13.11.06

Cartilha infantil: do espírito Noddy (ou devíamos ser todos escuteiros?)


As crianças vão nutrindo os tenros espíritos com a cartilha de bons costumes disseminada pelos desenhos animados que jorram a rodos. Aprendem a ser bonzinhos. É-lhes ensinado que o mal não compensa. Mais tarde ou mais cedo, a mentira é desmascarada. Mais tarde ou mais cedo, os maus fígados revolvem-se contra quem teima em destilar fel, em aviltar o próximo. As virtudes são o único caminho a percorrer.

Lamentavelmente – para as crianças; e para a humanidade – as criancinhas crescem e esquecem as mensagens bíblicas de Noddy e companhia. Não sei se é na altura que se entregam aos devaneios da adolescência, quando interiorizam a ditadura da idade adulta. Ou quando começam a escrever a linguagem cifrada das mensagens SMS que assusta os progenitores no final do mês (não pelo português arrevesado, mas pelas facturas gordas que chegam das operadoras de telemóvel). Não sei quando se dá a mutação. Quando elas se esquecem das lições de moral cuidadosamente ensinadas nos desenhos animados a propagandear o bem e a vituperar o mal. Algures, perdem a inocência e o espírito deixa de ser tenro.

As carnes enrijecem-se com os anos que passam pelo calendário. E os anos da inocência parecem uma memória vaga, quase uma reminiscência platónica. Os adultos, que outrora foram crianças ávidas consumidoras dos virtuosos desenhos animados, interrogam-se se alguma vez foram espectadores do género. Na altura da introspecção, avulta o largo hiato entre o que fomos na tenra idade, em que tudo era inocente e profundamente bom, e a idade em que os porquês cederam lugar às certezas categóricas. Estas andam de braço dado com a desconfiança congénita, a atracção pelo abismo da maldade. Dir-se-ia: Noddy e companhia andam a pregar no deserto.

A candura das personagens benévolas dos desenhos armados é desarmante. Quando escuto os diálogos de Noddy e companhia nas minhas costas (porque estou de costas para a televisão quando a minha filha se enternece com mais um episódio da comandita), pergunto-me: o que está mal, a bonomia ingénua de Noddy e companhia, ou a malévola veia que embrutece a espécie humana quando chega à idade adulta? Como somos crianças num curto espaço da nossa existência, fôssemos levados pelo espartilho do quantitativo e diríamos que Noddy e companhia são uma representação de um mundo idílico que sabemos, já adultos, não existir.

Poderão contrapor líricas e apaixonadas almas por um mundo preenchido por bondade inata: é a socialização forçada que acomete sobre os tenros espíritos quando a idade adulta bate à porta. O mal não está em Noddy e companhia. O mal é feito pela insubordinação da bondade que adultos com instintos suicidários insistem em cometer. Noddy e companhia estarão certos. Há substantivos que deviam ser banidos do vocabulário dos actos. Maldade e todo um cortejo de palavras associadas. Mas os adultos não estão entre a audiência dos desenhos animados que pregam virtudes. A alma adulta empenha-se no precipício tão diligentemente repudiado por Noddy e companhia.

A vida é a complexidade que sabemos. Presos aos atilhos dessa complexidade, esquecemos a infância dourada. Há a abjecta mania de ignorar a candura dos heróis da banda desenhada, que sempre nos ensinaram, enquanto estávamos iludidos por essa branda maneira de ver mundo, que os feitores do mal eram sempre chamados à pedra. Podia demorar, mas a justiça tinha o seu momento. A tradução de uma batalha de valores, o bem triunfante. Os anos passam e Noddy e companhia deixam de ser presença assídua no imaginário das crianças que vão crescendo. A maturidade latente é a madrasta das virtudes.

Os olhos bem abertos desmentem as profecias de Noddy e companhia. À medida que a ingenuidade se desfaz contra um muro de realismo, a candura extingue-se. Amaldiçoa-se. A ingenuidade herdada dos primeiros passos pela vida logo transporta em si o travo amargo da perfídia. Há quem tenha a escola da maldade – por sua vez contagiada por outros que já a traziam, eles também contagiados por outros que lhes ensinaram na pele como a bonomia se traduz em recuos.

Afinal é Noddy que está errado. Se há instrução para as virtudes, os traços perdem-se quando a idade traz com maior nitidez a gigantesca nebulosa que disfarça a genuinidade dos espíritos. Noddy prega no deserto. A ilação é cristalina: Noddy e companhia não são um exercício de pedagogia para crianças carentes de formação. Não são um retrato do mundo lá fora, a selvática floresta para onde são atiradas as crianças prestes a perder o sentido da ingenuidade.

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