24.10.06

Impossível ser monárquico


Mote: o filme de Sofia Coppola, “Marie Antoinette”. Passado na corte de Luís XVI, narra a história do casamento de conveniência entre o futuro rei de França e uma princesa austríaca, Maria Antonieta. Como a rainha, depois de se libertar do espartilho do desconhecido, da solidão e de um marido mais interessado nas caçadas com os amigos que em cumprir os deveres conjugais, se deixa tentar por uma vida faustosa que delapidou os cofres públicos.

Sabemos como terminaram os dias de Luís XVI e Maria Antonieta, quando o povo amotinado e enfurecido irrompeu pelo palácio de Versailles clamando por justiça e pão. A realizadora prefere os aspectos mais mundanos da biografia da rainha. Os interessados pela história pura e dura terão que se contentar com os almaços que exaustivamente dissecam o episódio. E se o filme tem pouco para contar – porque o argumento se arrasta ao longo de duas horas, ficando a impressão o filme se condensava em vinte minutos – resta a originalidade de fazer dançar os convivas do que hoje seria uma rave party ao som de música indie do final da década de oitenta. Isso e o bom gosto de não retratar o sanguinário fim de vida que esperava o casal de soberanos, às mãos de enraivecidos exemplares de um povo tão esfomeado como cansado das injustiças reais com o erário público.

(Há um episódio que retrata a intemporalidade da governação pública. Os ministros e conselheiros de Luís XVI tentam convencer o rei a autorizar a participação do exército francês ao lado dos independentistas nos Estados Unidos. O soberano exprime preocupação com os gastos da aventura bélica. Um dos conselheiros tem a solução fácil: aumentar os impostos. Então como hoje.)

Do filme esgotam-se aqui as palavras. O cuidado da reprodução dos figurinos, o mimetismo dos gestos e das genuflexões da corte aos soberanos, os tratos de polé a que só os privilegiados da realeza tinham acesso – eis a imagem da monarquia deposta com o ataque à Bastilha, a imagem de uma monarquia que perdeu tempo e lugar. Uma monarquia que se modernizou, sinal dos tempos que corriam atrás dos céleres ponteiros do relógio, a luta da monarquia pela sobrevivência. Hoje a monarquia é diferente da de antanho. Não reclama para si privilégios imorais, um luxo que fez vir do nada um marxismo a carpir a fétida luta de classes, a opressão dos oprimidos por um escol que teve a sorte de nascer com o dom da hereditariedade real.

O fausto vertiginoso foi a tumba da monarquia francesa (como noutras paragens, que o definhamento de monarquias entrou em espiral depois da decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta). Mas as monarquias perduram, agora modernizadas, até estendendo o tapete a membros da plebe por quem os príncipes se perderam de amores. Operação de cosmética, diria. As monarquias persistem na sua essência totalitária. Ainda estou para perceber como se explica o critério da hereditariedade como caução para a sucessão dinástica. Os apoiantes da monarquia terão a resposta na ponta da língua: é um direito natural. Não se contesta. Aceita-se como tal. É um argumento que rivaliza com exaltação da fé religiosa: acredita-se sem questionar dogmas. A síntese: somos acéfalas criaturas, formatadas para aceitar as ideias que herdámos vindas do estado natural que tudo explica.

Se os monárquicos quiserem uma ajuda, que afinem a bússola para outro quadrante. Que procurem outra justificação para o direito ao trono do filho varão quando o pai fechar os olhos pela derradeira vez. Quando se agarram à ideia do direito natural como aceitação (e legitimação) da sucessão dinástica, é argumento desprovido de substância. Argumento próprio de quem diz “porque sim”. Não é argumento.

As monarquias de hoje ganharam vergonha e não cometem os exageros da corte de Luís XVI, uma ofensa ao povo que, vistas bem as coisas, foi o que melhor podia ter acontecido aos marxistas madrugadores de então (e aos marxistas que ainda hoje existem): sem causas, perdem a razão de existir. A sua causa é a luta contra as iniquidades dos poderosos. Quando os poderosos desapareceram e eles, salvadores do povo, chegaram ao poder, foi uma monarquia sem rei que entrou nos carris. A máscara que caiu.

Por hoje, as monarquias mantêm mordomias que levitam a realeza a um patamar superior ao da plebe que a aclama endeusadamente. O rei de Espanha continua a caçar ursos pela Europa fora, onde eles existem sem estarem ao abrigo de leis feitas por verduscas personagens que protegem o urso como espécie em risco. O rei de Espanha matou ursos na Roménia. E há notícia que matou um urso embriagado na distante Rússia, quando foi visita de Vladimir Putin. Não os pode caçar nos montes perdidos das Astúrias, onde os escassos ursos que resistem são espécies protegidas. Pega nas armas e vai em busca da caça grossa em países submissos que lhe cortejam a extravagância.

A realeza esforça-se em mostrar a face modernaça. Por debaixo da (fina) camada de verniz da modernidade, a mesma monarquia de outrora. Os mesmos privilégios absurdos, a mesma diferença inexplicável entre os iluminados pelo natural direito de possuir o trono, e o resto – uma plebe que deve admiração aos membros da casa real. São religiosidades escondidas que asfixiam a autonomia do ser. Nas religiões, como nas monarquias.

3 comentários:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Peço licença para discordar, mas eu sou. Admito que não é intrinsecamente democrática, mas a partir do momento em que é consensual e aceite pelos cidadãos, passa a ser legítima. E não me parece que os Britânicos, Holandeses, Noruegueses, Suecos, Dinamarqueses sejam menos felizes do que os Portugueses, os Franceses, os Gregos, os Italianos ou os Romenos.
para uma opinião mais detalhada, Permito-me sugerir a leitura do 5º e 7º comment do meu post "Bandeiras do Reino de Portugal" de 05/10/06: http://tempos-interessantes.blogspot.com/2006/10/bandeiras-do-reino-de-portugal.html#c116178043461201804

PVM disse...

Como é sabido, neste blog não é preciso pedir licença para discordar!
Não tenho nada contra os monárquicos. Têm o direito a sê-lo. Só considero a monarquia incompatível com uma visão liberal do mundo.
E não percebo o que faz um ilustre militante de um partido jacobino (o PSD) entre os admiradores da monarquia. Não há aqui uma contradição insanável?
Para terminar: quando invocas a “consensualidade” na aceitação do monarca, estás a ir ao encontro do argumento que, para mim, é incompreensível: a legitimação via direito natural. Já agora: como se prova esta consensualidade? Não será mais uma acomodação de costumes, a culpa de um passado sedimentado?
PVM

Rui Miguel Ribeiro disse...

Bem, a acomodação é uma forma de consenso, nem que não seja passivo, embora as sondagens no Reino Unido (já sei que valem o que valem) apontem para uma grande maioria a apoiar a monarquia.
Quanto ao PSD, estás redondamente enganado: não é um partido jacobino e eu, seguramente, não sou. Posso, aliás, dizer-te que não há assim tão poucos monárquicos no PSD como possas pensar!