1.9.06

Duas garrafas de cerveja, o menino de volta dos cisnes na margem do Rio Shannon


As escadas descem até beijarem as águas castanhas do rio Shannon. Lá em baixo, apenas a dois degraus da água enlameada, duas garrafas de cerveja repousam, abandonadas. Ao lado, uma criança entretida com os cisnes que a rodeiam. Vai atirando bocados de pão para a água, fitando o bailado dos cisnes que lutam para debicar o próximo pedaço de pão, antes que amoleça na água e deixe de ser apetecível.

O menino nem repara nas duas garrafas. Cumpriram a sua função: inebriar dois jovens que mergulharam na longa noite, vagueando de bar em bar, de cerveja em cerveja, até cambalearem para a estação onde apanham o comboio que os leva a casa. As duas garrafas são matéria inerte para o rapaz. Evita-as na sua correria entre os degraus com limo e o varandim de onde o avô lhe atira os pedaços de pão, enquanto os seus olhos fitam, perdidos, o horizonte vazio.

A indiferença do menino sinaliza inocência, o desconhecimento dos vapores etílicos que nadaram naquelas garrafas. Como se fossem a droga necessária para trazer momentos sublimes, que só a embriaguez permite. Na sua pureza, diria quase pueril, o menino nem repara nas garrafas que ali jazem. São matéria inerte, invisível para o rapaz. Nem sequer servem como utensílio para as suas brincadeiras. O desprezo total. A cerveja tragada sepultou as garrafas num túmulo insignificante. Até que por ali passe um homem do lixo, ou alguém que veja o estado de orfandade das garrafas e ache que elas pertencem ao rio, como navegantes que se hão-de perder mais além, na margem lodacenta, ou empurradas pela corrente até ao amplo golfo onde o rio desagua.

O menino preferiu a coreografia com os brancos cisnes. Mapas diferentes, o da criança que dedica atenção aos cisnes e o dos jovens que largaram as garrafas nos degraus de acesso ao rio. Matéria descompassada. E, todavia, dá-se o acaso de o rapaz dos cisnes e os jovens das cervejas se cruzarem todos os dias, na estação onde apanham o mesmo comboio. Talvez até já se tenham sentado lado a lado. O menino, com a mesma indiferença a que votou as garrafas, não dá conta que no banco à sua frente se sentou um dos jovens que deixou ao abandono as garrafas. Vai imerso nos sonhos tão próprios da meninice. O jovem com olheiras bem vincadas aproveita a curta viagem para cerrar os olhos em busca do sono que foi curto.

Há um hiato do tempo entre a criança e os rapazolas que perderam o rasto das garrafas ao pé do rio. Os anos que os espaçam são o lugar onde repousam as indiferenças entre eles. E, no entanto, há um rasto de intemporalidade que tece uma teia entre o menino e os jovens. Como se para estes o passado pudesse ser revisitado nas brincadeiras do menino. E como se o rapaz pudesse destapar o cobertor que esconde o seu futuro, fosse ele capaz de interrogar as duas garrafas. Desconhecem-se, o menino e os jovens. Os traços que deixaram colocam-nos na senda de tempos cruzados, do tempo outrora vivido pelos jovens, e do tempo que está para vir para a criança. Os cisnes são as testemunhas da intemporalidade que une as três personagens na mesma teia. Os cisnes são, por assim dizer, a ponte que atravessa essa intemporalidade.

Caminhos paralelos confluíram no mesmo sentido. A criança e os jovens não estão em sintonia. Porém, todos desaguaram naquele recanto semeado nas margens do rio. Todos buscaram refúgio nas águas que escorrem, calmas, rumo à foz. Nem os contrários que cultivam a indiferença quando se sentam lado a lado no comboio nada puderam contra a convergência de destinos. Pode ter sido por diferentes motivos: os jovens decidiram fazer uma paragem contemplativa na digressão nocturna, no ritual que os faz engolir infindáveis cervejas; o rapaz encontrou na escadaria que desce até ao rio o esconderijo para as brincadeiras que a meninice exige antes de voltar aos bancos da escola. Pode ter sido em tempos diferentes – o menino pela frescura da manhã, os jovens embriagados no taciturno rosto da noite.
Nem estas diferenças bastam para ofuscar a teia que teceram em conjunto. Para uns (os jovens desapossados das garrafas de cerveja, que deixaram de ser úteis quando ficaram vazias), o regresso ao lugar onde outrora deitaram pão seco aos cisnes esfomeados. Para a criança, as garrafas que contorna com indiferença, o sinal dos dias que hão-de vir. Daqui a uns anos, recordar-se-á que aqueles degraus onde deixará órfã uma garrafa de cerveja foram o altar das suas brincadeiras partilhadas com os cisnes?
(Limerick, Irlanda)

Sem comentários: