13.9.06

O que fazer com o outro eu?

Há momentos em que paramos para pensar se um outro eu, asfixiado pelos sedimentos densos do eu que damos a conhecer, não devia irromper à superfície. A introspecção necessária. Em busca dos pontos cardeais, na sugestão de que o caminho empoeirado que estava a ser percorrido nos guiou a uma encruzilhada obscura. Pode acontecer que não gostemos do eu que conhecemos. Cansados de ser o que somos. Começa um turbilhão cansativo, indagamos se não escondemos outro eu debaixo da forte carapaça em que fomos alojando o eu que somos.


Vamos presumir que há outro eu dentro de nós. Ou vários eus alternativos, que podemos escolher ao jeito de cardápio gastronómico. Chegada a introspecção, grita bem alto a urgência de mudar – hábitos, personalidade, mudar de vida, muito mais que uma simples operação de cosmética. O espelho que reflecte a nossa existência mostra uma imagem cansada, as olheiras bem carregadas, o olhar tristonho, um desaustinado ser que sublinha o lado cinzento das coisas. Incapaz de ver a face colorida dos elementos que o rodeiam, e como as cores garridas perfumam a sua vida com a leveza das pétalas que flutuam empurradas pela brisa refrescante. Ou descobrir, debaixo da carregada manta escura que teimamos ser, que há umas pequenas sementes à espera de serem lançadas ao solo. Basta que as mãos as recolham, espalhando-as pelo solo, para que o tempo se encarregue de fazer o resto.


Há este caminho que pede indulgência ao eu reprimido. Se as voltas da vida levaram a um beco sem retorno, a única saída que se alcança é trepar a parede diante de nós. Por sabermos que do outro lado há um outro eu à espera de ser abraçado. As incógnitas tomam o seu lugar. O eu escondido, o eu de que partimos em demanda, pode trazer dissabores. Se o eu alternativo encerra uma faceta pior que a conhecida do eu já familiar, a troca leva-nos de mal para pior. O risco compensará para aqueles que façam uma auto-avaliação carregada de nuvens negras. O cansaço de si será tanto que a disposição para abraçarem outro eu coincide com a ausência de hesitações. O novo eu não pode ser pior do que o eu de que se despedem.


Outros casos há em que a busca do eu escondido não significa que a exegese de si se salde pelo descontentamento. A auto-crítica pode não ser contemplativa com a heroicidade do eu que fomos. Mas não chega a ser devastadora. A dúvida do eu passado, que faz parar no tempo e interrogar o devir, não se compadece com a incógnita do eu desconhecido que procuramos alcançar. E se o novo eu espalha mais descontentamento que o eu já habitual? E se o percurso não tiver retorno? E se o outro eu alcançado se enraizar de tal forma que regressar ao eu de antanho é impossível?


Também se pode dar o caso do pressuposto estar errado. Pode ser que sejamos um e só um eu. Que as buscas por outros eus adormecidos, qual peregrinação interior, sejam um exercício fátuo. Apenas um sinal do descontentamento, das frustrações, tantas vezes condicionadas por actos que nos são exteriores, ditados por outros eus que vivem fora de nós. Faz sentido a demanda do eu alternativo quando os outros, fora do nosso eu, são as espadas desembainhadas que interferem no nosso devir? Não será uma falácia partir em demanda de um novo eu quando os descaminhos aziagos se devem aos outros?

Regresso ao ponto de partida: deixo-me envolver pela suposição de que existe outro eu lá no fundo, num local que os demais não conseguem alcançar. Quem deve partir em sua demanda? Um exercício isolado, um mergulho na individualidade mais profunda, nos alicerces do que somos e onde podemos discernir o tal eu desconhecido, ou conhecido mas propositadamente reprimido. De contrário, enxertado contributo alheio na busca do outro eu, a revelação será a emergência de algo não genuíno. O novo eu, nascido com ajuda alheia, será um eu moldado com o contributo de um ser exterior. O novo eu nasce com a mácula dos outros, parteiros da redefinição das almas.

O que é preferível: um eu espontâneo, que seja apenas o que somos? Ou um novo homem moldado com a ajuda das voluntariosas parteiras das almas alheias, mas um eu que carece de espontaneidade?

1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto espelha a complexidade desses "eu's" todos que és tu.
A coragem de lavantar a questão, a inteligência de a aprofundar e o comodismo de encontrar uma tese que justifique o "ficar na mesma".

Ponte Vasco da Gama