5.9.06

A ditadura da tecnologia


Os paradoxos da ciência. Entre os avanços que arroteiam o bem-estar e a irritação quando a tecnologia bloqueia. Até que, a certa altura, somos servos da tecnologia. Há um chavão que os informáticos costumam usar, para seu deleite e exasperação dos leigos: “o programa nunca se engana”. E se alguém riposta que o erro pode estar na pessoa que fabricou o programa, enrubescem, disparando um olhar enfurecido que espelha a sua tolerância quando os outros se impacientam com bugs e afins.

Ontem a informática semeou o caos no aeroporto do Porto. Atrasos acumulados, num efeito dominó: quanto mais passageiros chegavam ao aeroporto mais se avolumavam os atrasos. E enquanto o sistema informático caprichava na sua letargia indomável, era o desespero de passageiros que penavam nas longas filas para o check in. Já não bastavam as demoradas operações de segurança, que alongam os tempos de espera em aeroportos, fazendo de uma viagem com escalas uma saga pré-histórica. (A esse propósito, um palpite: não estarão os terroristas a saborear o gosto dessa vitória que não corresponde, do lado de cá, à admissão da derrota? Não será a limitação das liberdades o sintoma da derrota do ocidente, que afinal entra no jogo sórdido dos terroristas?)

Outro episódio tecnológico: retomar o trabalho com duas revoluções. Um novo sistema de ensino (Bolonha) e um novo sistema informático. Ainda experimental, trabalha a passo de caracol. Também aqui as esperas se prolongam. Diminui o tempo útil de trabalho, enquanto o sistema resiste à afinação e sucumbe às pressões dos “utilizadores”. Estes não escondem a impaciência. Convivem, disfarçando os engulhos das quebras de tensão do sistema com esboços de humor requintado.

O binómio hardware/software tem caprichos como os humanos? Na sua frieza, mergulhados na racionalidade dos algoritmos, os técnicos sentenciarão que não, mais um esgar de cinismo pela pergunta. Mas sempre que há erros inexplicáveis que bloqueiam um programa informático, sem que o leigo perceba porque esbarrou naquele obstáculo imprevisto, faz sentido levantar a interrogação. Recuar um pouco: que não, dizem os especialistas, os erros são sempre provocados por manobras impróprias dos “utilizadores”. E lá estamos num braço de ferro e nos braços traiçoeiros da tecnologia.

Podemos escapar aos tentáculos que nos envolvem? Só se formos ascetas. Há dias percebi como escrever com esferográfica é quase uma raridade. Há pequenas coisas que continuamos a manuscrever – a assinatura, ou formulários que a administração pública, os bancos, as seguradoras, etc., continuam a exigir. Tirando esses actos que tornam a escrita manual uma banalidade, quem se habituou a um computador pessoal deixou de escrever. Quando tenho que escrever um pouco mais que o habitual a mão cansa-se mais depressa, ganho calo nos dedos que estão em contacto com a caneta. Eis outra medida da dependência da tecnologia. Com o seu lado bom: o tempo que se poupa no processamento do texto com aplicações informáticas. E o lado mau: a mecanização da escrita, já sem o traço pessoal do escritor e a possibilidade de especialistas decifrarem a personalidade escondida do escritor ao dissecarem a sua escrita.

A tecnologia é a ditadura moderna. Entregámo-nos a ela em contrapartida do muito que nos oferece, do muito que fez progredir o bem-estar pessoal. Neste sentido, é uma ditadura paradoxal: alimentou a liberdade individual de cada “utilizador”. O preço a pagar, a dependência total da tecnologia, quase como se ela fosse o sucedâneo do oxigénio que precisamos para respirar. Ama-se e odeia-se ao mesmo tempo, em ocasiões diferentes, consoante os humores vaporizados pelas máquinas que nos comandam. E os nossos humores oscilam em função dos humores das máquinas. Devemos temer pela mecanização do Homem, entregue às delícias e nas armadilhas da tecnologia?
Há sempre critério válido à espera de ser usado, pródigo para economistas: avaliar o custo da “não tecnologia”. Como se devia fazer com os que destilam babo e ranho contra o capitalismo, essa coisa malfadada que está na origem de todos os males do mundo (na retórica dos detractores). Como era bom que se abrisse um laboratório virtual onde fossem encarcerados, cobaias do cenário alternativo do não capitalismo, estas aves de arribação. Que as portas só se abrissem longos meses depois, privações acumuladas, para perceberem como bens essenciais, vitórias do capitalismo, só merecem valor depois de sentida a sua ausência. O mesmo vale para a informática que nos asfixia. Com a agravante de ser mais um símbolo do nefando capitalismo.

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