6.10.06

Coisas que faltam: o direito constitucional à delinquência


Esta terra não será próspera enquanto não for consagrado o direito ao crime. Não será uma terra justa enquanto o crime não puder ser cometido pelos desafortunados de berço sem que sejam perseguidos pela pandilha da polícia e dos tribunais. Só seremos um lugar idílico quando os jovens desocupados puderem entrar nas nossas casas e ensacar televisores, aparelhagens de alta-fidelidade, jóias e outros bens que possam vender ao desbarato para poderem pagar os preços exorbitantes dos estupefacientes que a sociedade bafienta teima em manter na ilegalidade. Só quando as matilhas de jovens tiverem livre acesso aos nossos automóveis e puderem levar auto-rádios e outros haveres negligentemente esquecidos, é que esta terra será um lugar exemplar para os outros repetirem.


Não interessa uma polícia mal preparada, que tem o dedo leve no gatilho, espanca quando está de cabeça quente, faz tábua rasa dos mais elementares direitos do Estado de direito. A polícia, fardada ou à paisana – e como eles se confundem com os delinquentes quando andam à paisana! – é um obstáculo à livre existência dos mandriões que se fartaram de andar na escola e se fizeram à vida.


Essa é a verdadeira universidade, onde se aprende a sobreviver no meio de uma selva perigosa. Os jovens que cedo embarcam na aventura da selva são os verdadeiros doutores da vida. Para quê cansar a cabeça, aturar professores que simulam a sua erudição para nada, se podem vingar por meios mais fáceis? Injusto é que esses meios apanhem com o rótulo da ilegalidade. Inveja, pura inveja: daqueles que se escudam no argumento da ilegalidade para enjaularem os espertos desta vida.


Está fresco o mais recente episódio de como o povo – e o povo tem sempre razão, como se sabe – cauciona o direito de delinquir. Há dias, uma seita de quatro plácidos rapazes teve a sua noite de divertimento interrompida por uma brigada da GNR. O povo o dirá: acaso fossem senhores doutores todos engravatados à saída de um bar de alterne e a brigada da GNR faria respeitosa continência. Ali estavam quatro rapazes que só se queriam divertir, beber uns copos e fumar uns charros, pintar a manta nocturna. O azar foi darem de caras com uns GNR pançudos, que estorvaram o divertimento. Um mal nunca vem só: estes frustrados polícias não sabem o que é tirar partido da vida e, como se isso não bastasse, o único prazer que têm é retirar os prazeres da vida aos que os procuram.


O povo, tão sapiente nos ditados que nos lega, ensina: “quem não deve não teme”. Os estroinas, interpelados pela GNR, não obedeceram e puseram-se em fuga. Perseguidos pelos pançudos agentes, conseguiram percorrer quinze quilómetros antes de serem imobilizados ao tiro. Mostra a incompetência das polícias que nos policiam. E a brutalidade. Só conseguiram parar os delinquentes em fuga depois de terem despejado as munições na traseira do automóvel, atingindo os dois infelizes a quem calhou em sorte ocupar os bancos de trás. Não satisfeitos com a sua inabilidade – só ao fim de quinze quilómetros, e à bruta, terminaram com a fuga de um automóvel de gama baixa – os agentes furiosos espancaram os plácidos jovens. Quem pode confiar em polícias destes?


No dia seguinte, o jovem condutor que mostrou destreza ao volante foi interrogado em tribunal. O povo exultou com a meia vitória: o jovem não vai aguardar julgamento em prisão preventiva. Ainda há juízes sensatos. Este devia ser convidado para um churrasco regado a vinho tinto do Cartaxo e massajado pela música pimba do momento, na companhia do povo andrajoso e do sindicato do crime que acampou à porta do tribunal. Não é cansativo repeti-lo: o povo é soberano e, do púlpito da sua soberania, exala uma sensatez que ninguém deve questionar. O jovem conduzia com álcool a mais, tinha fumado haxixe, não tinha seguro do automóvel, sabe-se lá se era portador de carta de condução, a crer na versão da polícia aquele carro transportava uma arma ilegal, andou em manobrar assassinas pelas ruas da cidade. Mas o povo acha que isso é a coisa mais natural do mundo.


Assim se entende a indignação popular. Não há direito que o jovem Bruno seja julgado “só” por aquele rol de façanhas. Atenção: de façanhas se trata. Só os moralistas de serviço podem, invejosos, denunciar estas façanhas como crimes. O povo soberano reclama, sem o saber, sem o proferir em palavras audíveis: que o direito ao crime seja legalizado. De preferência com o supremo beneplácito da Constituição.

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