30.11.06

Bluff ourselves


Somos o que queremos? Ou apenas um fingimento daquilo que julgamos ser? Andamos pela vida como actores de nós mesmos. Quase nunca ser dar conta do logro. Dir-se-ia: construímos um mundo dentro do mundo em que vivemos. Um lugar idílico, mas só uma imagem distorcida do que somos.

Passamos pela vida a arregaçar as mangas para as tarefas que se impõem. Quase sempre partimos derrotados. Faz parte do fingimento: o comodismo subestima as capacidades. Quando se depara a inevitabilidade da missão, operamos o pino. E se tão depressa o derrotismo se apoderou, tão depressa vem substituído por uma auto-magnificência que transporta em si a aura dos predestinados. Em cada um de nós há um herói. Nem que seja um herói que se esgota nas fronteiras do indivíduo.

Há muitas coisas que dizemos sem o querer dizer. Muitas coisas que fazemos e que transportam o sabor amargo do arrependimento. Piora o diagnóstico quando nos recusamos a olhar para trás e encontrar os sítios do arrependimento. Quando assim ofuscamos a memória, seguimos em frente orgulhosos do que apenas fingimos ser. Na recusa de discernir o simulacro que nos olha do outro lado do espelho. Jogadores exímios na arte do disfarce. Como se a vida tivesse duas linhas paralelas: aquela que trilhamos com a ostentação do que julgamos ser, nem que seja para apaziguamento da consciência; e a linha obscura do que não deixamos de ser, o lado menos belo que escondemos dos outros, até de nós mesmos.

É o que somos, jogadores sem cansaço do bluff. E não, o bluff não é dirigido aos outros. O destinatário e o remetente do bluff são uma só pessoa. Adormecemos a sonhar com o que julgamos ser. Acordamos convencidos que ainda somos o que o sonho arrepiou. Acordados, desbravamos cada minuto na dissimulação do lado ocultado que é a nossa essência. Nuns casos engendramos a sublime arte do auto-fingimento sem perceber que o fazemos. Noutros casos a simulação é intencionada, a única maneira de haver convencimento de que a cara que espreita do lado de lá do espelho não causa náuseas.

Será um mundo fictício, cristalizado dentro do mundo real de que nem chegamos a dar conta que existe. A perplexidade aumenta se houver tempo para contemplar o que, por método, nos recusamos a fazer: perceber o juízo que os outros fazem de nós. Será a explicação para a osmose a que nos entregamos que reprime a espontaneidade do ser, para comprazimento dos outros que nos rodeiam. Apenas para não sermos arquivados no escuro quarto do esquecimento. Deixamos de ser essência pelos imperativos da socialização forçada.

O que somos é a imagem dos outros. Eis a suprema arte do fingimento a que nos entregamos. A ditadura do colectivo asfixia a espontaneidade do ser. Não interessa o que cada um seja na sua espontaneidade – bondade ou perversidade, generosidade ou egoísta ensimesmamento, o que quer que seja. Lá, de onde falam mais alto os imperativos categóricos, chove a impiedosa água benta que franqueia as portas do colectivo, uma bênção maior que evita o degredo de si. Nem que por aí haja transformação da essência individual. Ou, apenas, a arte de sermos outros diferentes do que trazemos à nascença.

É o primeiro passo para um percurso pejado de equívocos. Um efeito dominó, devastador. Nas sucessivas encruzilhadas, metemos por onde é mais cómodo, pelo caminho mais fácil. Por onde a turba pacificamente caminha. Tementes da dissidência, não vá tombar o ónus da ovelha ranhosa, logo apontada a dedo e isolada do ordeiro rebanho. De cada vez que metemos pelo lado errado da encruzilhada, cada passo vem inquinado com o travo ácido do fingimento. Até que chegue a próxima encruzilhada, já envenenada porque nunca a ela chegaríamos se na anterior o caminho escolhido tivesse sido outro.

O tempo que se acumula é o espelho do rol de equívocos que se sedimentam. A certa altura, nem sequer discernimento para julgar o que é equívoco. Então, já somos – e só – um simulacro de nós mesmos.

29.11.06

A sedução do autoritarismo


Descontando o incómodo causado no PSD (que só na sua ingenuidade podia esperar que Cavaco fosse oposição ao governo) e a divertida bazófia do CDS (que sossegou Cavaco prometendo-lhe “cooperação estratégica”), o noivado entre o presidente da república e o primeiro-ministro era o desfecho esperado. São almas gémeas: no feitio, na forma como encaram a governação (o pragmatismo em vez da ideologia). Até nas afinidades ideológicas, pois Cavaco é a ala esquerda do PSD e Sócrates a ala direita do PS, num encontro a meio caminho entre quem vem de quadrantes teoricamente diferentes.

Mais que a análise política e o tacticismo do xadrez político que tem entretido os comentadores, interessa-me perceber o coup de foudre que deitou na mesma cama Cavaco e Sócrates. E, sobretudo, as razões que filiam o povo na atracção pelos políticos que empregam o pragmatismo e usam o punho de ferro na governação.

Que Cavaco foi um primeiro-ministro autoritário, os anais da História não o desmentem. Serviu-se de duas maiorias absolutas para passear a sua sebastiânica aura durante dez longos anos de governação. Desse tempo resgatam-se as memórias de governação autista, sobretudo no segundo mandato. De como Cavaco se exasperava com as “forças de bloqueio” que lhe mordiam os calcanhares e incomodavam a marcha triunfante que julgava fácil pelo beneplácito da maioria absoluta.

Sócrates rivaliza em autoritarismo. Também caucionado por uma maioria absoluta que lhe caiu no regaço, dá mostras de um autoritarismo ao nível do exibido por Cavaco. Pelo andar da carruagem, suspeito que vai conseguir vencer o campeonato do autoritarismo. Só vai a meio do primeiro mandato e já exibe mais arrogância do que a ostentada por Cavaco durante o seu segundo mandato. Deleito-me com a arrogância e o desplante com que os adversários são tratados por Sócrates. É um largo sorriso que esboço quando o vejo, irado, a replicar aos que dele discordam. Intuo nele o propósito de terminar uma discussão quando ela lhe corre mal, ao jeito de quem diz, sem proferir estas palavras, “e não se fala mais disso porque, afinal, quem manda sou eu”.

“Quem manda sou eu” – o argumento derradeiro que os detentores do poder usam quando se esgota a razão e são derrotados pelos adversários. Cavaco reagia assim, o que o fazia esconder-se dos debates com os adversários (até porque Guterres era mestre na retórica). Sócrates é um émulo de Cavaco. Brilha quando não tem adversários que lhe façam frente. As encenações cirurgicamente arquitectadas, quando o governo anuncia mais uma obra ou medida com pompa e circunstância, nunca têm contraditório da comunicação social. Ela está necessariamente domesticada para não ofuscar o brilho autoritário do primeiro-ministro.

Por entre este cardápio de diletantismo da governação, o povo sanciona. Um povo amestrado, que baixa a cabeça quando os timoneiros conduzem a nau com mão de ferro. Quarenta e oito anos de ditadura salazarista deixaram marcas duradouras no tecido sociológico que somos. Um povo que não se consegue desprender da menoridade, sempre ansioso por uma tutela exercida por alguém que saiba de onde vem e para onde vai (ou, pelo menos, nos tente convencer que está seguro do rumo a seguir…). Quando podíamos ter a bússola nas mãos, entregamo-la aos timoneiros que prometem mão de ferro a dirigir a nau. Demitimo-nos da responsabilidade individual, tementes da incapacidade para levarmos, à nossa maneira, a nau pelo trajecto certo. Embevecidos pelos capitães que sabem sempre de onde sopram os ventos certeiros, aplaudimos os aprendizes de tiranetes, aqueles que só não almejam a tirania porque juraram fidelidade à democracia pelo menos formal em que foram escolhidos.

Um povo assim é um povo eternamente menor. Faz-me lembrar alguém que atingiu a idade adulta, acabado de sair da adolescência, e que contudo continua dependente da figura paternal. Sem saber que terrenos pisar, receoso de assumir a responsabilidade pelos seus actos, perpetua a tutela paternal. Nesta demissão da responsabilidade individual, não admira que continuemos a contemplar o Estado como se fosse uma vaca sagrada, o saco onde estão armazenados todos os milagres que solucionam os problemas em que tropeçamos. Os políticos que cultivam esta imagem do Estado paternal que afaga as dúvidas existenciais dos súbditos têm a passadeira estendida para o sucesso.

28.11.06

O destempero dos lugares-comuns


Nunca o ouvi dizer um lugar comum, no amor ou na política, algo que já se tivesse ouvido”, José Manuel dos Santos sobre Mário de Cesariny, Público, 27.11.06

É o que distingue os génios dos simples mortais, daqueles que fazem carreira enquistados no génio alheio – e por isso se julgam génios, sem perceberem a dimensão que os separa dos génios que parasitam. Repetem palavras. Que repetem expressões que estamos cansados de ouvir. Fornecem o gesso que molda o linguajar nacional que se mete pelos ouvidos, entra bem fundo pelos alvéolos que separam o aparelho auditivo das meninges que processam o inteligível e descartam o supérfluo. Teimosos, os lugares-comuns que enxameiam a existência depressa inquinam as meninges, corrompem as células inteligentes que se habituam a pouco. Já incapazes de erradicar o lugar-comum. Quando se alteia no papel de lugar-comum, estamos anestesiados. Por muita luta ao lugar-comum, é força irremissível.

Os lugares-comuns distanciam-nos da genialidade. Eles entram, céleres, pela codificação da linguagem que imperou nos costumes, a fronteira necessária para a socialização. Trocamos lugares-comuns a propósito de tudo. Usamos frases feitas que importamos da boca dos outros, que por sua vez as foram pescar a dizeres alheios. No promontório da desonestidade intelectual, aprendizes que pavoneiam douta sabedoria poluem na sua boca palavras sábias furtadas aos outros.
Os lugares-comuns enfadonham a existência. Um cortejo de lacraus que rabeiam e gesticulam o pescoço, como se fossem mamíferos a sobreviver à tona da água enquanto um turbilhão vindo do fundo suga as pernas para o arenoso fundo. Os lugares-comuns andam presos às costas destes parasitas que ostentam garbo e lustrosas conquistas. Não percebem os tormentos que os penetram como balas lancinantes: a pequenez e o torrente de lugares-comuns, cavilha e parafuso da mesma engrenagem. A genialidade ancora-se na originalidade. Não pela vertente da criatividade espúria, que não peca pela trivialidade mas é incapaz de romper com o banal. Medíocres somos todos, criativos alguns, génios quase nenhuns.

Todos os dias, no minuto desprevenido, o alçapão do lugar-comum. Uma frase feita a preceito, a sublime síntese da discussão. Sabemos que a antecipação no lugar-comum faz elevar a auto-estima e a cultiva admiração dos outros pelo brilho jactante. E é o engodo do adágio popular, mesmo quando o arrebatado elitismo desdenha do povo ignaro que alimenta o imaginário colectivo com ditados insignificantes. Uma maleita irreprimível. Tarântula negra aninhada no cérebro, dele se apoderou, mudou-o para a vegetativa e maquinal fonte de repetição do que escutamos e lemos.

Quem explica o paradoxo? Se não lemos, se não bebemos as palavras dos outros, incultos e insociáveis. Se entregamos o tempo à leitura dos outros, se há a embriaguez pelas palavras mágicas que os grandes escritores legam ao porvir, incensa-se a lucidez que nos deixaria às portas da genialidade. Irrompa da superfície em direcção do céu, ou faça o voo rasante em direcção ao solo, sempre o mesmo efeito: a acomodação ao que já está, a insaciável sede de criar sem conseguir romper com o estabelecido.

Às vezes pergunto-me: esta viciante doença não convoca o isolamento do espírito? Não ler, não ouvir palavras ecoadas das outras bocas, não conhecer o que vai pelo mundo, encerrar os sentidos às artes. Regressar a um estado de pureza virginal, em que tudo fosse começado de uma folha imaculadamente branca. Só assim fugir à ditadura do lugar-comum, aos gritos bezerros da voz popular. Inventar uma gramática só para mim e desafiar os outros, pela vertigem do desconhecido, a decifrá-la. Mas tudo o que tenho é uma folha traiçoeiramente alva: gritos que cospem bem alto as palavras que povoam a minha cabeça, as palavras lidas, as palavras escutadas, as palavras que dançam livres ao vento. A folha já esteve preenchida na sua alvura. Agora é um depósito de sombras que mancham a alvura da folha branca, o pressentido uivar da alcateia que urra em uníssono. A criação, essa, gasta pelos lugares-comuns que não há mister de derrubar.

Não há narcisismo imberbe. Nem reivindicação de genialidade. Muito menos sede de reconhecimento público. Basta a inquietação dos lugares-comuns que abastardam a linguagem. Gostaria de ser como o poeta, a quem “nunca se lhe ouvia dizer algo que já tivesse sido dito”. Simplesmente o zénite na redescoberta da palavra, na revisitação dos seus sentidos múltiplos, senão mesmo na reinvenção dos vocábulos. Sem convenções, nem as amarras que manietam o rebanho ordeiro que segue o caminho marcado.

27.11.06

O Big Brother chegou e vem com a capa cor-de-rosa do socialismo


Perdoe-se-me a insistência: estes socialistas de pacotilha são uma reincarnação dos execráveis totalitarismos herdados do passado. Passam incólumes, diante do manto de legitimidade democrática que chamam a si. Confundem-na com a arrogância com que governam, acobertados pela maioria absoluta que lhes calhou em sorte. O problema é esse: estão longe da maioridade democrática. Não distinguem a fronteira entre o que uma maioria absoluta cauciona e a governação autoritária.

Da retórica à prática vai uma longa distância. Querem que nos contentemos com os sinais enviados através da propaganda zelosamente construída. Que nos alimentemos das declarações que coloram este governo com uma aura de sebastianismo redentor. E querem o aplauso, demorado e sonoro, a glorificação dos dirigentes que nasceram para timoneiros de uma nau desesperançada. Mas, às escuras, vão lançando a rede para as práticas do passado vergonhoso que tanto criticam.

Que os governos, uns atrás dos outros, qualquer que seja a cor política, manobram a comunicação social, não é novidade. A diferença está no grau de manipulação e na forma como ela é feita. O simples facto de termos políticos no poder deitando a mão à comunicação social é sintomático da mediocridade que campeia. Há que domesticar a imprensa para gerir o calendário eleitoral e encontrar veículos por excelência da propaganda governamental. E para conduzir a amansada turba pelos valores certos. Um paternalismo escusado. Num país que já tivesse atingido a maioridade cívica – e ela começa por quem deve dar o exemplo: os governantes – a independência da comunicação social não seria beliscada pela cumplicidade entre quem governa e a imprensa. Quando o recato não abunda, é sinal de que os governantes não confiam nas suas capacidades. E que, através da incestuosa relação com a imprensa, perpetuam o engodo que é governar.

Vem este longo intróito a propósito de uma decisão que raia o impensável. O governo, pela voz do perigoso Augusto Santos Silva, reforçou os poderes da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) sobre os canais que emitem televisão: têm que enviar à ERC, com quarenta e oito horas de antecedência, a programação; e a ERC pode interromper a emissão televisiva sem aviso prévio. Sempre que o burocrata de serviço considerar que um programa ultrapassa o limite do admissível – e o que é o admissível, sem critérios objectivos?

Nem me interessa discutir a arbitrariedade da medida. Tanto me faz que ela tenha ou não critérios objectivos. A subjectividade apenas acentua o espezinhar de uma sociedade que se diz reger pela liberdade de expressão. Ainda que houvesse critérios objectivos, a minha oposição manter-se-ia. No fundo, o que temos aqui é censura. Pura e dura. O novo lápis azul, nas mãos de funcionários anónimos que, de lupa vigilante sobre os canais da televisão, zelam pelos bons costumes. Nós, os restantes, só temos que agradecer o zelo colocado na função. Estes senhores e senhoras terão que consumir toneladas de telelixo para não sermos bombardeados com indignidades ofensivas da moral e dos bons costumes. Resta saber se algum dia um programa de debate pode ser interrompido porque alguém, exercendo liberdade de opinião, teceu opiniões pouco simpáticas sobre um governante. A porta fica aberta…


Pela parte que me toca, dispenso a lupa vigilante. Prefiro ser inundado de telelixo e que as televisões continuem a nivelar a qualidade por baixo. Prefiro ter o direito de manipular o comando da televisão e mudar de canal, quando um programa qualquer provocar o vómito. Prefiro tudo isto a censores que pairam sobre nós, com a superioridade moral e estética que ninguém lhes encomendou. Prefiro a má qualidade das televisões, sobretudo se tiver à disposição o supremo cutelo de me recusar a ver determinados programas. E sinto-me incomodado pelos pequenos passos que limitam as liberdades.

Esta censura insólita rivaliza com a censura do Estado Novo. Com um perigo adicional: o estatuto de menoridade intelectual passado ao cidadão comum. Ao dar tanto poder à ERC, uma mensagem nas entrelinhas: as pessoas não são dotadas ao ponto de mudarem de canal quando a qualidade bater no fundo e os costumes forem violentados. Os mesmos que desconfiam das capacidades da populaça para discernir o que é telelixo não percebem que foram eleitos por essa populaça que agora achincalham. Uns ingratos, é o que são estes socialistas. E, continuo a dizê-lo, perigosos, muito perigosos.

24.11.06

Polícias embuçados: efeitos de uma democracia paradoxal


Há dias alguém manifestava incómodo por ter visto uma conferência de imprensa protagonizada por três polícias encapuzados. Já não me recordo quem estava indignado com a pretensa falta de coragem dos agentes da autoridade que se decidiram esconder detrás de um hipócrita anonimato.

Olhando ao passado, não vejo como se pode acusar os polícias. Os patrocinadores dos consensos, da propalada "normalidade democrática", do centrão político responsável pelo adormecimento social em que vivemos mergulhados - esses teimam em negar aos polícias e militares o acesso à sindicalização. Dirão: como forças da autoridade não podem ter o direito de manifestação sindical, sob pena de hipotecar a segurança do país. Este argumento não me convence. Invocar a segurança nacional é pretexto que sanciona uma discriminação. Se aos demais é garantido o direito de sindicalização, e se entre os demais há amiúde exibições de irresponsável grevismo que paralisam o país, menos se entende porque polícias e militares são remetidos para a condição de cidadãos de segunda. Ou todos têm o direito à greve, ou a ninguém deve este direito ser garantido. Abrir excepções é indigno de uma democracia que se preze.

Volto à célebre e insólita conferência de imprensa dada por três polícias envergando negros capuzes. Hipocrisia? Só se tivermos memória curta. Só se não recordarmos a perseguição deste formidável governo a alguns dirigentes de um movimento proto-sindical da polícia. O episódio merece ser lembrado. Para se entender o receio exibido pelos polícias, para não terem que suportar as retaliações exercidas no passado. E para provar como este governo é só imagem e nada mais do que imagem, estando a sua verdadeira essência escondida atrás do biombo imagético - intolerância e arrogância indisfarçáveis.

Há meses soube-se que dois dirigentes da associação sindical da PSP foram colocados na prateleira, pela via da reforma compulsiva. De acordo com as notícias, não lhes foram dadas justificações para a súbita reforma que não tinham solicitado. As pontas do novelo começaram-se a juntar. Meses antes, esses dirigentes tinham cometido o imperdoável pecado de tecer afirmações jocosas para o senhor primeiro-ministro e o senhor ministro da administração interna. Um deles teve a imprudência de usar o humor: fez um trocadilho qualquer com as férias do senhor primeiro-ministro no Quénia.

Pagaram a ousadia e o cinismo com a reforma compulsiva. Porque o respeitinho é bonito, e com suas excelências não se pode bulir. Por mais arejada que seja a imagem que nos pespegam a toda a hora - um primeiro-ministro jovem, bem disposto, fresco, muito fresco, uma pedrada no charco do cinzentismo político - com coisas sérias não se brinca. Há que exercer a autoridade de quem manda, porque a autoridade é incompatível com atropelos que a maculem, sobretudo se esses atropelos partirem de quem tem responsabilidade na manutenção da autoridade pública. Estala o verniz da bonomia, das ideias arejadas, da frescura juvenil soprada com insistência desde que este governo assentou no poder. Estalado o verniz, fica à mostra a verdadeira essência de quem nos governa. Gente rancorosa, intolerante, autoritária, de uma arrogância cansativa. Não sei se exagero se disser que são nazis disfarçados, mas é o que sinto. Mestres na vingança torpe.

Pode-se contestar os polícias encapuzados pelo espectáculo gratuito que ofereceram. Pode-se até argumentar que havia ali algum exagero cénico, sabendo que a populaça gosta de coisas esquisitas - e ver uma conferência de imprensa dada por três agentes da autoridade embuçados seria tudo menos normal. Mas, lá diz o povo, "quem anda à chuva molha-se". Chamuscados pela experiência do passado, sabedores do ausente poder de encaixe da gentinha pequenina que nos governa, percebo o folclore dos polícias embuçados e tolero os capuzes.

Sinal de que somos uma democracia constrangida. Com uma lição para o futuro: não se pode brincar com a imagem dos senhores ministros, crime de lesa-majestade. Para azar dos polícias, estavam mesmo à mão para o exercício do poder hierárquico. Não sei o que será mais covarde: se três polícias de capuz numa conferência de imprensa, se as ordens que desceram pelos canais hierárquicos destinando a reforma compulsiva aos dirigentes sindicais que ousaram exercer cinismo sobre governantes. Apenas uma democracia de costumes, uma fachada. E mais: governantes à imagem do povo, um povo sisudo, muito sério, que põe ameaçadoras carrancas quando alguém desafia a normalidade e parodia coisas sérias.

23.11.06

Os risos enlouquecidos

A brisa tépida e húmida perfuma o dia com uma sensação desusada. O dia pesado e soturno transformou as pessoas em redor. Andam as faces esguias moldadas por um sorriso quase imperceptível, mas ainda assim nítido. Tudo parece tão estranho, porque nos dias buliçosos a cidade se veste, carrancuda, com um ar tristonho. Naquele dia, distante o sol bem atrás das plúmbeas nuvens, as pessoas paradoxalmente trajavam um sorriso. Ao mesmo tempo perturbante, na surpreendente fachada da multidão que ia e vinha levemente pela rua fora.

Tu também fazias parte dos transeuntes que testemunhavam esse sentimento estranho. À medida que os minutos avançavam, os sorrisos esboçavam-se mais largos. Os lábios estendiam-se, rasgavam as bochechas; as pessoas não conseguiam reprimir um riso sonoro. A gargalhada colectiva. Tu eras a única pessoa que assistia anestesiada ao espectáculo sorumbático. Teria que haver motivos para a contagiante gargalhada que ecoava pelas avenidas e que vinha repousar no alcantilado dos ecos mais sombrios.

As pessoas riam alto e não detinham a marcha. Abordavas as pessoas com interrogações. Que ficavam sem resposta. Ou melhor, que tinham num riso libertado com uma gargalhada enfática a reacção dos interpelados. Até os polícias, tão circunspectos e diligentemente militares na postura, não conseguiam reprimir a sonora gargalhada. Dir-se-ia, um festim de alegria contagiara a cidade. Onde antes havia os tons acinzentados que entristeciam as faces fechadas, agora apenas pétalas perfumadas com os risos loucos de quem andava na rua.

Até os cães vadios e as pombas esboçavam os seus risos. Ninguém parava para perceber porque estava a rir. Todos seguiam o seu caminho. Todos percebiam que aquele riso espontâneo e incontrolável era um manancial de bem-estar; para quê estancá-lo? Tu eras o único sisudo. Inquietado com a orgia de risos que te cercava, sem resposta para a sinfonia de gargalhadas que gritava pela cidade. Sentias-te invisível. As pessoas seguiam o seu caminho sem sequer abrandarem quando as interrogavas. Porventura por seres o único que não havia sido contagiado pela febril gargalhada colectiva, pairavas incólume e invisível.

De repente, uma aragem mais fresca soprou de algures. O céu escureceu e de seguida limpou-se de nuvens com uma rapidez inusitada. O sol parecia brilhar como nunca. As folhas, que instantes antes esvoaçavam anunciando a brisa súbita, emudeceram. Tudo se silenciou. Não ouvias o ruído dos automóveis, nem o barulho dos passos apressados que martelavam a calçada, ou os martelos pneumáticos das constantes obras que esventram as ruas. Apenas um silêncio demorado. Já nem o barulho da entontecida gargalhada colectiva. Até as pessoas se tinham evaporado. Nem sinal dos automóveis que àquela hora enxameiam as avenidas e as ruas. Só tu, entregue a ti mesmo, mergulhado numa profunda viagem solitária.

Em segundos, anos a fio passaram à tua frente, como se fitasses uma tela onde se reproduzia o filme da tua vida. Parecia uma retrospectiva necessária para a ordenação dos sentidos. Por vezes, percebias que certos episódios eram repetidos, por breves instantes, numa enfática mensagem: os sinais do passado eram um roteiro. Estavas entregue a ti próprio, sozinho num mundo que parecia ter parado, ou desaparecido, à tua volta. Já não os sorrisos ensandecidos que te perturbavam. Apenas um silêncio gélido, mortiço, que trazia o sabor da solidão.

Naqueles momentos ficaste sem perceber o que sentir: dividido entre a voragem dos risos incompreensíveis que te cercavam e a ausência de tudo em que estavas agora situado, nem sabias qual dos cenários reter. Temias que a normalidade, a rotina diária que tanto te exaspera, não regressasse. Nem os risos enlouquecidos, nem a voragem da solidão. Apenas o regresso ao tempo habitual, com as faces imperturbáveis aos mendigos andrajosos que se acotovelam nas escadas do metro, a insensibilidade à velhinha que tombou ao descer as escadas, as pessoas ausentes mergulhadas no livro enquanto o metro galga o percurso prometido. Naqueles instantes, o tempo tinha parado. Os risos enlouquecidos eram o prenúncio da suspensão do tempo.
Por única vez na vida, a contagem decrescente tinha sido parada. Era o tempo pedido para o reposicionamento que alguém exigiu para ti – ou que tu mesmo, um eu escondido que manobra a tua consciência, agendou. A assombrosa solidão fez-te ansiar pelas faces rosadas que não se cansavam de tanto rir sem saber porquê. Como, aliás, os minutos em que havias sido sitiado pelo ensandecido riso colectivo te fizeram ansiar pela rotineira vidinha que todos levam. Somos eternamente insatisfeitos.

22.11.06

Da valentia


A marcha inelutável dos varões instruídos na valentia. Remam sempre em frente. Não interessa se encontram águas mansas ou promontórios impossíveis de derrotar. A bravura flúi no sangue. Ostentam-na com garbo. E zurzem dos fracos de espírito que se acovardam quando a primeira contrariedade espreita. Há homens de primeira linhagem, os corajosos que entregam o peito às balas se preciso for. E os outros, que parecem cães amedrontados com a cauda entre as pernas, bulindo piedosamente por um caminho sem espinhos.

Os valentes espíritos anseiam por bravata. As mais das vezes, são australianas almas que se perdem de amores por uma pancadaria caótica. Batem primeiro, porque raras vezes conseguem articular duas frases que sejam inteligíveis. Não será mistério a relação causal: os bravos do pelotão exibem escassas faculdades mentais. A valentia, sinal da inteligência ausente.

Haverá graduações diferentes de coragem. Há os valentes da retórica, que perfumam a verborreia com feitos que não passam do domínio da fértil imaginação. Dão corpo à expressão “cão que ladra não morde”. Quando são convocados a mostrar a sua bravura, afinam a agulha para outro quadrante – que se faz tarde para salvar a pele. Há corajosos com orgulhosa folha de registos. Dobram a valentia: não só reivindicam a mentalidade corajosa que os distingue dos demais, como fazem garbo em exibi-la para que as suas palavras não sejam desmentidas pelos actos. A verticalidade da palavra anda de braço dado com a bravura militante. E há os ensandecidos que mergulham na vertigem de uma coragem suicida. Desprendem-se da sua individualidade, possuídos pela convicção que são soldados de causas.

A audácia que se exibe é terreno que se alija de racionalidade. Apenas uma ostentação vazia. Acreditam os valentes que são primeiros entre iguais, o último reduto onde se resguardam os valores de que se julgam penhores. A sua bravura encerra a chave dos mistérios que cimentam toda uma idiossincrasia. No seu íntimo, reclamam reconhecimento pelo feito de serem os primeiros a dar o peito às balas quando chega o momento de o fazer. A afoiteza de espírito cultiva a humildade. Só querem ser reconhecidos por serem fautores de uma coragem que não está ao alcance do comum dos mortais. Não anseiam comendas nem sinecuras que dariam uma coloração vetusta à valentia de que se orgulham.

Eu, um fraco de espírito, confesso aversão a esta bravura imponderada. Tenho medo, de muitas coisas. Acovardo-me se sentir que a morte é o elevado preço a pagar pela exibição da bravura. Talvez os militantes da coragem espúria nem cheguem a perceber que a exibição da valentia é o acto derradeiro da sua vida, quando oferecem o peito às balas em nome de causas de que são apenas uma gota num imenso oceano. Não discernem que poucos dariam o peito às balas pelos demais. Há nesta coragem enlouquecida um disparatado frémito de subserviência do eu perante o todo. Sem perceberem, os que se enlevam pela loucura derradeira da bravura que lhes ceifa a vida, que os demais hão-de ser as testemunhas fatais do acto derradeiro de valentia, numa homenagem que se esgota num instante. Restará, apenas, o vazio da morte como campo final onde repousa a bravura. Inconsequente bravura.

Tenho medo. Dos répteis, dos loucos que erram pelo mundo dispostos a rituais sacrificiais que derrotam a paz de espírito, dos alçapões que se escondem nas paisagens miríficas atrás de mais uma encumeada. E não tenho vergonha em sentir o medo a descer pelas veias, a apoderar-se pela angústia. Este medo é a medida da sensatez, uma imagem da inteligência suprema que pode tomar conta da pessoa. Quantas vezes as loas tecidas a corajosos que deixaram a vida por entrega aos demais são pedras removidas no caminho que todos percorremos, sem que o esquecimento dos valentes não venha falar mais alto, logo extintas as homenagens instantâneas nas lágrimas hipócritas vertidas no velório?

Há descanso, auto-comprazimento, nos corajosos que pagaram com a vida a ousadia da bravura?

21.11.06

A procriação médica assistida segunda a hierarquia eclesiástica: “adultério consentido”

Há alturas em que o insólito remete para a famosa frase de um antigo árbitro de futebol: “desde que vi um porco andar de bicicleta, acredito que tudo seja possível”, terá dito. Eu, que sou ingénuo e tenho imensas dificuldades hermenêuticas, ainda hoje não percebi se ele queria dizer o que disse ou se falava através de uma metáfora. Descontando esses detalhes, que nem vêm ao caso, interessa reter a imagem do porco a dar ao pedal sentado no velocípede. Do domínio da bizarria que preenche os sonhos mais estranhos que possamos ter.

A hierarquia eclesiástica insiste em dar provas vivas do mundo diferente em que vive. Ainda não perceberem que de cada vez que se soltam das ameias (mentais) onde vivem aprisionados e sentenciam sobre temas mundanos, a asneira flutua. Na semana passada, os senhores bispos estiveram encerrados em concílio. Passaram em revista os assuntos da vida corrente, sobretudo onde a moral e os costumes, assim o pensam, obrigam a uma zelosa intervenção em sua defesa. Estes ouvidos que têm um sentido auditivo de primeira água escutaram as palavras límpidas do bispo porta-voz: “a procriação médica assistida é adultério consentido”.

Talvez a reacção de quem me lê seja a mesma que eu tive ao escutar as beatíficas palavras: boquiaberto, ao que se seguiu um cínico sorriso. Convém demorar um pouco nesta sentença da hierarquia católica. Primeiro, a expressão “adultério consentido”. A menos que se confirmem as suspeitas que alguns curas de província são mestres na arte de desfazer famílias mercê do adultério a que conduzem certas senhoras do rebanho paroquial, não alcanço o que percebe a igreja de adultério. A remissão ao celibato e à castidade faz com que este seja um assunto que não é do domínio prático dos homens que outrora trajavam a sotaina. Ensina a ciência que só podemos alvitrar da teoria quando a podemos testar na prática. De contrário, apenas especulação acientífica. É especialidade da igreja para quem o relógio parou no tempo.

Segunda objecção: se é adultério não pode ser consentido; se é consentido, não é adultério (por muito que desagrade à igreja). A palavra carrega a conotação social negativa de quem engana a pessoa (supostamente) amada, deixando-se resvalar para as delícias da poligamia. A hierarquia eclesiástica devia fazer uma peregrinação pelo dicionário antes de espezinhar a gramática. Ao abrir o dicionário na palavra adultério, aparece o seguinte (na Infopedia, só para assinantes): “facto de uma pessoa casada ter voluntariamente relações sexuais com uma terceira pessoa; violação do dever recíproco de fidelidade”. Falar em “adultério consentido” é como imaginar que podemos descer para cima. Por mais imperativos de consciência ditados pelo totalitarismo católico, não há volta a dar ao dicionário. A menos que queriam reproduzir alguns tiques da odiosa inquisição e refaçam o significado da palavra “adultério”. Só para a igreja ficar dona e senhora da razão.

Desconto a mania da igreja invadir a consciência dos fiéis e não fiéis. Que haja alguns fiéis que aceitem pacificamente a intrusão, é um direito que lhes assiste. Mas seguem-se algumas interrogações pertinentes: ocorre aos senhores bispos que alguns católicos encontraram na procriação médica assistida o único meio de alcançar a paternidade e a maternidade? Um filho não é a prova maior de amor? Não é o amor que a igreja prega? Ou um filho gerado no “pecado” do “adultério consentido” deixa de ser repositório do amor filial? Não seria novidade ver a igreja a caucionar discriminações entre filhos nascidos dentro do casamento e fora do casamento.

O que tem a igreja a dizer se duas pessoas casadas mantêm relações paralelas, com ou sem conhecimento recíproco? Pode a igreja invadir a esfera pessoal e decretar comportamentos, sancionar os que desalinham da dogmática comportamental? Pode a moralidade da igreja substituir-se à liberdade individual, ainda que desta resultem comportamentos que chocam a consciência cristã, algo que pertença ao domínio da promiscuidade?

Em rigor, estas interrogações nem sequer se levantam a propósito da procriação médica assistida. Considerá-la “adultério consentido” é fruto de uma imaginação doentia, de uma perversão de espírito de alguém que vê o mundo detrás de uma lente muito desfocada. Esta é a igreja que ergue o dedo acusador contra as condutas pessoais dissidentes da ortodoxia fabricada nos concílios bispais. A mesma igreja que condena a masturbação masculina, decerto: é seiva de vida desaproveitada num acto egoísta, na glorificação do prazer egoísta que contraria o espartilho da fé cristã.
Agora percebo que seitas fundamentalistas, como a Opus Dei, aconselhem os seguidores à prática da auto-mortificação. Constrição do prazer, asfixia da libido, para vingarem os ensinamentos divinos. Talvez estes supranumerários dedicados se deixem tentar pelos clubes de sadomasoquismo…

20.11.06

A burka proibida: a voragem da intolerância


O governo holandês prepara-se para proibir o uso da burka. Acreditava que o bafiento republicanismo francês fosse um fenómeno isolado (com arremedos nas terras lusitanas). Afinal a doença contagiou-se a outros locais. Com um toque inusitado: a doença estendeu-se de um país católico a um país protestante, de uma república a uma monarquia.

O lamentável episódio do véu islâmico, caridosamente proibido pelos burocratas parisienses, é revisitado no país das tulipas. Com um requinte adicional. Enquanto os franceses se acobardaram numa lei genérica que proibia todos os símbolos religiosos, sabendo-se que os destinatários eram os muçulmanos que trajam de forma inconfundível; os holandeses perderam o pudor e colocam-se na calha para a discriminação orientada, pois entre a comunidade islâmica só os mais extremistas insistem no uso feminino da burka.

Não tenho a menor simpatia pelo culto exacerbado do islamismo que resvala para a asfixia da mulher, remetida a um lugar sombrio na sociedade, manietada por dogmas religiosos que, aos meus olhos, são execráveis. Todavia, não me posso emproar na condição de sumo-sacerdote da moral, como se estivesse num plano superior para ajuizar os diferentes credos. O agnosticismo militante facilitaria o exercício que me recuso a empreender. Mais importante, considero, é respeitar as ideias dos outros. As suas crenças, as formas peculiares de exteriorizar essas crenças. Não pode uma sociedade que se reclama da vanguarda civilizacional aferroar os que cultivam diferentes credos, nem sobre eles ditar proibições que soam a uma violação herética do credo. Sob pena de se perder o rasto à proclamada "superioridade civilizacional".

Há quem se insurja freneticamente contra o islão, que por estes dias foi empossado na condição de inimigo (é bom não esquecê-lo, vivemos numa sociedade que se sacia de antagonismos; a velha fábula do inimigo que convém sempre existir para aconchegar as fidelidades caninas aos ditames impostos pelo poder vigente). Para estes, as minhas palavras devem soar a heresia. Adivinho a sua interrogação indignada: e se as mulheres de cá, quando se deslocam a países da burka, a têm que usar para não ofender os costumes locais, porque não exigir que as mulheres de lá, quando emigram para o ocidente, vivam em harmonia com os nossos costumes?

Não partilho da indignação que os leva a marejar na analogia. O paralelismo forçado joga contra o que defendem de forma tão contundente - a superioridade civilizacional do ocidente. Se bem entendo a linha de raciocínio, a obrigação de burka nos países onde o radicalismo religioso é levado ao extremo autoriza uma reversão do fundamentalismo. As mulheres habituadas a sufocar detrás do biombo da burka têm que ser despidas do utensílio, porque a socialização com o ocidente (onde se estabelecem) assim o obriga. Que esta imposição seja uma violação da consciência das mulheres habituadas a usar a burka, um pormenor irrelevante. Podem tais guardiães da moral, com honestidade, exibir ofensa quando se cruzam com mulheres trajando burka? Eis a tolerância ocidental em todo o seu esplendor.

Por entre os vários defeitos que encontro na civilização ocidental, ainda há lugar para enaltecer a liberdade de pensamento. Ainda que na prática recente se perceba como a liberdade vai apenas sendo tolerada, a par com as constantes limitações ao seu exercício. Mesmo assim, gabe-se a civilização ocidental por tolerar este exercício de liberdade. Algo que não existe nos países islâmicos, há que o reconhecer. Este contraste torna ainda mais incompreensíveis os recentes atropelos às liberdades da autoria de governos de países ocidentais. Com esta conduta aproximam-se cada vez mais dos países onde o fanatismo religioso alimenta o sufoco das liberdades individuais.

A decisão do governo holandês é triplamente perigosa. Primeiro, é um atentado às liberdades, um atentado cirurgicamente direccionado. Segundo, faz o mesmo jogo dos intolerantes alimentados pela cegueira religiosa. Terceiro, é gasolina atirada para uma fogueira que já arde bem alta. Pouco me importam aqueles que puxam dos galões da valentia argumentando que não podemos fazer cedências aos violentos. A quem assim raciocina, apenas isto: acreditam que esta guerra sem quartel ao terrorismo, que grassa incontrolável, o vai extirpar?

Os que se acham campeões da tolerância na nossa praça (J. C. Espada, inevitavelmente, ao leme) não discernem o mal que fazem à sua tão querida (e distorcida) tolerância ao defenderem a proibição da burka. Assemelha-se a um acto vergonhoso de voyeurismo: querem espreitar os rostos que se escondem detrás da burka. Não importa que esses rostos queiram permanecer tapados; o seu voyeurismo fala mais alto. A tolerância é boa quando são os outros a praticá-la em relação a nós. Ao partirmos do pressuposto que somos tolerantes por definição, nem damos conta que certos actos vêm perfumados com o odor fétido da intolerância em relação ao outro.

Este ocidente que envergonha a palavra tolerância de cada vez que ela estala na boca de políticos intolerantes é, cada vez menos, um local onde apeteça viver.

17.11.06

Coincidências que só lembram ao diabo (um texto reaccionário)


Os jovens imberbes, ainda mergulhados no adolescente acne, inebriados com a espessura dramática do “morangos com açúcar”, decidiram fazer uma surpresa. Sem que ninguém contasse, mobilizaram-se de norte a sul através de mensagens SMS (foi-nos dito pela comunicação social amansada). A intenção era fechar as escolas a cadeado, impedir que professores e funcionários fossem trabalhar (o que, para os visados, deve ter sido um grande incómodo…). Protestavam contra as aulas de substituição.

Por coincidência – e apenas por coincidência, vamos acreditar que sim – no mesmo dia em que professores tinham sido escalados pelos sindicatos para estacionar à porta do ministério da educação. No exercício do direito constitucional de protesto, em dia de negociações entre o ministério e os sindicatos que podem destruir regalias dos docentes (tradução, na linguagem contemporaneamente correcta: bulir com “direitos adquiridos”).

Por uma vez, os petizes de braço dado com os professores. Foi vê-los, em harmonioso convívio na avenida Cinco de Outubro. Por uma vez, esquecidos os antagonismos entre os jovens a quem aprender tanto cansa e os professores a quem ensinar tanto custa. Por uma vez, os jovenzinhos quiseram mostrar solidariedade com os professores que lhes martirizam a vida durante o ano lectivo. Em vez dos insultos e das ameaças à integridade física dos professores, só afagos oportunistas.

Por mim fiquei descansado com o futuro deste país: temos uma geração dinâmica, imaginativa, com capacidade de encaixe para esquecer inimizades com o inimigo de sempre quando há um inimigo mais forte pela frente. Finalmente, haveremos de seguir o caminho certo quando entregarmos o leme nas mãos desta geração. Que será a tão prometida ínclita geração, decerto. Com semelhante capacidade de mobilização, que de um dia para o outro espalhou uma bem organizada operação de boicote às aulas e emparceirou milhares de alunos ao lado dos professores acampados à porta do ministério, podemos estar descansados. Há aqui vestígios de uma capacidade de organização que, se for posta ao serviço da governação da coisa pública e da gestão dos impérios privados, fará de nós a nova Irlanda, a nova Finlândia.

Convém não acreditar em coincidências notáveis. Não vamos supor que há alguém por trás desta súbita mobilização dos adolescentes. Não vamos acreditar que há interesses políticos, eles sim muito bem organizados, a acirrar as manobras dos petizes. Não, os jovens são imaginativos, dinâmicos e pensam pela sua própria cabeça. Todavia, quem os apanha à saída do ensino secundário sabe, ano após ano, que a qualidade média decresce. Ora, algo não bate certo. Ou os milhares de jovens que ontem se reuniram em protestos de norte a sul são uma colheita de excepção, rompendo com a mediocridade vertiginosa a cada ano que passa; ou decerto há alguém, bem mais adulto, a instigar os jovenzinhos no boicote ao ministério da educação.

Bastava ouvi-los, aos que tiveram direito de antena. Militância precoce, com a cassete engolida em tão tenra idade. É nestas alturas que apetece aconselhá-los: entreguem-se aos prazeres da adolescência, às festanças, aos desvarios próprios da idade, ao rock and roll ou ao drum and bass, ao bunging jumping, ao que seja. A formatação precoce destas mentes pelos cânones totalitários sequestra a jovialidade mental. São velhos logo à adolescência. E não chegam a perceber como não passam de instrumentos úteis nas mãos de interesses políticos inconfessáveis. Quantos aos demais, aos que vão na onda sem saberem ao certo onde estão e porque protestam, só a acefalia dominante os faz andar. Esses é que nem sabem o que é serem joguetes nas mãos de partidos que, estivessem no poder, seriam fautores de sanguinárias repressões destas manifestações. Chama-se a isto pura ingenuidade de quem se oferece para ser carne para canhão em causas alheias.

Não sei se haverá prémios para a dedicação protestante da turba. Não sei qual o rebuçado que adoça a boca da multidão. Não será pelo conteúdo dos protestos, que estes jovenzinhos estão desprovidos de capacidade para perceberem se as aulas de substituição lhes fazem bem ou mal. Para além da excitação que é participar em manifestações de rua, para além do que elas significam na prática (manifestamo-nos, logo não temos o aborrecimento das aulas), porventura prémios avulsos sorteados pelos manifestantes: t-shirts com a fronha do Che Guevara estampada; pins invocando os tempos áureos da União Soviética, que a iconografia de então entrou nos cânones da “moda”; free pass para a próxima festa do Avante, com direito a autógrafos do grande líder; inscrição gratuita, incluindo transporte, alimentação e opção de substâncias ilícitas, no acampamento da esquerda folclórica onde se aprende a arte da desobediência civil; para os mais felizardos, viagens a Cuba para aprenderem in loco as virtudes da dogmática. Isto é como os jogos de azar: quem não apostar não é contemplado pela sorte.

16.11.06

Além do Outono


A muitos o Outono entristece. O sol intimida-se no prenúncio da invernia. Pelo Outono, a ponte entre o estio festivo que irradia sol e o Inverno sombrio, ventoso, da chuva desagradável que encharca os ossos dos desprevenidos, do frio glacial que convida a não sair de casa. Para muitos, o Outono é o retrato da decadência. As folhas das árvores entram na etapa caduca, tingem-se de acobreado antes de fenecerem espalhadas pelo chão, revolvidas pela revoada de vento que as levita pelo ar numa dança furiosa.

Haverá no Outono o travo decadente das estações. Haverá no Outono a sensação rebarbativa dos corpos esfriados que buscam agasalho. Haverá no Outono os ventos transtornados que semeiam as tempestades danosas. Mas são ventos amenos. Não emprestam à atmosfera um fingimento árctico. Ainda assim, as pessoas antecipam a estação mais fria. Vão aos armários recuperar a roupa de Inverno, como se os ventos amenos fossem o prenúncio de uma neve que raramente é visita.

Pelo Outono, há pessoas que se enlutam nos dias que ficam mais curtos, na luminosidade solar que se ausenta dias a fio quando a estação se veste de rigores. As saudades do Verão instalam-se em pouco tempo. Antes do tempo, antes ainda dos rigores invernais ocuparem lugar, há já quem teça loas à longínqua Primavera que há-de vir, pelo dobrar da esquina do tempo tristonho que enfadonha os espíritos. E, no entanto, não há lugar à sagração outonal? O hábito é o de poetas e escritores fazerem a sagração da Primavera, porventura pelo cansaço da longa invernia que começa logo com os primeiros instantes outonais.

Reclame-se a sagração do Outono. Por ser imperativa a mudança, por os corpos exigirem novas atmosferas, cansados do calor estival, ciosos da ventania irada que sopra sinfonias desesperadas pelas frinchas das janelas. Sem que as pessoas percebam, o Outono é renovação. Estranha demanda, pensarão muitos: como pode o Outono ser renovação quando as folhas se arqueiam, caducas, preparando a queda no solo? Como pode alguém ver na outonal estação sequer um vestígio de renovação, quando as árvores se despem da verdejante e volitiva vegetação? Se renovação significa vida nova, um arejar refrescante que despeja luminosos horizontes, como pode o Outono aspirar ao domínio da renovação?

A vida é feita de ciclos. Na natureza também. E são estes ciclos que inspiram os ciclos da vida pessoal. Por vezes, o recato outonal é o pretexto para a reconsideração dos caminhos seguidos. Repensar a existência. O Outono dá o mote, com a visão das árvores descascadas pelo vento, das ondas revoltosas quando o vento sopra dos lados do Atlântico, dos escassos minutos da luz que vai empalidecendo um dia atrás do outro. Se o Outono dá início à hibernação da natureza, há algo de charneira para a enseada primaveril. O Outono é o começo de uma travessia, longa travessia, que marca o encontro dos corpos com as sensações desagradáveis da chuva que os ensopa, do vento furioso que despenteia cabelos e invade os corpos desde a superficialidade dos poros até às entranhas da ossatura.

Mesmo a cor sombria que domina quando chegam Outonos mais chuvosos; ou a mutação das árvores, ao perderem a nutriente verdura para se vestirem do acobreado que prenuncia a queda das folhas ressequidas; tudo retrata uma beleza que só a lupa atenciosa do Outono consegue discernir. Não é por ser sombrio, ou por despir as árvores da esfusiante vegetação, que o Outono encontra um sinónimo tristonho. Não é justo conotar o Outono com decadência. Se renovar é retemperar forças para um regresso pujante, quando o calendário julgar oportuno esse regresso, o Outono é a estação que perfuma esse descanso dos corpos no recato a que convida, no remanso do lar a que os corpos se entregam.

Os ciclos são feitos de altos e baixos. Tal como se sobe e desce para atravessar serranias que nos separam de um destino ansiado, também os ciclos são uma sucessão de bons e maus momentos. Os baixios são esquinas necessárias que devem ser dobradas para chegar ao destino final. A recusa em domá-los é a demissão de si. O Outono não é um descaminho das almas. É um lugar que impera atravessar, com a singeleza de quem observa o lado escondido da estética de uma estação (injustamente) tresmalhada.

15.11.06

Só um ensurdecedor silêncio


Há lugares onde se encontra o perfeito refúgio do mundo. Lugares isolados, perdidos no meio da geografia, onde apenas as rochas, a vegetação rasteira e os íngremes precipícios compartilham a solidão que ali se refugia. E, no entanto, a civilização está tão perto. No inóspito lugar, tão difícil é lá chegar, por caminhos que só pastores e o gado em transumância palmilham; dir-se-ia, um lugar perdido no meio de nada, tão longe da civilização asfixiante. Um lugar que retoma a pureza do ar, por entre paisagens que fazem cortar a respiração.

Entre íngremes subidas e descidas, entre pedregulhos calcados e regatos atravessados, desdobram-se os montes que desnudam a serrania. Há um Gerês que não se imagina da acalmia das estradas traçadas nos mapas. Agora sei-o, é apenas uma amostra do Gerês frondoso que os turistas conhecem no conforto dos automóveis. O Gerês verdadeiro, esse onde a mão do Homem não curou de tocar, esconde-se nas alturas dos montes escarpados. O que, ao longe, parece uma extensa mancha de promontórios, esconde recantos admiráveis, ribeiros de água cristalina e fresca, prados verdejantes semeados no meio das escarpas. Prados onde pasta o gado. Ali, nos fios de água que escorrem das alturas, as reses vêm dessedentar a canícula.

À medida que os montes e planaltos são palmilhados, redobra a oxigenação do espírito. Num isolamento que faz regressar a um estado natural que a civilização corrompe. Assim nos sentimos ao seguir os caminhos dos pastores, emoldurando a pureza da paisagem. Onde não há dedo humano a não ser nas pedras que se amontoam nos trilhos, marcando o caminho aos viajantes que não se querem perder na imensidão da serrania. Os meus amigos que lá vão há vinte anos devem sentir a recompensa do regresso não marcar a paisagem mudada. Não como nas vilas e cidades, na mudança constante da paisagem urbana: prédios que crescem, localidades que se estendem para fora dos seus limites, mais uma rotunda aqui e ali, jardins que se diluem no meio do cimento, novos caminhos que irrompem onde outrora repousavam verdejantes campos. O sinal da modernidade.

Por aqueles montes impera a virginal natureza. A mão humana é limitada na sua acção. Quase inexistente. Limita-se a melhorar os abrigos de montanha onde pernoitam os pastores, que eles também zelam pelo seu bem-estar, perdidos dias a fio na solidão de quem apascenta o rebanho. Uma paisagem que mostra a singularidade da natureza, a sua força indomável: pedregulhos que pesam toneladas e que se amontoam em equilíbrios instáveis, ladeiras que empinam em inclinações impossíveis de dominar, precipícios assustadores por onde deslizam os ribeiros, ora tímidos quando o estio preenche os dias, ora caudalosos quando as nuvens descarregam a sua ira em forma de chuva inclemente.

Lá no alto, no meio de mais um prado que oferece uma cama fofa de relva tingida de um verde reluzente, impera a força dos elementos. A grandiosidade dos penhascos que descansam naquele vale. Onde corre um fio de água que alimenta a relva viçosa que apazigua o cansaço da caminhada. Ao longe, a vista apenas alcança mais montes que parecem beijar o céu luzidio. Lá em cima, parece que tocamos o céu se estendermos os dedos ao alto. É aí que sentimos que pertencemos à natureza, na sua revigorante força. O refúgio momentâneo das doenças da civilização moderna.

Lá no alto, quando os sentidos recuperam o fôlego dos passos ofegantes que separam os montes dos prados sucessivos, tudo se renova. Há apenas um silêncio constante que revigora os sentidos. Um silêncio ensurdecedor, tamanha a sua grandiosidade, tal a estranheza que causa a quem está habituado ao bulício da grande cidade. Estranhamente, um silêncio ensurdecedor. Aqui e ali, interrompido por um pássaro que chilreia na copa da árvore, ou pelo rumorejar da água que corre no regato mais abaixo.

Por momentos, quando nos entregamos nas mãos da serrania tortuosa, acreditar que existe a pureza dos sentidos. É a purificação dos sentidos: os pedregosos caminhos que atravessam os montes escarpados tratam da redenção. Perde-se o rasto à fadiga da selva urbana e da ditadura social.

14.11.06

Perigosos socialistas que refazeis a História

É perigosa a internacional socialista. Uma sarna pegajosa, que se insinua nos poros e vem, branda, com a sugestão de ser a infalível consciência da modernidade. Só eles estão certos. E provam, com uma facilidade estonteante, que os adversários não têm razão, não podem ter razão. Vogam ao sabor das conveniências. São mestres na arte do transformismo, porque os ventos que sopram de outra feição obrigam a engavetar doutrinações de antanho. Mas continuam fiéis a si mesmos: não são eles que mudam, os tempos e os eventos são voláteis perante a inevitabilidade histórica do socialismo (agora moderno).

Lições a rodos. Sempre empertigados, sempre senhores das verdades irrefutáveis que disseminam na sua generosa veia educativa das massas. São messiânicas personagens que reúnem os consensos, palavra tão em moda. Detrás do pano corre a verdadeira cena, fervilham os socialistas genuínos: intolerantes que querem, pelo espartilho da democracia, estender o manto socialista de uma ponta à outra, sem deixar membros dissidentes de fora. A urgente busca do consenso contém a essência do mais intolerante que se pode conhecer.

Desde sempre desconfiei da aparente bondade dos socialistas. Tenho-os como lobos em pele de cordeiro. Incapazes de lidar com a crítica e com as ideias que lhes são antagónicas. Incapazes de entrar num debate com espírito tolerante, perdem as estribeiras quando percebem que a troca de argumentos traz o fantasma da derrota.

Distinguem-se pelo julgamento da História. Há países onde os socialistas, ainda mais que os comunistas, querem passar uma esponja pelo passado tenebroso das ditaduras de direita. A Universidade de Santiago de Compostela retirou o doutoramento honoris causa a Franco. Os bons socialistas andam entretidos a limpar da toponímia local nomes ligados ao fascismo. As ruas são rebaptizadas, como se o nome apagado das placas que encimam as esquinas nunca tivessem existido.

A “boa memória” anti-fascista é uma campanha dos socialistas espanhóis, que se aproveitam do governo para limpar de vez os restos sujos do regime deposto em 1975. Os socialistas espanhóis especializaram-se na revisão da História. Quando se pensava que refazer a História fosse exclusivo dos hediondos funcionários do partido comunista da União Soviética, que retocavam fotografias para eliminar traços de pessoas entretanto caídas em desgraça (e ainda não dispunham do Photoshop…), afinal as manobras estalinistas têm seguidores nos tempos modernos. São os socialistas que se reclamam feitores da modernidade. Sinais dos tempos…

Não consigo entender energias gastas no supérfluo. Acaso alguém acredita, de boa fé, que o ressurgimento de ditaduras de direita é ameaça credível? Os socialistas espanhóis não se conseguem desprender do registo histórico. Dir-se-ia que vivem aprisionados pelos fantasmas da ditadura franquista, como se Franco se pudesse erguer da tumba e, com um cavernoso grito de ordem, chamar os fiéis para derrotar os democratas. Um povo que vive preso aos fantasmas enterrados no passado é um povo mesquinho, receoso do futuro, descrente dos dias que hão-de vir.

Que fique bem entendido: como qualquer ditadura, a do Generalíssimo vindo de Ferrol, Corunha, foi um exercício deplorável que enegreceu as páginas da História. Quando vejo as sumidades socialistas entregues a estes actos de revisionismo histórico, há um cínico sorriso que não consigo reprimir: é então que me lembro que estes artífices do politicamente correcto reproduzem os execráveis actos de censura do passado em que os próceres comunistas se especializaram. E só temo que a evolução destas mentalidades distorcidas não faça dos socialistas os repressores de amanhã. Os precedentes vêm da História – da mesma História que se afadigam em reescrever. Os nazis eram ideologicamente influenciados pelo socialismo (nacional-socialismo, era a doutrina). E agora os socialistas modernos parecem os discípulos dos torcionários comunistas.

As páginas da História estão emolduradas, para o bem e para o mal. Pois o tempo só apaga as memórias, não os acontecimentos. Se há lição a reter – para além da perigosa deriva revisionista que traz o fétido odor a Moscovo tingida de vermelho – é a seguinte: quem vai deslizando para a intolerância dúctil não é credor de confiança. Temo que esta leva de socialistas seja coveira da liberdade de expressão, dos valores que eles se dizem penhores acima de qualquer suspeita.

Esse é o problema: quem se põe em bicos de pés por estar acima de qualquer suspeita mais depressa resvala para o que menos se suspeita. Quando dermos conta, poderá ser tarde demais. Então será muito, e demais, internacional socialista.

13.11.06

Cartilha infantil: do espírito Noddy (ou devíamos ser todos escuteiros?)


As crianças vão nutrindo os tenros espíritos com a cartilha de bons costumes disseminada pelos desenhos animados que jorram a rodos. Aprendem a ser bonzinhos. É-lhes ensinado que o mal não compensa. Mais tarde ou mais cedo, a mentira é desmascarada. Mais tarde ou mais cedo, os maus fígados revolvem-se contra quem teima em destilar fel, em aviltar o próximo. As virtudes são o único caminho a percorrer.

Lamentavelmente – para as crianças; e para a humanidade – as criancinhas crescem e esquecem as mensagens bíblicas de Noddy e companhia. Não sei se é na altura que se entregam aos devaneios da adolescência, quando interiorizam a ditadura da idade adulta. Ou quando começam a escrever a linguagem cifrada das mensagens SMS que assusta os progenitores no final do mês (não pelo português arrevesado, mas pelas facturas gordas que chegam das operadoras de telemóvel). Não sei quando se dá a mutação. Quando elas se esquecem das lições de moral cuidadosamente ensinadas nos desenhos animados a propagandear o bem e a vituperar o mal. Algures, perdem a inocência e o espírito deixa de ser tenro.

As carnes enrijecem-se com os anos que passam pelo calendário. E os anos da inocência parecem uma memória vaga, quase uma reminiscência platónica. Os adultos, que outrora foram crianças ávidas consumidoras dos virtuosos desenhos animados, interrogam-se se alguma vez foram espectadores do género. Na altura da introspecção, avulta o largo hiato entre o que fomos na tenra idade, em que tudo era inocente e profundamente bom, e a idade em que os porquês cederam lugar às certezas categóricas. Estas andam de braço dado com a desconfiança congénita, a atracção pelo abismo da maldade. Dir-se-ia: Noddy e companhia andam a pregar no deserto.

A candura das personagens benévolas dos desenhos armados é desarmante. Quando escuto os diálogos de Noddy e companhia nas minhas costas (porque estou de costas para a televisão quando a minha filha se enternece com mais um episódio da comandita), pergunto-me: o que está mal, a bonomia ingénua de Noddy e companhia, ou a malévola veia que embrutece a espécie humana quando chega à idade adulta? Como somos crianças num curto espaço da nossa existência, fôssemos levados pelo espartilho do quantitativo e diríamos que Noddy e companhia são uma representação de um mundo idílico que sabemos, já adultos, não existir.

Poderão contrapor líricas e apaixonadas almas por um mundo preenchido por bondade inata: é a socialização forçada que acomete sobre os tenros espíritos quando a idade adulta bate à porta. O mal não está em Noddy e companhia. O mal é feito pela insubordinação da bondade que adultos com instintos suicidários insistem em cometer. Noddy e companhia estarão certos. Há substantivos que deviam ser banidos do vocabulário dos actos. Maldade e todo um cortejo de palavras associadas. Mas os adultos não estão entre a audiência dos desenhos animados que pregam virtudes. A alma adulta empenha-se no precipício tão diligentemente repudiado por Noddy e companhia.

A vida é a complexidade que sabemos. Presos aos atilhos dessa complexidade, esquecemos a infância dourada. Há a abjecta mania de ignorar a candura dos heróis da banda desenhada, que sempre nos ensinaram, enquanto estávamos iludidos por essa branda maneira de ver mundo, que os feitores do mal eram sempre chamados à pedra. Podia demorar, mas a justiça tinha o seu momento. A tradução de uma batalha de valores, o bem triunfante. Os anos passam e Noddy e companhia deixam de ser presença assídua no imaginário das crianças que vão crescendo. A maturidade latente é a madrasta das virtudes.

Os olhos bem abertos desmentem as profecias de Noddy e companhia. À medida que a ingenuidade se desfaz contra um muro de realismo, a candura extingue-se. Amaldiçoa-se. A ingenuidade herdada dos primeiros passos pela vida logo transporta em si o travo amargo da perfídia. Há quem tenha a escola da maldade – por sua vez contagiada por outros que já a traziam, eles também contagiados por outros que lhes ensinaram na pele como a bonomia se traduz em recuos.

Afinal é Noddy que está errado. Se há instrução para as virtudes, os traços perdem-se quando a idade traz com maior nitidez a gigantesca nebulosa que disfarça a genuinidade dos espíritos. Noddy prega no deserto. A ilação é cristalina: Noddy e companhia não são um exercício de pedagogia para crianças carentes de formação. Não são um retrato do mundo lá fora, a selvática floresta para onde são atiradas as crianças prestes a perder o sentido da ingenuidade.

10.11.06

O meu Porto: mais das coisas que das pessoas


A identificação pela cidade natal remete para o império dos afectos. Há uma dimensão inexplicável, quase mítica, uma atracção simbólica que nos faz perder de amores pela cidade onde nascemos. Pode não ser o local mais belo do mundo; pode nem ser, sequer, uma cidade a tecer loas à estética; é, contudo, o local que nos viu nascer, ou a cidade onde vivemos a maior parte da existência. Perfuma-se a cidade com as pétalas de um narcisismo insondável, que eleva a cidade ao altar do sagrado.

Podemos elogiar a nossa cidade pelas pessoas e pelas coisas. Os cultores do Porto têm escrito páginas e páginas exaltando o espírito das gentes portuenses. Muitas vezes apressados em desvendar a idiossincrasia de um colectivo irmanado pela cidade que os abriga, não dão conta que alguns desses traços não são exclusivos dos portuenses. Nem sequer percebem que há nos residentes de outras cidades, em doses variáveis, o mesmo orgulho pela pertença comum, até aquelas mesmas características apresentadas como exclusivas dos portuenses. É a compulsiva tendência para sublimar a pertença a um grupo, enaltecendo as características que se dizem comuns a essa pertença, mas exclusivas dela. Não passam, as mais das vezes, de uma mistificação. Um espartilho que apouca a individualidade de cada um.

Sinto-me, em relação ao Porto, dividido. Adoro a cidade quando vejo nela uma sucessão de locais com traços distintos. Não me revejo no espírito portuense cantado à exaustão por escritores que se inebriam pelas gentes, mesmo quando alguns desses traços revelam mesquinhez, tacanhez, uma tonta fobia identitária, como se ser portuense fosse um desígnio divino. E depois há os sinais de pertença que emergem da espúria rivalidade com a centralista Lisboa. Há nestes portuenses uma inveja latente por Lisboa ser a capital e desdenhar o resto do país. Um provincianismo indisfarçável, caindo no engodo dos umbiguistas lisbonenses que cultivam a ideia que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.

Por mais que denunciem o espírito centralista de Lisboa, a rivalidade acalenta muitos portuenses. Nota-se a afirmação de um sentimento de pertença pela negativa. Por mais que escritores inebriados pelas gentes do Porto tenham descrito à exaustão a têmpera tão própria dos portuenses, o que sinto é uma deturpação contemporânea. Ou os escritores viam através de uma lente desfocada, ou o tempo se encarregou de transformar a pertença portuense, moldando-a ao império do antagonismo com os rivais lisboetas. As mais das vezes, este é o cimento dos portuenses. Que assim se transformam em portistas: partilham um profundo ódio por Lisboa. Não é nestas gentes que me revejo portuense. Não é neste tribalismo primário que me identifico.

Mais do que as gentes, é nas coisas que ressalta o afecto que me prende à cidade. As cores sombrias de uma cidade plúmbea, mais carregadas quando o espesso nevoeiro veste a cidade. As pedregosas colinas que se despenham, abruptas, no rio selvagem que se vem deitar, em tumultuosas ondas, na embocadura do Atlântico. O casario amontoado da cidade velha, um postal colorido que de tanto ser publicitado como cartaz turístico começa a enfastiar. E, mesmo assim, quem consegue ficar indiferente ao caos ordenado que se contempla desde o cais de Gaia, uma paleta que se espraia para servir de inspiração a pintores e poetas?

Não digo que o Porto tenha uma magia que não se encontra algures. É a magia que tem cada cidade, os traços de individualidade que distinguem as cidades que preenchem o nosso imaginário. Não há duas cidades iguais. Nisso, o Porto pode reclamar exclusividade – como qualquer outro local do mundo. Fará sentido que apeteça regressar às profundezas do Porto. Acontece quando o viajante erra pelas quatro partidas do mundo e se deixa corroer pelas saudades do Porto natal. Até fará sentido quando, refugiado nas muralhas da residência, ou sufocado pelos afazeres que consomem todo o tempo, emerge um súbito apelo para mergulhar nas pedras centenárias da cidade velha, deambular pelas ruas estreitas da Ribeira, sentir o odor do Douro na sua caminhada imparável para o mar acolhedor.

Dirão alguns: mas a cidade foi edificada por sucessivas gerações de portuenses. E quem a celebra estará a elogiar a têmpera das gentes que ao longo do tempo foram fazendo cidade na sua feição corpórea. Os antepassados não posso ajuizar. E se afirmo que a pertença é mais pelas coisas do que pelas pessoas, não renego o espírito portuense passado, retratado por escritores, sem interessar se é fidedigno ou só uma mistificação colectiva. Apenas que não é com os portuenses contemporâneos, com a sua forma de sublinharem a pertença portuense, que me revejo. Só pela magia da cidade na sua materialização corpórea.

9.11.06

Os bancos, o demónio em instituição

O governo, na sua esquizofrenia ideológica, quis-nos convencer que é mesmo de esquerda. Regressemos à retórica: dizem que são de “esquerda moderna”. Só ainda não disseram o que é ser de esquerda moderna. Parece-me que ser de esquerda moderna não passa de um conjunto de tiques: o ar refrescante, jovial, mesmo dos mais envelhecidos; a tímida atracção pelas causas fracturantes que outros, mais radicais, empunham como bandeiras; o discurso social, a igualdade e a justiça, que dá tantos votos entre os carenciados e os líricos; e, ao mesmo tempo, uma prática que se distancia dos dogmas da esquerda empedernida, que ainda dorme com os fantasmas do marxismo. A esquerda moderna faz-me lembrar aqueles que cultivam a máxima “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Como a gente que nos governa tem sido acusada de uma deriva de direita – mesmo entre alguns correligionários que fogem à tendência dominante e criticam o rumo seguido – havia que enviar uns sinais que transpirassem algum esquerdismo para apaziguar as hostes e calar os mais radicais à (extrema) esquerda. Os bancos são um alvo apetecido. Simbolizam o capitalismo diabolizado pelas esquerdas que, por estes dias, destilam uma aguda azia antecipando o que se comemora no dia de hoje (o décimo sétimo aniversário da queda do muro de Berlim). O ataque aos bancos teve dois actos separados por poucos dias. Primeiro, as novas regras de arredondamento das taxas de juro dos empréstimos à habitação. Depois, o anúncio de que os bancos vão passar a pagar mais impostos.

Não me interessa o que se esconde detrás desta estratégia do governo. Decerto, apenas imperativos de imagem, mais uma vez. Espantoso é o coro que veio escudar as decisões do governo. Aposto que era esta a intenção dos estrategas de imagem do governo e da turba socialista: encostar os bancos à parede, por serem um alvo fácil da inveja do povo rasteiro.

Ao anunciar que os privilégios dos bancos vão ser cortados, o governo sabia que os bancos iam reagir. Ninguém gosta de ver privilégios cerceados. Quando os representantes dos bancos vêm para a praça pública defender os seus interesses, estão no exercício de um legítimo direito. O modo não foi sensato. Por vezes perde-se a razão pelas infelizes palavras proferidas. O presidente da associação portuguesa de bancos teve o seu momento infeliz ao comparar estas medidas com peronismo retardado. Por mais incompetente e desnorteado que este governo seja, é excessivo acusá-lo de peronismo.

(Aliás, esta acusação só veio acicatar a esquizofrenia política dos nossos queridos governantes. Coitados, emparedados de um lado e do outro: à esquerda, acusam de praticarem “políticas de direita” – vá-se lá saber o que isto significa; do outro lado, escutam a acusação de peronismo. O centrão político tem destes males.)

O coro que se levantou contra os bancos é sintomático da inveja e da ingratidão que faz de nós um povo pequenino. Uma voz quase em uníssono, colando-se às absurdas posições da extrema-esquerda. Por estes dias somos um povo de extrema-esquerda, para gáudio da Soeiro Pereira Gomes e dos folclóricos espécimes do Bloco. Eis o raciocínio esclarecido: os bancos têm lucros avultados. Exploram os cidadãos que não têm recursos para adquirir habitação própria. Hipnotizam as incautas pessoas obrigadas a contrair empréstimos para saciar a fobia consumista. Se não houvesse crédito ao consumo, as pessoas resistiam às tentações do consumo supérfluo. A culpa é dos bancos: emprestam dinheiro, levam-nos ao endividamento sufocante e lucram pornograficamente com isso. Impõe-se vergastar os bancos com regras que retirem privilégios imorais, forçá-los a pagar mais impostos para que os lucros que os engordam sejam menores.

Inveja em estado puro. Ingratidão sem sublimação: não fossem os empréstimos da banca, quantos de nós seríamos proprietários das habitações em que residimos? (Ou, então, a propriedade será um pecado?) Os bancos são acusados de seduzirem as pessoas na tentação do consumo fácil, porque agora tudo e mais alguma coisa se compra com as imensas possibilidades do crédito fácil. É o costume: a invocação da ausência de livre arbítrio de cada pessoa, como se fôssemos autómatos comandados pela vontade demoníaca dos bancos.

Ao testemunhar este coro impregnado de moralidade anti-capitalista, só me apetece agradecer aos bancos por tudo o que me proporcionaram. Pago juros pela generosidade dos bancos (que assim não é generosidade; será, na tortuosa mente dos proponentes desta teoria da conspiração, apenas a exploração de desprevenidos consumistas)? Dou o meu contributo para engordar a lucrativa actividade dos bancos? É certo. Mas é se o próprio banco do Estado também tem lucros, ao gozar de privilégios legais que falsificam a concorrência, isto só prova que a história está mal contada. Porventura o paraíso seria permitir ao banco do Estado o monopólio da actividade e decretar por lei – como se decreta, por patéticas palavras ministeriais, o fim da crise – a proibição da usura lucrativa.

Então seríamos todos mais felizes. Ainda mais felizes porque o Estado estaria falido, acrescento daqui.

8.11.06

Bichos são os Homens


Já por diversas vezes escrevi aqui sobre a bestialidade humana quando, por nos julgarmos espécie superior, sentenciamos os animais irracionais à condição de instrumentos das necessidades humanas. Faz-me lembrar os arautos da civilização ocidental, que proclamam a incontestável superioridade da dita por comparação às demais, assim votadas à condição de civilizações menores. Os mesmos que depois aplaudem demoradamente a condenação à morte de um sanguinário ditador. Nem vale a pena sublinhar que sejam fautores da pena de morte, sem repararem na torpeza de um Homem retirar a vida a outrem (em que circunstâncias seja). Pior é aceitarem a mesma prática que sempre condenaram no ditador que acaba de ser sentenciado com a pena de morte.

Parece incompreensível a comparação com as pessoas que convivem pacificamente com os inomináveis sacrifícios de animais indefesos. A comparação faz-se com a prosápia de quem se acha feitor da superioridade moral e depois não percebe a indignidade dos actos que sacrificam inocentes animais. Num caso como no outro, a moralidade desmascarada.

O contexto: ontem recebi um e-mail que apelava à subscrição de uma petição (em http://www.petitiononline.com/ftmlopes/) para afastar a estilista Fátima Lopes das passagens de moda enquanto teimar em utilizar peles de animais nas indumentárias por ela criadas. O texto que introduz a petição tenta sensibilizar os destinatários, explicando o que se passa no doloroso cativeiro a que estão remetidos os animais que têm a desdita de trajar apetecíveis peles:

o que a maior parte das pessoas desconhece é que os animais caçados ou criados para poderem “dar” as peles para casacos de luxo são tratados de forma terrivelmente desumana, criados em condições de sofrimento horríveis, e mortos das maneiras mais atrozes, chegando mesmo a ser esfolados ainda vivos para que a pele não perca brilho”.

Ao entrar no sítio onde está alojada a petição, há a indicação de um filme que documenta como são tratados os animais, como são cruelmente mortos. O filme está em http://www.peta2.com/takecharge/swf/fur_farm.swf. Confesso que não tive a coragem para o visionar. À memória vieram imagens chocantes à entrada de uma estação de metro em Londres, onde activistas dos direitos dos animais expunham fotografias dos sacrifícios em animais que vivem em cativeiro à espera de experiências científicas, como cobaias necessárias da indústria de cosméticos. Lembro-me como essas imagens chocantes permaneceram vivas durante longas horas. Pelo bem-estar pessoal, preferi a hipocrisia de não abrir o filme. O aviso que o filme contém imagens chocantes dissuadiu-me.

Os activistas dos direitos dos animais por vezes conseguem mobilizar alguns representantes do mundo da moda, os manequins que passam as vestes criadas por estilistas, no protesto contra o uso de peles de animais na indústria da moda. Há um elemento folclórico que deve ser descontado: os manequins desfilam nus. A mensagem enviada é clara: eles e elas despem-se das suas roupas, sinalizando um esboço do sacrifício imposto aos animais selvaticamente despojados das suas peles, para comprazimento pessoal de dondocas. Que ou são insensíveis ou estão desapossadas de mínimos de inteligência para perceberem a vilania de trajarem vestuário ornamentado com as peles roubadas a animais entretanto mortos.

Esses desfiles provam como as mortes de animais indefesos são um acto carregado de inutilidade. A juntar à futilidade de quem se adorna de peles de animais, sem olhar às questões de estética que poderiam estender a discussão por outros caminhos. Eu, que não sou dado aos folclores típicos deste género de manifestações, quando dou conta que o ser humano continua na senda da estupidez ao sacrificar inutilmente animais indefesos, apetece-me oferecer à causa o meu esbelto corpo desnudado (enfim, quase desnudado; o pudor exigiria que as partes íntimas – ou as “partes podengas”, como outrora afirmou um célebre árbitro de futebol, nos tradicionais atentados à língua portuguesa que vêm daquelas paragens… – estivessem escondidas, nem que fosse por uma discreta peça de roupa interior).

Já não me recordo que escritor afirmou em tempos: “quanto mais conheço o Homem, mais gosto do cão”. Pode ser um lugar comum para culminar este texto de perplexidade pela indignidade do Homem. Seja. A conclusão é inevitável: os que se gabam de sermos a única espécie de animais racionais perdem a razão quando sancionam a irracionalidade de matar animais irracionais para gáudio do ego imbecil de alguns humanos que se deixam embevecer pelo vestuário feito com peles de animais.

É por isso que me interrogo se animais (na conotação pejorativa da palavra) não serão os Homens que aceitam que a moda se sirva destes sacrifícios impostos a animais felpudos.

7.11.06

O elogio da “razão cómoda”

As condições materiais de viver, hoje, generalizaram um comodismo que domesticou a razão e detesta os valores e as virtudes. Pode por isso falar-se de uma comodização da razão”, Mário Pinto, in Público, 06.11.06.

De quinze em quinze dias, vou buscar ao artigo de opinião de Mário Pinto inspiração para renegar o conservadorismo bafiento, nas palavras beatas do flagelado católico que se julga alvo de impiedosas perseguições de seitas diversas. Como é aprazível ler as palavras de um pobre católico clamando por comiseração: pela sua lente desfocada vê adversários que exercem sobre os católicos militantes uma feroz intransigência. Não cultivo a vingança histórica. Como qualquer tipo de vingança, é um sentimento abominável. Gostava que Mário Pinto percebesse que, no passado, o monopólio católico julgou, censurou, asfixiou à dissidência os que ousaram desalinhar dos cânones.

Leio Mário Pinto como leio João Carlos Espada e logo apetece cair no regaço da extrema-esquerda trotskista (mas não o faço por sanidade mental). Leio estes baluartes do politicamente correcto a perorarem contra o que eles julgam ser o pensamento politicamente correcto que abjuram. Sem perceberem que é deles o império do politicamente correcto, são eles a correia de transmissão de quem detém as rédeas do poder. O exercício é abjecto, mais porque se emproam na condição de guardiães da tolerância, ostentam a taça do campeonato pelo respeito das ideias antagónicas. Ao quererem sentenciar a mesquinha convicção de que são os perseguidos da sociedade contemporânea, inscrevem-se na rota dos futuros Torquemadas prontos a silenciar quem esteja em desacordo.

Com este espírito algoz, leio Pinto, Espada ou qualquer outro centurião do conservadorismo carregado de teias de aranha e só me apetece ser o seu contrário. Corro o risco de ser visto de braço dado com expoentes da extrema-esquerda folclórica? A discordância dos conservadores embutidos não me trará para a rua com os movimentos folclóricos – isso é certo.

Hoje, a oratória de Pinto arremete contra o relativismo, o subjectivismo, o multiculturalismo. A síntese daquilo a chamou a “razão cómoda”. O traço típico da “pós-modernidade”. A negação dos valores e da virtude: a partir do momento em que as pessoas puderam tocar em bens tangíveis de um bem-estar impensável há décadas, perderam a noção das forças espirituais. A materialização dos seres coincide, na opinião de Pinto, com um niilismo que destrói tudo o que se mexa sem curar de arranjar alternativa: “o que caracteriza a pós-modernidade é precisamente a crise da afirmação de grandes princípios e valores, ou a crise de sentido”.

Anestesiados pelas facilidades que a inovação tecnológica espalhou, interessados pelo bem-estar sensorial, enredamo-nos no comodismo. Fuga dos sacrifícios exigidos pela demanda da luz espiritual. Até o Estado perde com a deriva comodista: “neste contexto de redução da vitalidade espiritual da própria civilização ocidental, a sociedade civil e o Estado tornam-se mais fracos; e, relativamente, tornam-se mais fortes os grupos de interesses e os movimentos ideológicos que vão no sentido do comodismo”. Retomando uma teoria da conspiração enunciada há semanas a propósito do neo-malthusianismo associado ao imperativo pró-aborto, Pinto alista os arquitectos do capitalismo no rol dos fautores do comodismo dominante. Vai tudo a eito: capitalistas, relativistas, agnósticos, marxistas, todos responsáveis pela “desespiritualização” do ser humano.

Pinto idealiza um mundo de frades e freiras, um regime monástico em que todos os mortais sejam servos de um deus maior. Dedicados a mostrar a entrega a deus com a óbvia predisposição para sacrifícios carnais ou espirituais. Uma masmorra, em síntese. Se é este o reino de deus, se este é o paraíso que consiste em reprimir o bem-estar das pessoas para que se sintam espiritualmente bem, concluo que a religião é uma prisão do ser. A antítese da liberdade. O que me permite compreender porque Pinto está tão preocupado com a desvalorização do sacrossanto Estado às mãos das forças vorazes da globalização que sopram os ventos do “comodismo”: o Estado é, tal como a religião, uma hierarquia que impõe a sua vontade sobre os servos que humildemente se ajoelham perante tão omnipotentes autoridades.

Pode a “cultura do comodismo” perturbar os quadros mentais de Pinto e de outros beatos. Têm o direito de o expressar, pastores fiéis que disseminam a palavra divina, na derradeira tentativa para evitar que mais ovelhas se tresmalhem para a barricada do comodismo. Deviam, ao menos, disfarçar a sua intolerância (eles que se auto-convencem que são campeões da tolerância). A prova é o seguinte naco de prosa do punho de Mário Pinto: “a BBC está dominada por homossexuais e ocupada em desproporcionado número por minorias étnicas, com reflexo, por exemplo, no maior cuidado em não ofender a comunidade muçulmana do que os cristãos”.

Se não é obrigatório ser inquilino de conventos, porque espreitam eles pelas ameias da clausura e tentam arregimentar mais fiéis para as celas vizinhas? Posso estar enganado, mas esta postura beata só desajuda o desígnio de Pinto & companhia: mais um passo para desviar as ovelhas do rebanho. Por isso, os artigos de Mário Pinto são, para mim, inestimáveis nutrientes.

6.11.06

O euro em desintegração (a história de uma conspiração)

(Qualquer coincidência com a realidade é coincidência em parte)

Acontece na Alemanha. Misteriosamente, notas de euros desintegram-se nas mãos de pessoas atónitas. Apanhadas de surpresa, testemunhas de um estranho processo químico, como se as suas mãos acabassem investidas de um súbito poder mágico. Onde elas tocassem, as coisas tornavam-se matéria evanescente pela acidez de poros que tudo envenenam com o seu toque. Atónitas, nem davam conta como a riqueza se evaporava através das células sudoríferas destiladas pelas suas mãos.

A polícia pôs-se em campo. O mistério não seria acaso. As autoridades não concebiam o mistério. Os agentes alemães começaram por investigar sozinhos. Orgulho alemão: da segurança doméstica curam eles, que as polícias chegam para as encomendas. Semanas seguidas sem encontrar fio à meada. Tempo para o orgulho pátrio ser engaiolado. Pedido de colaboração às entidades congéneres de outros países. Fazia todo o sentido: o euro é uma moeda impressa em doze países. As notas degradadas, prova da conspiração, estavam em tão mau estado que nem os números de série estavam legíveis. Impossível saber onde aquelas notas sido emitidas. Ou se seriam falsas.
O complot ganhava consistência. Os laboratórios forenses tinham entrado em acção. Ao mesmo tempo, pressões inomináveis do topo passavam instruções para a imprensa silenciar as investigações. Noutro plano, influências semelhantes sobre os incorruptíveis agentes empenhados na investigação. A imprensa não estranhava o pedido. O argumento dos senhores do poder era persuasivo: há que não levantar mais ondas, senão as gentes vão-se intranquilizar. A economia poderá abeirar-se do colapso se a confiança na moeda for ferida de morte. Para as entidades de investigação, mensagem diferente: não parem a investigação, mas não esqueçam que há outras prioridades. Se não avançarem na descoberta de pistas relevantes, esfrie-se a investigação. Que acabe por ir para a gaveta dos casos não resolvidos.

Para desgosto dos figurões importantes, há funcionários zelosos que se orgulham de actuar com independência, sem fretes à classe política. Contrariando as indicações apenas sugeridas (com o que a sugestão coincide com persuasão quando feita pelos senhores do topo), investigadores policiais foram puxando os vários fios de um nebuloso novelo. A certa altura, uma pista muito clara apareceu-lhes pela frente. Tão clara que era um convite a esquecer outras possibilidades, por mais insólitas que fossem. Relatórios dos laboratórios forenses revelavam traços de ácido sulfúrico nas notas analisadas. Indícios de atentado, em forma sofisticada. O ácido foi depositado em forma sólida, micro-grãos que se transformavam em estado líquido por efeito do suor libertado pelas mãos dos usuários das notas armadilhadas.

Tão clara era a pista que os investigadores, habituados a suspeitar do óbvio, quiseram a contra-prova. Desconfiavam da facilidade súbita, da prontidão com que emergira esta pista. Estranhavam a sofisticação, sabendo que a fórmula sólida do ácido sulfúrico não está nas mãos dos grupos terroristas suspeitos do costume, por mais profissionais que sejam. Correram uma investigação paralela, em surdina: agentes infiltrados nos laboratórios forenses, na averiguação da independência dos relatórios. Ao mesmo tempo, perplexidade pelas conclusões extemporâneas da classe política: teciam loas à investigação, como se ela já tivesse findado. Falavam em público como se as certezas fossem incontestáveis. As polícias envolvidas fizeram um pacto secreto: todas as investigações seriam feitas nos bastidores, sem enviar sinais que desconfiassem os políticos – os mesmos políticos com uma sede enorme em interferir no curso das investigações.

Tudo se deslindou em meia dúzia de passos articulados. Agentes infiltrados por políticos nos laboratórios forenses fabricaram o apressado relatório. Que, para iludir os escrupulosos investigadores, fornecia resultados verdadeiros. Queriam esconder a verdade, colocando-a onde menos os investigadores a pudessem procurar – debaixo do seu nariz. As notas haviam sido inquinadas com ácido sulfúrico em estado sólido, numa composição que se alterava em estado líquido através do contacto com a gordura das mãos. Em estado líquido, espalhava a destruição do papel.

A descoberta bombástica, reservada para o final: a autoria da encenação terrorista. Todos os olhos apontados para os suspeitos habituais: fundamentalistas islâmicos, movimentos alter-globalização, o grupelho do José Bové, movimentos neo-nazis. Pistas falsas. Os culpados eram uma extensa coligação conspirativa de adversários do euro, ou de saudosistas dos símbolos monetários que cederam lugar à moeda única, ou os suspeitos do costume, sempre ansiosos para destruir os sinais do sistema capitalista. Estavam de braço dado no mesmo objectivo, mas com motivações diferentes. Políticos no poder, desesperados por não terem à mão de semear mecanismos para moldar a economia; keynesianos ressabiados, desgostosos com o “neoliberalismo” triunfante que emergiu com o euro; os suspeitos do costume, num golpe oportunista para derrubar um esteio do “capitalismo selvagem” (de que o euro seria sinónimo); e a extrema-direita violenta, na ânsia de liquidar um símbolo que destruiu a essência das nacionalidades.

A Europa em ebulição: primeiros-ministros, presidentes da república, ministros das finanças e um séquito de conselheiros – todos personagens intocáveis, arcando com a responsabilidade do acto terrorista. Descobrira-se que quiseram semear o pânico na Alemanha, porque a Alemanha corporizava o espírito maligno da moeda única. À ebulição juntara-se um dilema: teriam as polícias força para denunciar o conluio com traços de terrorismo oficial? Os dias seguintes trouxeram a resposta. Centenas de agentes envolvidos na descoberta da conspiração das primeiras figuras, desaparecidos do mapa.

3.11.06

Ambientalismo terapêutico: o ambientalismo individualista


A educação ambiental está na moda. Desde a tenra idade, as criancinhas são formatadas pelo moralismo ambiental. Nos canais de televisão com programação infantil, há intermezzos com excertos de educação ambiental. Todas as manhãs, enquanto escrevo, a televisão debita os desenhos animados que a minha filha consome. Algures pelo meio, aparece uma personagem a enviar a mensagem ecológica do dia. É o Verdocas.

Não digo que sejamos insensíveis à protecção do ambiente. No fundo, é o equilíbrio do lugar que nos acolhe. Há gestos que podemos fazer honrando a preservação do ambiente: a separação do lixo, o acto cívico de não emporcalhar as ruas com papéis e outros dejectos. Ou quando o povo acampa nas matas para os piqueniques de Verão, não deixar o local num caos de lixo. As indústrias são incentivadas a procurar métodos de produção que atenuem o impacto no ambiente. Entraram na moda as estações de tratamento de águas residuais. Os catalizadores são adereço obrigatório para tornar menos poluente a circulação de veículos. Nas grandes cidades, estimula-se o uso de transportes colectivos e, de preferência, aqueles que usem energias limpas.

Um dos grandes males ambientais é a poluição atmosférica. A emissão de gases poluentes encontra uma parcela importante nos tubos de escape dos veículos. Daí que a indústria automóvel comece a experimentar novas soluções para tornar os veículos menos poluentes. Se é acto de expiação das culpas pela poluição acumulada ou apenas manobra de marketing, o futuro o dirá. Algumas marcas comercializam modelos híbridos: ao tradicional motor a combustão adicionam um motor eléctrico que entra em funcionamento quando o automóvel está parado numa fila de trânsito, ou quando a condutor tira o pé do acelerador numa descida, ou quando a condução é tão suave que basta uma ligeira pressão no acelerador para fazer mover o carro.

Há dias passou uma reportagem sobre os automóveis híbridos. Um proprietário foi entrevistado. Estava muito satisfeito, pois conseguia uma poupança de um litro por cada cem quilómetros. Já é um começo. Tímido, é certo, demonstrando como a tecnologia híbrida ainda está numa fase embrionária. Não é isso que me interessa. Apenas a reacção do entusiasmado condutor. Ele fazia os seus cálculos: ao fim de um mês consegue poupar vinte euros na factura do combustível. No dia seguinte um conhecido meu, fanático ambientalista, manifestava descontentamento pela reacção daquele homem. “Egoísta”, eis a acusação.

Não vejo que se possa censurar aquele homem por fazer contas às finanças pessoais. Há algum mal se ele decidiu comprar aquele carro com a expectativa de diminuir a rubrica orçamental do combustível? Dizia o purista da ecologia: desmascara-se a intenção do homem, que apenas olha para o seu bolso e não para o bem comum, para a melhoria do ambiente. Daí a acusação de egoísmo, que punha a nu a sua falta de sensibilidade ambiental. Um falso herói, como todos os que se deixaram seduzir pela novidade dos automóveis híbridos apenas por saberem que poupam na factura de combustível. Para ser um comportamento genuinamente ambiental – prosseguia o exacerbado ambientalista – os proprietários destes automóveis deviam estar orgulhosos por menos gases poluentes serem emitidos para a atmosfera.

A ingenuidade fanática do empenhado ambientalista mostra como esta espécie vive noutro mundo. Erra ao lançar a acusação de egoísmo. Não percebeu que podemos ser individualistas sem sermos egoístas. É verdade que aquele homem estava entusiasmado com o automóvel híbrido porque lhe permitia uma poupança de vinte euros mensais. Há algum mal nisso? Essa poupança pessoal não é sinónimo de um pequeno contributo para melhorar a qualidade do ar que respiramos? Pode o desgostoso ambientalista insurgir-se contra o individualismo de quem comprou carros híbridos. Nem percebe como se insurge contra a sua própria causa. A desorientação é tanta que nem percebe quando algo vai ao encontro das suas preces.

Por mim prefiro um ambientalismo genuíno, motivado pelo individualismo dos seus praticantes. Mesmo que os praticantes deste ambientalismo nem cheguem a reparar que contribuem para um ambiente melhor. Prefiro-os aos mentores da asfixia ambientalista que chega ao ponto de quase propor a extinção do Homem para salvar ecossistemas.