20.11.06

A burka proibida: a voragem da intolerância


O governo holandês prepara-se para proibir o uso da burka. Acreditava que o bafiento republicanismo francês fosse um fenómeno isolado (com arremedos nas terras lusitanas). Afinal a doença contagiou-se a outros locais. Com um toque inusitado: a doença estendeu-se de um país católico a um país protestante, de uma república a uma monarquia.

O lamentável episódio do véu islâmico, caridosamente proibido pelos burocratas parisienses, é revisitado no país das tulipas. Com um requinte adicional. Enquanto os franceses se acobardaram numa lei genérica que proibia todos os símbolos religiosos, sabendo-se que os destinatários eram os muçulmanos que trajam de forma inconfundível; os holandeses perderam o pudor e colocam-se na calha para a discriminação orientada, pois entre a comunidade islâmica só os mais extremistas insistem no uso feminino da burka.

Não tenho a menor simpatia pelo culto exacerbado do islamismo que resvala para a asfixia da mulher, remetida a um lugar sombrio na sociedade, manietada por dogmas religiosos que, aos meus olhos, são execráveis. Todavia, não me posso emproar na condição de sumo-sacerdote da moral, como se estivesse num plano superior para ajuizar os diferentes credos. O agnosticismo militante facilitaria o exercício que me recuso a empreender. Mais importante, considero, é respeitar as ideias dos outros. As suas crenças, as formas peculiares de exteriorizar essas crenças. Não pode uma sociedade que se reclama da vanguarda civilizacional aferroar os que cultivam diferentes credos, nem sobre eles ditar proibições que soam a uma violação herética do credo. Sob pena de se perder o rasto à proclamada "superioridade civilizacional".

Há quem se insurja freneticamente contra o islão, que por estes dias foi empossado na condição de inimigo (é bom não esquecê-lo, vivemos numa sociedade que se sacia de antagonismos; a velha fábula do inimigo que convém sempre existir para aconchegar as fidelidades caninas aos ditames impostos pelo poder vigente). Para estes, as minhas palavras devem soar a heresia. Adivinho a sua interrogação indignada: e se as mulheres de cá, quando se deslocam a países da burka, a têm que usar para não ofender os costumes locais, porque não exigir que as mulheres de lá, quando emigram para o ocidente, vivam em harmonia com os nossos costumes?

Não partilho da indignação que os leva a marejar na analogia. O paralelismo forçado joga contra o que defendem de forma tão contundente - a superioridade civilizacional do ocidente. Se bem entendo a linha de raciocínio, a obrigação de burka nos países onde o radicalismo religioso é levado ao extremo autoriza uma reversão do fundamentalismo. As mulheres habituadas a sufocar detrás do biombo da burka têm que ser despidas do utensílio, porque a socialização com o ocidente (onde se estabelecem) assim o obriga. Que esta imposição seja uma violação da consciência das mulheres habituadas a usar a burka, um pormenor irrelevante. Podem tais guardiães da moral, com honestidade, exibir ofensa quando se cruzam com mulheres trajando burka? Eis a tolerância ocidental em todo o seu esplendor.

Por entre os vários defeitos que encontro na civilização ocidental, ainda há lugar para enaltecer a liberdade de pensamento. Ainda que na prática recente se perceba como a liberdade vai apenas sendo tolerada, a par com as constantes limitações ao seu exercício. Mesmo assim, gabe-se a civilização ocidental por tolerar este exercício de liberdade. Algo que não existe nos países islâmicos, há que o reconhecer. Este contraste torna ainda mais incompreensíveis os recentes atropelos às liberdades da autoria de governos de países ocidentais. Com esta conduta aproximam-se cada vez mais dos países onde o fanatismo religioso alimenta o sufoco das liberdades individuais.

A decisão do governo holandês é triplamente perigosa. Primeiro, é um atentado às liberdades, um atentado cirurgicamente direccionado. Segundo, faz o mesmo jogo dos intolerantes alimentados pela cegueira religiosa. Terceiro, é gasolina atirada para uma fogueira que já arde bem alta. Pouco me importam aqueles que puxam dos galões da valentia argumentando que não podemos fazer cedências aos violentos. A quem assim raciocina, apenas isto: acreditam que esta guerra sem quartel ao terrorismo, que grassa incontrolável, o vai extirpar?

Os que se acham campeões da tolerância na nossa praça (J. C. Espada, inevitavelmente, ao leme) não discernem o mal que fazem à sua tão querida (e distorcida) tolerância ao defenderem a proibição da burka. Assemelha-se a um acto vergonhoso de voyeurismo: querem espreitar os rostos que se escondem detrás da burka. Não importa que esses rostos queiram permanecer tapados; o seu voyeurismo fala mais alto. A tolerância é boa quando são os outros a praticá-la em relação a nós. Ao partirmos do pressuposto que somos tolerantes por definição, nem damos conta que certos actos vêm perfumados com o odor fétido da intolerância em relação ao outro.

Este ocidente que envergonha a palavra tolerância de cada vez que ela estala na boca de políticos intolerantes é, cada vez menos, um local onde apeteça viver.

4 comentários:

Afonso Duarte disse...

Eis uma questão complicada. Realmente, o traje, desde que não ofenda a moral e os bons costumes, não deveria conhecer limitações.
Mas a burka levanta outras questões: nunca se sabe se é envergada voluntariamente ou se é o pai ou o marido que obriga a mulher a usá-la; apresenta-se também, como um símbolo da violência e da repressão sobre a mulher; e é identificada com o islamismo radical que nos ameaça. E assim, começa a encontrar-se alguma margem para justificar a medida adoptada pela Holanda.
Mais a mais, sem perderem a sua identidade, sou de opinião que os imigrantes tendencialmente permanentes têm de aceitar o enquadramento político, constitucional e legal do país de acolhimento e devem fazer uma aproximação à sociedade, cultura, língua e costumes de quem os recebe. Se não gostam, como se costuma dizer: a porta é serventia da casa.

Anónimo disse...

A burka não é um símbolo religioso do Islão. A religião islâmica não impõe nem recomenda o uso da burka. Não há nenhum documento religioso islâmico que mencione a burka - procure informar-se. Portanto o uso da burka não é uma questão religiosa, é uma questão social: a burka é um símbolo da submissão da mulher ao homem.
Na Europa e no mundo civilizado (do qual nenhum país islâmico faz parte)as mulheres são juridica e socialmente iguais ao homem. Nesse sentido é de salutar toda a legislação que proíba esse miserável e nojento símbolo de submissão. Quem quiser habitar no mundo civilizado tem de viver civilizadamente. Em alternativa tem sempre todo o mundo islâmico, onde o macho manda na fêmea.

Maria disse...

Realmente é curiosa esta questão..
Em portugal ainda não se vive esta questão e talvez por isso seja fácil criticar um país de discriminação.
O problema está quando no autocarro vemos uma mulher (presumo eu..) de burqa a sentar-se ao lado de uma criança que fica visivelmente assustada e olha para a mãe em pedido de socorro. A mãe diz-lhe que se deixe estar, que não faz mal (como quem diz que não morde) porque provavelmente não faz mesmo mal.
Mas em Roma sê Romano..
É incómodo viver numa realidade destas.
A nossa cara é o nosso bilhete de identidade social e tanto quanto sei é obrigatório andarmos identificados..

Manuel Maria Correia disse...

Sou pluralista, não fanático nem extremista, mas o que dizer se, por detrás de uma "burka" que vai ao banco, a uma loja, a um restaurante, a um centro comercial, a um cinema, se esconder um fanático, um ladrão, um (uma) bombista? E que dizer se dentro de um hospital público ou privado, andarem de cara toda tapada, a cuidar dos doentes? A nossa sociedade, não sabe lidar com isso, e creio que se eu, por exemplo,no meu país andasse todo nú, por tradição ou por religião, e fosse viver para outro país onde esse "traje" fosse proibido? Iria para os media reclamar do atentado às liberdades? Por favor, meus caros concidadãos, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Cada macaco no seu galho, e entendamos de uma vez por todas que criticar determinadas posições é trabalho fácil. Porém, entender e modelar essa crítica não é trabalho facilitado.
Creio que ninguem gostaria de ver entrar pela porta da nossa loja ou do nosso banco, um indivíduo de cara tapada (que nem se pode dizer se é masculino ou feminino - a gente não vê senão os olhos, e olhos são isso mesmo, olhos!), que pode trazer enormes problemas a todos os níveis, e que já mencionei acima.
Obrigado pelo vosso blog. Gostei e para a próxima digo mais coisas, se me deixarem.
Manuel Maria Correia