22.9.06

Opúsculo (semi) vegetariano


Um rebate de consciência, um golpe virulento que a despertou para o desconforto pessoal de comer carne. Já andava a prometer a mim mesmo, há algum tempo: parar de ingerir carne. Passaria a ser semi-vegetariano. Continuaria a comer peixe, ainda arriscando uma incoerência fatal para quem se socorre dos imperativos da consciência para parar de ingerir carne. (Há sempre um argumento a jeito: digo que os peixes são anónimas criaturas, escondidas nas águas profundas, sem possibilidade de nos cruzarmos com eles quando andamos num bucólico passeio pela paisagem rural.)


Não consegui prolongar a agonia da alma. Será que magoo outras partes do meu ser? Haverá violência na decisão de deixar de comer carne? São os instintos amordaçados por levar quase um mês sem deglutir uma peça de carne? É pouco o tempo para respostas definitivas. Por ora, não sinto que esteja a forçar a mim mesmo uma decisão violentadora dos instintos. Ter parado de comer carne não me fez esbugalhar os olhos e ficar de água na boca quando, num restaurante, vejo aterrar no prato da pessoa amesendada ao lado um naco alto e tenro de carne suculenta. É um teste que me imponho propositadamente. E concluo que é apenas um teste, não uma provação.


Da memória resgato uma música dos Smiths: “Meat is murder”. Sem um acesso de exaltação ambientalista que anda de mão dada com o slogan, foi uma espécie de objecção de consciência similar que me levou a tomar a decisão de mudar de hábitos alimentares, erguendo um sinal proibido às carnes extraídas de cadáveres de animais. Há uma diferença importante: os que desfraldam cartazes em manifestações folclóricas, denunciando “meat is murder”, empenham-se na militância por uma causa colectiva. A minha objecção de consciência à ingestão de carne é isso mesmo, uma objecção de consciência, com o travo individualista que ela carrega. Não quero saber de movimentos que pregam uma espécie de moral ambientalista que aponta o caminho necessário de uma alimentação vegetariana. Só me interessam os desafios da minha consciência, sem me alistar em causas adjacentes.


Andei bastante tempo numa luta interior de mentalização para a decisão que acabaria de tomar. Ia adiando, por comodismo, por esquecimento, por conveniências alheias de quem tinha a ingrata tarefa de esculpir os cardápios diários. Tinha momentos em que a objecção de consciência começava a aflorar com intensidade. Lembrava-me de documentários ou notícias que mostravam o terror de um matadouro. Passava nos campos e sentia-me hipócrita ao ver a vaquinha ternurenta a pastar, no seu lento ruminar, sabendo que dias mais tarde podia repousar no meu prato. O sentimento de repulsa ia tomando conta da consciência, ia segredando o imperativo de cessar com o incómodo sentimento de hipocrisia com que terminava um lauto repasto composto por uma viçosa e mal passada peça de carne.


A última estadia nas ilhas britânicas deu-me o motivo para liquidar as hesitações. Um dia, antes de me deitar, passava os olhos pela televisão. Num canal deparei com um documentário sobre um trabalhador de um matadouro. O seu dia-a-dia. Quando estacionou o carro à entrada do matadouro, tive o impulso de desligar a televisão. Senti uma força mais poderosa que me paralisou a mão onde estava o comando. Fui espectador do documentário até ao fim. Estarrecido com os pormenores macabros dos últimos momentos de vida de um bovino, que acabou esquartejado pelo anónimo personagem que envergava um ensanguentado oleado enquanto se entretinha, com uma frieza impressionante, a desmembrar a rês.


Era o passo que me faltava para deixar falar mais alto a objecção de consciência. Na viagem de regresso, na altitude supersónica do avião, não conseguia deixar de parar de pensar na barbárie do matadouro antes de sermos agraciados com repastos que sagram a carne de animais diversos. Ainda fui tomado por um desejo de visitar um matadouro. Até conheço um veterinário que trabalha num. Não seria difícil arranjar, através dele, uma visita para ser testemunha presencial daquilo que me torturou a vista através das imagens da televisão. Não foi necessário. Tinha tomado a decisão. E, no fundo, nem seria difícil fazer vingá-la: em boa verdade, só ingeria dois tipos de carne – porco e vaca.


Os dias que estão para vir dirão se a ausência de carne confirma a teoria que assim a dieta alimentar é mais saudável. Para já, contento-me com o apaziguamento da consciência.

3 comentários:

Anónimo disse...

E não será isto parte da necessidade de descobrires um novo "eu"? Se não é disfarças bem.
Um dia destes anuncias que vais abolir o automóvel da tua vida (acabaram os ralis, o transporte nesse meio poluidor... já viste o que se faz no mundo por causa do petróleo?...)!
Estou a gostar!
Ponte Vasco da Gama

Rui Miguel Ribeiro disse...

Não compreendo. Eu sei que não tenho nada a ver com o que comes ou deixas de comer, mas não podemos aplicar aos animais os mesmos critérios morais que aplicamos aos humanos. Aliás, não me consta que os peixes tenham uma morte simpática e suave e podemo-nos interrogar o que sente uma árvore quando é rasgada por uma motoserra, para vir acabar em nossa casa sob a forma de uma mesa ou de um livro.
Eu, no teu lugar, ia comer um bom rosbife mal passado.

Pinky disse...

Estou nesse dilema: Me cnsidero vegetariana.. mas estou comendo peixe ultimamente, motivo pelo qual o pessoal diz que nao sou vegetariana...
Estou a procura de uma nova classe de humanos... os vegetarianos que comem peixe...

:-)