade reprimida.

7.9.06

Liberais e conservadores, dúvidas metódicas e certezas incontestáveis


Aqueceu o debate entre conservadores e liberais, numa saudável cisão daquilo que se pode considerar “a direita”. Os conservadores acusam os liberais de nunca deixarem transparecer dúvidas. As suas ideias são a ilustração de imperativos categóricos, como se não houvesse lugar à dúvida como método.
Como radical libertário, estou mais próximo dos liberais. Sem qualquer ponto de contacto com os conservadores. Desde logo pela forma de olhar o mundo. São os que querem conservar o estabelecido, as tradições, sem questionar o que está cimentado. Como se fôssemos obrigados a prestar vassalagem ao legado dos antepassados, sem lugar à interrogação do que nos foi legado e como nos foi legado. Para os conservadores a História é um dado adquirido. Não é que estejam errados: está armazenada, a História, não se pode revisitá-la com o objectivo de a refazer (como os estalinistas continuam a fazer). Discordo é da passividade dos conservadores perante os acontecimentos que estiveram na origem do que vivemos hoje. Não sei se o fazem por comodismo, para não remexerem na consciência que os obrigaria a questionar usos e costumes. Não consigo partilhar esse conformismo, que depressa se transforma em anemia intelectual.

É incompreensível a acusação dos conservadores. Podem os liberais, sobretudo os mais exacerbados na denúncia do gigantismo do Estado, perfumar a sua retórica com o embrulho das certezas incontestáveis. Todavia, não são os conservadores os expoentes máximos dos imperativos categóricos quando se mantêm agarrados ao passado, incrustados nas tradições que vêm de tempos remotos, incapazes de olhar para o tempo presente sem os olhos que viram o passado? Na comparação entre conservadores e liberais, quem se agarra à tábua de salvação das certezas são os primeiros.

Sendo radical libertário – logo, distante do mainstream do liberalismo tradicional, que bebe inspiração em Adam Smith, David Ricardo, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek – vou às raízes do niilismo para questionar o estado de coisas que nos cerca. Quando alguém se inspira no niilismo tem como pressuposto a dúvida que o coloca em sistemático estado de negação: negação do que existe, sem haver a necessidade de virar a página e oferecer a alternativa ao que a abordagem niilista destrói. Visto que o ponto de partida é a negação do que está consolidado, do estado de coisas que apazigua a existência dos conservadores, a acusação destes é espúria.

Uns questionam o papel excessivo do Estado (liberais); outros condescendem, julgando que o Estado é determinante para a ordem pública e para manter a segurança de pessoas e bens (conservadores). O contraste é suficiente para perceber quem tem certezas inabaláveis e dúvidas constantes. Quem contesta o estado de coisas actual é a corrente que afirma dúvidas. Quem o faz não são os conservadores, na sua bonomia geral perante a herança do passado a que vivemos agarrados, os sedimentos acumulados que criaram a sociedade que somos. A acusação dos conservadores é um tiro no pé, o produto do desconforto de quem se vê ao espelho e não gosta do que vê. O império das certezas tem o seu templo na casa dos conservadores.

Não me revejo no liberalismo clássico (não confundir com os liberals” norte-americanos, esquerdistas moderados para quem a existência de um Estado de dimensões generosas não traz qualquer incómodo). Por divergência filosóficas de base, pois Smith, von Mises, Hayek rejeitam os pressupostos niilistas. Até um dos nomes mais emblemáticos da corrente radical libertária – Murray N. Rothbard – se insurge violentamente contra o niilismo. Da maneira que vejo as coisas, só há uma forma de ser radical libertário: partindo do niilismo total, que preveja o desmantelamento do Estado, excrescência totalitária que asfixia – em vez de garantir – direitos cívicos e liberdades individuais. Assim se percebe como um radical libertário está mais próximo dos liberais que dos conservadores. Os primeiros denunciam as atrocidades que o Estado comete todos os dias. Só aceitam o Estado mínimo. Os segundos, enamorados por um Estado com mão de ferro (que amiúde se confunde com ditaduras, sem o serem formalmente), acham que só um Estado forte pode garantir a sobrevivência das tradições que vêm do passado e que, dizem, devemos preservar sem questionar.
A forma mais digna de respeitar a autonomia do ser humano não é o refúgio em dogmas irrefutáveis, como o fazem os conservadores. Afinal, sem surpresa: beatos militantes, uma das expressões do seu conservadorismo, desprezam a emancipação intelectual da pessoa. São eles, conservadores, que vivem embriagados de certezas. Aos liberais, honra lhes seja feita, o estado de insatisfação que os leva a colocar sucessivas interrogações perante o actual estado de coisas.

6.9.06

"O sucesso e a culpa são as faces da mesma moeda"

O artista apregoa no refrão, uma e outra vez: “o sucesso e a culpa são as faces da mesma moeda”. A música moderna é um estandarte da contestação social, é sabido. O discurso contestatário cai bem na audiência, até nas grandes multinacionais da produção musical que fazem fortuna com artistas que não se cansam de apostrofar o capitalismo. Curiosa cumplicidade: a dos artistas com um esteio do capitalismo que renegam, contribuindo para engrossar dos lucros da editora; e a das editoras, que assinam contrato com artistas que convocam as massas para a revolta contra o estado de coisas em que estamos, o tal “capitalismo selvagem” de que as editoras são um dos expoentes.

Regresso ao refrão estigmatizante. Aquela música enche os ouvidos da audiência com a sentença de que sucesso e culpa andam de braço dado. Lá está um dos lugares comuns que arrebata as emoções de massas excitadas. E, contudo, apetece demorar na sentença prefaciada pelo artista. Há muitos senãos pelo caminho a impedirem o aplauso a sentença tão lapidar. Justamente por ser tão lapidar.

Primeiro óbice: sucesso e culpa não são do domínio do objectivo. Duas pessoas podem encarar de forma diferente o sucesso. As expectativas que servem de ponto de partida podem ser diferentes. As ambições variam de pessoa para pessoa. As vicissitudes tocam-nos com o sabor do aleatório. As reacções perante os infortúnios e as conquistas divergem consoante os indivíduos. Tudo para confirmar que o sucesso é coisa subjectiva. Mais importante: a medida do sucesso apenas interessa ao indivíduo que é por ele bafejado. Quando começamos a olhar para o sucesso dos outros, por norma derivamos para a inveja, uma das piores maleitas da modernidade.

Segundo obstáculo: sucesso em geral, ou sucesso em aspectos particulares? O sucesso na vida pessoal – a felicidade, para uns o valor supremo – tem a mesma importância que o sucesso na vida profissional? Varia. Entregues à voragem da carreira profissional, para muitos essa é a prioridade. Para esses, a felicidade constrói-se pelos feitos profissionais, como se houvesse uma simbiose entre a vida profissional e a vida pessoal. Como se esta se diluísse naquela.

Terceira objecção: faz sentido a generalização contida no refrão sussurrado pelo artista? Todo o sucesso é sinal de culpa, dando a entender que para se chegar ao sucesso (aceitando, por um momento, que é algo objectivo) é necessário percorrer caminhos ínvios, estender a passadeira à fraude? Existe o sentimento generalizado de que vingam os incapazes, os medíocres, aqueles cujo único predicado é saberem por a funcionar a cunha que desata os nós que aparecem pelo caminho. É uma generalização. Como acontece com as generalizações, perigosa. Se o lugar dominante dos medíocres parece um dado adquirido, decerto todos conhecemos casos em que o mérito deu lugar ao sucesso. Conheço alguns, pessoas de muito valor que nunca precisaram de esgravatar favores sórdidos para escalarem a vereda do sucesso. E assim se desmente a visão do artista, assim se desmonta o pessimismo exacerbado que mete no mesmo saco toda a gente, sem cuidar de seleccionar as excepções.

Quarta objecção: um erro de palmatória. Ao julgar que a culpa é o reverso do sucesso, entra pela segunda vez no terreno movediço da objectivação do que não pode ser objectivo. A culpa remete para a consciência. E há algo mais subjectivo, mais volátil, do que a consciência individual? Logo, a culpa também ocupa um lugar diferenciado no interior de cada um de nós. Um acto pode ter efeitos devastadores numa pessoa, pela dificuldade que a sua consciência tem ao lidar com o deslize; já para outro, mais frio, ou com a consciência aligeirada, o mesmo acto pertence ao domínio da normalidade. Ainda se pode ajuizar que sucesso e culpa são a face da mesma moeda?
Basta olhar em redor. Ver a insolência com que “sucessos” de jaez duvidosa levam personagens à emproada vaidade quando desfilam atrelados à glória conquistada. E ver como impera, cada vez mais, o sentido da naturalidade quando vinga a divisa “os fins não olham aos meios”. Na política é lugar comum, como o é no desporto, como provam as tentativas para remeter para a gaveta do esquecimento os escândalos que envolvem a sórdida personagem que empesta há mais de vinte anos o futebol nacional. Repito a pergunta: tem o artista a certeza que a culpa anda de braço dado com o sucesso? É que não vejo ninguém a procurar expiar as tormentas que trazem insónias à consciência. O que vejo é o branqueamento de comportamentos fraudulentos que semearam um sucesso fétido.

5.9.06

A ditadura da tecnologia


Os paradoxos da ciência. Entre os avanços que arroteiam o bem-estar e a irritação quando a tecnologia bloqueia. Até que, a certa altura, somos servos da tecnologia. Há um chavão que os informáticos costumam usar, para seu deleite e exasperação dos leigos: “o programa nunca se engana”. E se alguém riposta que o erro pode estar na pessoa que fabricou o programa, enrubescem, disparando um olhar enfurecido que espelha a sua tolerância quando os outros se impacientam com bugs e afins.

Ontem a informática semeou o caos no aeroporto do Porto. Atrasos acumulados, num efeito dominó: quanto mais passageiros chegavam ao aeroporto mais se avolumavam os atrasos. E enquanto o sistema informático caprichava na sua letargia indomável, era o desespero de passageiros que penavam nas longas filas para o check in. Já não bastavam as demoradas operações de segurança, que alongam os tempos de espera em aeroportos, fazendo de uma viagem com escalas uma saga pré-histórica. (A esse propósito, um palpite: não estarão os terroristas a saborear o gosto dessa vitória que não corresponde, do lado de cá, à admissão da derrota? Não será a limitação das liberdades o sintoma da derrota do ocidente, que afinal entra no jogo sórdido dos terroristas?)

Outro episódio tecnológico: retomar o trabalho com duas revoluções. Um novo sistema de ensino (Bolonha) e um novo sistema informático. Ainda experimental, trabalha a passo de caracol. Também aqui as esperas se prolongam. Diminui o tempo útil de trabalho, enquanto o sistema resiste à afinação e sucumbe às pressões dos “utilizadores”. Estes não escondem a impaciência. Convivem, disfarçando os engulhos das quebras de tensão do sistema com esboços de humor requintado.

O binómio hardware/software tem caprichos como os humanos? Na sua frieza, mergulhados na racionalidade dos algoritmos, os técnicos sentenciarão que não, mais um esgar de cinismo pela pergunta. Mas sempre que há erros inexplicáveis que bloqueiam um programa informático, sem que o leigo perceba porque esbarrou naquele obstáculo imprevisto, faz sentido levantar a interrogação. Recuar um pouco: que não, dizem os especialistas, os erros são sempre provocados por manobras impróprias dos “utilizadores”. E lá estamos num braço de ferro e nos braços traiçoeiros da tecnologia.

Podemos escapar aos tentáculos que nos envolvem? Só se formos ascetas. Há dias percebi como escrever com esferográfica é quase uma raridade. Há pequenas coisas que continuamos a manuscrever – a assinatura, ou formulários que a administração pública, os bancos, as seguradoras, etc., continuam a exigir. Tirando esses actos que tornam a escrita manual uma banalidade, quem se habituou a um computador pessoal deixou de escrever. Quando tenho que escrever um pouco mais que o habitual a mão cansa-se mais depressa, ganho calo nos dedos que estão em contacto com a caneta. Eis outra medida da dependência da tecnologia. Com o seu lado bom: o tempo que se poupa no processamento do texto com aplicações informáticas. E o lado mau: a mecanização da escrita, já sem o traço pessoal do escritor e a possibilidade de especialistas decifrarem a personalidade escondida do escritor ao dissecarem a sua escrita.

A tecnologia é a ditadura moderna. Entregámo-nos a ela em contrapartida do muito que nos oferece, do muito que fez progredir o bem-estar pessoal. Neste sentido, é uma ditadura paradoxal: alimentou a liberdade individual de cada “utilizador”. O preço a pagar, a dependência total da tecnologia, quase como se ela fosse o sucedâneo do oxigénio que precisamos para respirar. Ama-se e odeia-se ao mesmo tempo, em ocasiões diferentes, consoante os humores vaporizados pelas máquinas que nos comandam. E os nossos humores oscilam em função dos humores das máquinas. Devemos temer pela mecanização do Homem, entregue às delícias e nas armadilhas da tecnologia?
Há sempre critério válido à espera de ser usado, pródigo para economistas: avaliar o custo da “não tecnologia”. Como se devia fazer com os que destilam babo e ranho contra o capitalismo, essa coisa malfadada que está na origem de todos os males do mundo (na retórica dos detractores). Como era bom que se abrisse um laboratório virtual onde fossem encarcerados, cobaias do cenário alternativo do não capitalismo, estas aves de arribação. Que as portas só se abrissem longos meses depois, privações acumuladas, para perceberem como bens essenciais, vitórias do capitalismo, só merecem valor depois de sentida a sua ausência. O mesmo vale para a informática que nos asfixia. Com a agravante de ser mais um símbolo do nefando capitalismo.